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terça-feira, 19 de novembro de 2013

A relva verde atravessa o tempo

CÍNTHIA CORTEGOSO
cinthiacortegoso@hotmail.com
De Londrina-PR

Os pés subiam a íngreme montanha coberta por uma vegetação rala, devido à intempérie climática, e ainda verde, por insistência, com raminhos longos e finos. Sua mão de, aproximadamente, pouco mais de meio século se apoiava num cajado feito de galho de árvore forte e centenária. O seu corpo estava coberto por roupas que o protegiam do vento frio e constante, comum à região.
No entanto, naquela hora, uma tempestade quase varrera o cenário, menos o que possuía raiz mais funda. O homem estava com a cabeça protegida com um gorro de pele de algum animal abatido para se tornar alimento e vestimenta.
Às vezes, ele parava para poupar um pouco de energia, porém, não demorava e, logo, com calma e persistência, continuava sua subida. O pé direito sempre repousava à frente.
Faltavam cerca de duas horas para as seis da tarde. Em decorrência do mau tempo, típico da época, a noite já era mais presente que o dia. Naquela data, um ou outro transeunte se atrevia a sair de suas casas adequadas ao clima.
Exatamente, cinquenta minutos, foi a duração do percurso de seu último descanso até a casa no alto da colina aonde deveria chegar. Em ambiente assim, o corpo humano despende alto nível de energia, no entanto, a alimentação mais rica em caloria repõe essa perda.
A essa hora o céu já era escuro por completo, de frio, de vento, de falta das luzes das casas que por perto não existiam. Mas uma tão singela e pequenina aguardava o homem que determinadamente alcançava sua porta de entrada.
Se não bastasse toda a dificuldade vencida, ele ainda carregava na outra mão, sem o cajado, um saco de estopa com alguns mantimentos, um tipo especial de remédio e uma garrafa de leite.
Com calma, como em todo o desenvolvimento do caminho, abriu a porta. Subiu a perna direita para ultrapassar uma tábua existente entre o lado de dentro e o de fora; talvez fosse uma maneira de evitar que a neve invadisse o interior da casa.
Encostou o cajado na parede e o saco de estopa colocou-o em cima da minúscula mesa quadrada que pegava o espaço, na casa, de um cômodo.
O homem suspirou mais fundo que de costume, olhou o local, observou a cama com outro corpo mais debilitado que o seu. Passou alguns segundos olhando o ser repousado no colchão de uma espécie de capim com algum preparo para não se perder em mofo.
E continuou a tirar os poucos mantimentos trazidos com a garrafa de leite. Os outros olhos pouco se abriram, mas seguiam os movimentos executados pelo senhor do cajado. Este colocou cada coisa em seu devido lugar. Lavou a mão, despejando com a caneca a água morna de uma espécie de garrafa que mantinha essa temperatura.
Depois esperou escorrer as últimas gotas mais pesadas da mão, olhando, fixamente, para o plano da água que se encerrava na bacia esmaltada com várias lasquinhas tiradas. Secou as mãos na toalhinha pendurada próxima.
Pegou a garrafa de leite. Era preciso aquecê-lo um pouco e o fez enquanto passava um café fresco. Depois de ter colocado a mistura de café com leite em duas xícaras de alumínio, pegou pão caseiro e cortou duas fatias com pelo menos três centímetros de largura cada.
Olhou pela janela e teve a certeza de que neve e frio seriam presentes nos dias vindouros. O homem soltou um sorriso pelo canto dos lábios, talvez por já conhecer a rotina do lugar.
Preparou a fatia de pão com mel puro e grosso extraído das abelhas do parque na época da primavera. Pegou a canequinha com leite quente e café e foi em direção à cama com a pessoa quase imóvel.
Reservou a refeição em cima de um banquinho de madeira ao lado da cama. Acomodou melhor o outro corpo, amparou as costas e, pacientemente, deu-lhe a caneca na mão. Era o que conseguia. Os outros olhos agora sorriram.
Os dois homens compartilharam o momento e a comida. Já estavam alimentados.
Mais uma vez se entreolharam. Talvez neste átimo de tempo, poderiam vivenciar a mesma lembrança, no entanto, nenhum dos dois mencionara qualquer ideia retomada.
O senhor, então, recolheu as duas canecas. Alguns farelos de pão ficaram adormecidos na cama com outros dos dias anteriores. Sem muito se governar, o homem, debilitado, pendeu para o lado direito. Ficou alguns minutinhos assim até o outro perceber e endireitá-lo. Os olhos do acamado agradeciam-lhe e sentiam o mais puro arrependimento.
Era uma tarde ainda fria, havia exatamente um ano. O senhor morador da casa no alto da colina chegava depois de um duro dia de trabalho; saía de manhãzinha e só no final do dia retornava. Não tivera filhos e sua esposa, dois anos atrás, também numa tarde fria, havia sido enterrada.
Com um pouco de dificuldade pelo clima e pelo cansaço solitário, ele demorou alguns segundos a mais para abrir a porta de seu casebre. Esse foi o tempo necessário para um homem, nunca visto nas imediações, atacar o senhor e tentar roubá-lo levando o tão pouco que conseguira com o trabalho dos dias anteriores.
Quando há escassez, o pouco torna-se muito e há de protegê-lo para sua permanência e aproveitamento para se manter em pé, com vida.
E de repente o estranho homem investiu, sorrateiramente, um golpe pelas costas contra o senhor. O alvo era o minguado pacote de comida e, caso as encontrasse, algumas moedas. Dois homens rolando como meninos em momento pueril, com a diferença de que meninos, ainda assim, possuem uma pureza mais confiável.
Os golpes duraram minutos eternizantes até que a experiência foi mais sábia que a força e a juventude. O senhor do casebre imprimiu uma rasteira ao desconhecido que perdera o equilíbrio e caiu de costas numa pedra mais pontuda que as demais daquele terreno. Da mesma forma que caíra, portanto, ficou.
São segundos na vida que bem pouco se compreende o andamento das ocorrências, mas são capazes de alterar todo o percurso predeterminado de uma existência.
O senhor, ofegante pelo esforço, olhou para o homem mais moço, imóvel, gemendo de dor e tremendo pelo desespero da imobilidade que visitara seu corpo. O senhor buscou fundo o ar necessitado até se acalmar e recobrar a respiração mais harmoniosa e batidas do coração menos aceleradas.
Já mais calmo, aproximou-se do homem sobre a pedra e lhe perguntou:
– Homem, o que você fez?
O mais jovem não lhe respondera, porém, fitou-o com olhos tristes, desesperançosos.
O senhor, inquieto, entrou no casebre e tomou um gole de água fresca armazenada numa moringa grande. Saiu novamente. Não sabia o que fazer. O mais próximo morador residia a cerca de dois quilômetros de distância. Ele teria de encontrar alguma solução. A noite já era dominante.
Deixou a fraca luz acesa e seu sentimento apenas lhe dizia para recolher o homem desconhecido e, agora, imóvel.
Com grande dificuldade e tremendo gasto de energia, o senhor, por fim, conseguiu recolhê-lo e o colocou em um leito que há muito não era usado, desde o falecimento de sua esposa.
Talvez o homem, ao carregar o jovem para dentro, tenha feito o maior esforço físico até o momento; o rapaz estava muito pesado e com o corpo relaxado, também não havia coordenação, devido à lesão ocasionada pelo tombo.
Exatamente essa situação em andamento completara um ano; o jovem, infrator daquela hora e, de fato, com as razões sustentadas por sentimento desconhecido do momento, estava agora sob os cuidados do homem que sofrera o susto e o mal-estar de ter sido acuado por um assalto.
Mesmo que palavras não sejam pronunciadas ou escritas, os olhos podem ler o diálogo e a conversa do espírito... da alma. Sempre o coração alertará o seu dono dos prós e contras realizados.
Dessa forma, os olhos do jovem sempre imploravam o perdão pela conduta impensada, desesperada de fome, apavorada por talvez tantos desencontros vividos. No entanto, a sabedoria da vida já ensinou ao viajante que em toda época apenas a trilha do bem o levará à luz. Todo coração reconhece o sentimento suave, a paz benevolente ou o desassossegado torpor da má conduta.
O senhor lavou as duas xícaras, guardou o restante do pão, deixou organizada a parte onde se reconhecia como cozinha. Mais tarde sabia que deveria fazer um caldo quente para ambos se alimentarem; no frio intenso, o corpo necessita de maior quantidade de energia para se manter aquecido.
Ele ainda tinha um tempo para descansar antes de ir para a feitura do jantar.
Os olhos do mais jovem, porém, acamados, seguiam o dono do casebre. Admiração, arrependimento, força, amor, fé; aquele olhar era capaz de sentir isso tudo. E somente o que poderia fazer era conviver com o sentimento arrependido.
Com os dias que se passavam, o jovem começou por uma palavra, depois uma frase, o exercício diário da prece. O arrependimento começou a se transformar em respeito, afeto... amor. Sim, era o mais nobre sentimento que ele, agora, sentia pelo homem que quase fora a vítima fatal de seu desequilíbrio.
E mais uma vez o senhor olhou para o céu e em seguida fechou a porta; o frio era congelante. A pequena, entretanto, e imprescindível lareira estava acesa e estalava com a energia do fogo que ardia. Como de costume, o senhor, toda noite, alcançava um dos poucos livros presentes e corria os olhos em voz alta pela crônica ou o conto do momento.
Era a grande espera cotidiana, a leitura de um escrito. E o jovem não era capaz de contar ao senhor, nem ao menos, o sonho que tivera, pela situação física conquistada na tarde do desatino.
Portanto, o jovem não pôde lhe contar que a noite passada sonhara que era ainda menino e o senhor era o seu pai. Os dois passeavam num campo de relva verdinha e baixa; a época era bem próxima à Primeira Grande Guerra. E nesse passeio, um dos entregadores da correspondência do Governo foi ao encontro do pai e lhe passou, em mãos, o papel que mudara toda uma história.
Em dois dias o homem deixara esposa e filho para servir o país. No menino, ficou impressa a infinita tristeza de não mais poder, com seu herói, conviver. Quanto vazio a alma do filho passara!
Possivelmente o sonho fora uma maneira de resgatar a memória eterna, que voltou a ser espírito e agora estava alma mais uma vez vivendo o que lhe fora, supostamente, roubado: a convivência com seu pai.
O tempo e a experiência mostrarão ao jovem que o pai não tivera culpa de seguir, e o abraço, então, será de frente como almas que se amam. E ainda compreenderá que a Terra é escola da vida onde os alunos nela matriculados precisam aprender o amor antes de tudo.
E o jovem atentava em cada palavra lida pelo senhor. Aqueles olhos se encantavam por esta voz. E o senhor cuidava do jovem como se fora seu próprio filho, ou melhor, o filho que nesta existência ainda não lhe tinha sido presenteado.

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