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sábado, 11 de janeiro de 2014

Medo da morte

JORGE LEITE DE OLIVEIRA
jojorgeleite@gmail.com
De Brasília-DF

Desculpem, se lhes não estendo a mão; estou muito constipado. Observem; mal posso falar. Gripe dos infernos. Passo as noites respirando pela boca. Imagino até que estou magro e pálido.
Não? Estou sim; vejam como fungo; fungo sem o mínimo sinal de poder; mas não fungo à toa como já funguei junto a você, amiga leitora, quando estive no corpo físico.
Minha preocupação agora não é mais a saúde, como dantes ocorria. Entretanto, tenho ainda algumas razões para lhe falar de minha fungação. E não são por razões políticas. Citarei duas ou três:
A primeira foi quando soube por André do caso do grande comerciante que sempre proporcionou uma vida folgada para seus filhos e, após a morte física, passou a ter ódio de um deles, que era médico. Sua família tinha dois filhos, duas filhas vivas e uma filha morta.
— Quatro vivos e uma morta, Machado?
— Uma viva, dois mortos e duas mortas.
— Dois vivos, duas vivas e uma morta, Bruxo...
— Dois mortos, duas mortas e uma viva, amigo leitor.
— Não seriam quatro vivos e uma morta?
— Quem é vivo não enterra mortos, entendeu, amiga leitora?
— Nadinha!
— Então, pergunte ao Senhor.
— “Deixa aos mortos o cuidado de enterrar os seus mortos” (Lucas, 19: 60).
— Exatamente...
— Pois não é?
— Perfeitíssimo.
Dados esses esclarecimentos claros como água turva, pediria ao Dr. André que me explicasse o que ocorreu para que o comerciante falecido odiasse tanto seu filho doutor. Eis a resposta:
— O genitor passara a vida trabalhando e ajuntara grande patrimônio. Entretanto, já idoso, adoecera gravemente e Agenor, o filho médico, resolvera antecipar o retorno do pai à pátria espiritual. Agora, enquanto os quatro filhos vivos disputavam, a tapas, a herança familiar e a mãe enlouquecera, o espírito paterno remoía-se de ódio pelo filho que cometera a eutanásia daquele antes que o pai pudesse deliberar sobre quem ficaria com o quê de seus imensos bens materiais.
Bem dizia Jesus: “Não ajunteis tesouros na Terra, onde o verme rói, a ferrugem corrói e o ladrão rouba. Ajuntai-os no céu, onde nem a traça nem a ferrugem consomem e onde os ladrões não os podem roubar” (Mateus, 6: 19).
— Machado, você está muito conselheiral, o que houve? Você não era disso...
— Ah, meu amigo, nada melhor do que atravessar o rio Aqueronte, para nos convencermos de que as almas valem a pena, ainda que sua lama não seja pequena, parodiando meu amigo Fernando Pessoa. Vamos à segunda razão:
Quando criança, você se assustou ao ver na TV ou ler uma revista em quadrinhos sobre história de vampiros? Pois a TVS mostrou, no último domingo, uma pegadinha em que uma pessoa vestia uma roupa que lhe encobria a cabeça e, com um machado na mão, saía correndo atrás de outras pessoas, à noite, se fazendo passar por um fantasma sem cabeça. O susto era tão grande que vários perseguidos tropeçavam e caíam. Numa dessas, o suposto fantasma tropeçou sobre uma dessas pessoas e, descoberto, apanhou de todos os fugitivos que viram a cena e voltaram correndo para agredir o engraçadinho.
Onde já se viu fantasma tropeçar e poder ser tocado como qualquer de nós?
Pois então, talvez você não saiba que, nas cidades espirituais de fluidos energéticos densos, como Nosso Lar, e nas zonas umbralinas que o antecedem somos surpreendidos por mais intensas sensações do que as dos corpos de matéria bruta. Por mais estranho lhe pareça, nossa existência terrena é cópia grosseira do que há ali, amigo leitor. A Física e a Biologia Quânticas já têm explicações para tais fenômenos. Então, continue acompanhando nossa narrativa e você se surpreenderá.
O jovem Francisco não queria nem saber de pensar na morte física. Muito apegado ao corpo, após um desastre, foi parar em Nosso Lar, depois de um período de transição pelo Umbral, onde ficou prisioneiro do próprio cadáver, quando sentiu os vermes roerem-lhe as carnes no túmulo, do qual se afastou correndo, apavorado e demente.
Foi socorrido nas Câmaras de Retificação de Nosso Lar, enlouquecido, por se julgar perseguido por um monstro, que nada mais era senão a visão do próprio corpo cadavérico. Tempo depois, recebeu a visita do espírito paterno, ser evoluído, que orou por ele e lhe deu um passe. Depois disso, o jovem melhorou bastante, mas continuou sob os cuidados dos médicos e enfermeiros espirituais.
Perguntei a André, penalizado, como era possível que alguém fosse assombrado pela imagem do próprio cadáver. Eis sua resposta:
— Meu amigo, também tive essa dúvida e fiz a mesma pergunta ao espírito Narcisa, uma enfermeira bondosa do Ministério da Regeneração. Eis sua resposta:
A visão de Francisco [...] é o pesadelo de muitos Espíritos depois da morte carnal. Apegam-se demasiadamente ao corpo, não enxergam outra coisa, e nem vivem senão dele e para ele, votando-lhe verdadeiro culto, e, vindo o sopro renovador, não o abandonam. Repelem quaisquer ideias de espiritualidade e lutam desesperadamente pelo conservar. Surgem, no entanto, os vermes vorazes e os expulsam. A essa altura, horrorizam-se do corpo e adotam nova atitude extremista. A visão do cadáver, porém, como forte criação mental deles mesmos, atormenta-os no imo da alma. Sobrevêm perturbações e crises, mais ou menos longas, e muito sofrem até a eliminação integral do seu fantasma (XAVIER, F. C. Nosso Lar. Pelo Espírito André Luiz. Cap. 29: A visão de Francisco).
— Caramba, Machado! Depois dessa, fiquei morrendo de medo de morrer.
— Deixa de ser bobo, rapaz; a morte não existe, disso nunca duvidei. Basta que leia minhas obras, a começar pelos poemas; raros são aqueles que não se refiram ao aspecto sacrossanto da vida, como este, que dedico a todos os vivos, estejam no corpo físico ou no espiritual, intitulado:  

OS SEMEADORES (Século XVI)
... Eis aí saiu o que semeia a semear... (Mat., XIII, 3.)

Vós os que HOJE colheis, por esses campos largos
O doce fruto e a flor,
Acaso esquecereis os ásperos e amargos
Tempos do semeador?
Rude era o chão; agreste e longo aquele dia;
Contudo, esses heróis
Souberam resistir na afanosa porfia
Aos temporais e aos sóis.
POUCOS; mas a vontade os poucos multiplica,
E a fé e as orações
Fizeram transformar a terra pobre em rica
E os centos em milhões.
Nem somente o labor, mas o perigo, a fome,
O frio, a descalcez,
O morrer cada dia, uma morte sem nome,
O morrê-la, talvez.
Entre bárbaras mãos, como se fora crime,
Como se fora réu
Quem lhe ensinara aquela ação pura e sublime
De as levantar ao céu!
Ó Paulos do sertão! Que dia e que batalha!
Venceste-la; e podeis
Entre as dobras dormir da secular mortalha;
Vivereis, vivereis!
(ASSIS, M. Machado de Assis: obra completa. Rio de Janeiro: José Aguilar, 1973, p. 134.)

Au revoir, cher ami!


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