terça-feira, 25 de fevereiro de 2014

Aiko e Cinza à mesa das existências


CÍNTHIA CORTEGOSO
cinthiacortegoso@hotmail.com
De Londrina-PR

Ele não conhecia a boa vida nem imaginava uma diferente da que levava; porém, tinha um desejo: fazer uma refeição pelo menos uma vez, com mesa posta rodeada de uma família ou de seres que o amassem e que ele, reciprocamente, o sentisse.
Esse desejo se despertou quando Aiko completara seus treze anos nas ruas de Kanazawa, província de Ishikawa, localizada no litoral do Mar do Japão. O menino vivia pelas ruas mais simples e sem a família que tanto sonhara. É o tipo de situação que, de repente, ocorre, e simplesmente já é.
O nome Aiko traz em sua significação o que ele era em sua essência: criança amorosa. De certa forma, poderia ser imensamente contraditório, mas se sabe que o amor pode ser presenciado de múltiplas maneiras e ocasiões. E Aiko, mesmo sozinho, ou melhor, com um gato acinzentado, era feliz e fazia quem com ele estivesse por algum momento, também muito feliz.
A sua valorização era sensível quanto à natureza. E numa sexta-feira de primavera, o menino se encontrava num dos cuidados e maravilhosos parques, como é comum em todo o Japão, e sua mão ainda pequena e delicada tocava carinhosamente nas folhas, ainda com mais cuidado, nas flores que da planta floresciam.
Quanto respeito e amor! Reverenciava as “pequeninas”, assim como as chamava. Encantadoramente as admirava. Seu gato Cinza, realmente era o nome, observava seu companheiro em total silêncio; tanto um aprendia com o outro.
E naquela tarde, o sol tão brilhante se irradiava como ouro, com seus raios amarelo-ouro, pelo parque. O menino anotava informações. Desde tenra idade, aprendera a ler e a escrever, talvez trouxera a bagagem de outro tempo. Conhecia importantes histórias; admirava o movimento do vento, a sua variação, dinâmica; silenciava, respeitosamente, ao perceber a montagem do céu para, com a chuva, aguar a terra.
Aiko não guardava para si as anotações, mas as entregava em forma de pergaminho para o porteiro de um laboratório renomado em sua cidade.
Ainda na sexta à tarde, no parque, o menino anotou incontáveis observações como se preenchesse um longo relatório. Também desenhava algumas flores visualizadas e registrava as informações necessárias. Quando percebera, já era o horário para o fechamento dos portões. Os guardas do lugar o conheciam e tinham muito apreço por ele.
– Boa tarde, Aiko!
– Boa tarde, senhor guarda do parque! Bom descanso e até amanhã! – assim o menino os saudava.
Normalmente, as pessoas voltam para casa no fim de tarde, começo da noite; no entanto, Aiko não tinha uma família para esperá-lo e nem uma casa comum para retornar. Muito se ouve que a vivência padrão é a mais provável de se encontrar, porém, não quer dizer a única forma adequada para se viver.
E Aiko retornava para sua grande flor, assim ele nomeava sua casa. Uma construção com tudo o que se pudesse imaginar de reciclável. Aiko e Cinza já estavam a uns dez passos para chegarem ao lar quando um forte clarão abrilhantou os olhos do gato e os do menino. O animal levou um grande susto e se escafedeu pelo espaço encontrado. O menino parou, extasiado, com a surpresa do que lhe poderia suceder.
Talvez durara de cinco a dez segundos aquele brilho, um significativo tempo para determinado e imprevisto acontecimento.
Quando o menino foi capaz de abrir os olhos... não acreditava no que estava em sua frente.
Dois quadros se punham diante do olhar juvenil: o da esquerda trazia a imagem de um ancião ocidental, com barba e cabelos longos brancos, túnica de cor clara, chapéu com formato de cone e tantos vidros de vários tamanhos sobre uma mesa, os quais o homem administrava num trabalho de grande necessidade e responsabilidade.
O quadro do lado direito exibia a imagem de um homem oriental voltado para uma mesa repleta de aparelhos, microscópios, computadores de alta precisão para o trabalho desenvolvido. O homem vestia um jaleco longo e branco, estava com os cabelos curtos e com a barba feita. Demonstrava habilidade no manuseio de seu material.
Aiko atentava-se aos dois. Começou a associar o segundo ao primeiro. E nos dois, um gato cinza.
– Seria a sequência? – questionava-se o menino.
Refletia, estupefato, procurando compreender a significação das duas telas no tempo. Era fenomenal!
Esqueceu-se de si e de seu redor. Queria insaciavelmente entender tudo aquilo. E tão familiar eram os olhos.
Pôde mais uma vez reparar com observância o quadro da direita e depois o outro.
Com a mesma rapidez que se construiu a imagem também deixou de ser. E estava de volta o cenário simples da rua japonesa. Com a calmaria presente, o gato Cinza veio se aproximando, atento, do menino companheiro.
Aiko percebeu o animal, um pouco desconcertado, mas retomando a ação comum. O menino, maravilhado, ainda se encontrava na mesma posição na calçada, onde tudo sucedera.
Buscou uma vez mais os quadros; porém, já não eram visíveis aos olhos; eles existiam no tempo e na vida. Dimensões simultâneas e distintas.
Restou, então, a entrada para casa.
– Venha, Cinza. Vamos, meu amigo!
O menino olhou para o céu e quantas estrelas havia. Respirou fundo e foi para o lar.
Como conhecia a construção de sua casa, abriu com cuidado a porta, mas antes de abri-la totalmente, percebeu uma claridade incomum. E abriu, com calma, a porta do lar.
Parados à porta, o menino e o gato, de bocas abertas, se deslumbraram com o cenário: uma mesa posta com todos os detalhes dignos de um sonho agora realizado.
Em cada extremidade da mesa havia um homem. O lado esquerdo estava ocupado pelo ancião; o direito, pelo jovem homem oriental. Aiko sentou-se ao meio da mesa: entre um e outro. Cinza deitou-se no chão, ao lado do menino.
Na sexta-feira à noite, Aiko realizou o grande desejo. E os três possuíam o mesmo olhar: do que foi, do que é e do que pode vir a ser. A responsabilidade com a vida é, incontestavelmente, imprescindível, pois há muito por fazer para o progresso. O futuro sempre aguarda, mas depende da conduta do presente. E o espírito é eterno com sua multiplicidade de existência.

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