JORGE LEITE DE OLIVEIRA
jojorgeleite@gmail.com
De Brasília-DF
Aquela família de gatos tivera
oito filhotes, um morrera ainda muito jovem, com poucos meses de idade.
Falecera de um surto de varíola ocorrido na cidade de Pirapiranga- BA.
A mãe era católica
apostólico-espírita e o pai somente espírita, o que não os impediu de batizar e
crismar todos os seus gatinhos na Igreja Católica, sob as bênçãos da água benta
e do gato padre, que com eles e demais fiéis repartia pães e peixes...
Como moravam no interior, a
vida era dura ali. O pai chamava-se Jean e a mãe, Sessi. Os filhotes foram
batizados, por ordem da maior à menor idade como Tekinha, Raelte, Dinis,
Charles, Pablo, Jau e Jack.
Todos eram bons filhos, mas um,
em especial, dava muito trabalho ao gato Jean: dom Dinis, como o pai costumava
chamá-lo, em virtude de seu porte altivo e valente.
Certo dia, quando dom Dinis
ainda tinha quatro meses, seus irmãos mais velhos, Tekinha e Raelte, oito e seis
meses, respectivamente, chegaram a casa miando desesperados.
Da porta de sua casa,
assustada, dona Sessi perguntou-lhes:
— Mas o que está acontecendo
aqui?
— Dom Dinis está ali na esquina
enfrentando sozinho três cachorrinhos vira-latas bem maiores que ele.
— Chamem seus irmãos e vamos
ajudá-lo, pois seu pai foi caçar ratos e ainda não voltou do trabalho até
agora.
Reunida a família, encontraram
Dinis todo arrepiado, cercado de cães pelos três costados, mas com as garras de
fora, pronto para arranhar o primeiro que se metesse com ele.
Contudo, ao verem outros seis
gatos aproximarem-se em posição de ataque a eles, os três cãezinhos não
pensaram duas vezes, ganindo de medo, saíram correndo.
A família felina voltou para
casa sã e salva, mas a partir desse dia Dinis ficou com a fama de valentão,
embora nem ele se lembrasse do que acontecera naquela tarde ensolarada.
Papai Jean, ao voltar a casa
com o alimento da família, sabedor do acontecimento do dia, recomendou a Dinis:
— Meu gatinho, papai o ama
muito e não quer vê-lo brincando com gatos vadios da rua, muito menos brigando
com cães, que são muito perigosos. Se você for pego desprevenido por um cão
grande e feroz, suba na primeira árvore que encontrar, pois cachorros não sobem
em árvore.
— É claro, papai, que farei
isso, não nasci ontem e não sou bobo. É claro...
— Dom Dinis! Isso é modo de
falar com seu pai? Não repita essa palavra; diga, está bem, papai... Vamos,
fale!
Como era tímido, mas tido como
teimoso, Dinis ficou mudo, enquanto o pai insistia:
— Fale, Dinis, o que lhe pedi,
vamos...
— Claro...
— Claro, nãããooo, agora ficou
escuro... Diga, apenas: “Está bem, papai...”
Nada respondia o filhote, até
que o pai, cansado de insistir, disse-lhe, amigavelmente, não sem antes ouvi-lo
murmurar, quase inaudível: — Está bem... É claro...
— Muito bem, não vou castigá-lo
por uma bobagem dessas, mas comporte-se, seja educado, respeite seus pais,
trate bem seus irmãos e não brinque com gatos moleques na rua, pois você já tem
uma irmã e cinco irmãos para brincar. Não quero que as más influências
estraguem a educação que lhes estou dando.
Assim passou-se o tempo, com
Dinis amando cada vez mais seu pai, mas observando que o velho gato já não
tinha forças para alimentar a família e adoecera gravemente.
Nem por isso, todavia, Jean
deixava de conversar muito com alguns vizinhos de sua confiança, residentes
poucas casas abaixo da sua. Em especial com um deles, pastor evangélico a quem
muito admirava e era o chefe da única família de gatos de sua confiança, que
também tivera sete gatos. Aliás, gatas, pois contrariamente à família de Jean e
Sessi, a família do pastor era composta por seis gatinhas e apenas um gatinho.
Com esses felinos, Jean deixava
seus filhotes brincar livremente.
Em especial quando ficaram mais
velhos, à noite, as gatas e os gatos amiguinhos tinham o hábito de subir nos
telhados das casas. Então miavam tanto que acordavam a vizinhança toda. Isso,
porém, só aconteceria anos depois, quando Jean desencarnara após uma crise
asmática e de pneumonia que o fizeram tossir e gemer dia e noite, durante
vários meses.
Os diálogos de Jean com Josias,
o gato pastor, eram bem interessantes, pois cada um respeitava a crença do
outro. Ambos, contudo, não se davam conta de que Dinis, alheio aparentemente às
suas conversas, registrava e apoiava o que seu pai dizia:
— Josias, admiro muito você e a
educação que dá a sua família, mas, com todo o respeito, se Deus é bom e justo,
como explicar que, numa vida tão curta como a nossa, haja no mundo tantas
desigualdades? Como explicar a situação dos gatos de madame, que têm
veterinários a sua disposição, as melhores comidas, nunca precisaram caçar
ratos para comer, vivem em casas confortáveis, cercados de carinhos e mimos,
têm almofadas macias para arranhar e dormir, enquanto nós vivemos aqui, nessa
dificuldade imensa, tendo que caçar rato todo dia para nos alimentar e à nossa
família?
— E ainda tendo que fugir dos
cães das vizinhanças, que não são poucos, adoram nos perseguir e se divertem
latindo quando nos veem em cima das árvores, sob os gritos e o riso das
crianças e a indiferença dos adultos humanos... Dizia Josias.
— É, meu amigo, como explicar a
existência de gatos que sejam adestrados pelos melhores profissionais,
alimentados com leite, além de peixe de primeira qualidade, ao passo que a nós
só nos resta caçar e comer ratos?
— Há gatos que assistem, dos
colos de seus donos, aos melhores programas de TV, enquanto nós somos enxotados
de casa, o tempo todo, por nossos patrões. Concordou Josias.
— Há também aqueles que passam
o dia dormindo, comendo do bom e do melhor, têm as melhores companhias e todo o
cuidado e amor a suas crias... Quanto a nós, nossos patrões nem nos agradecem
quando os livramos dos ratos que infestam seus quintais e residências.
— Como se justifica isso?
Refletia Josias.
— Ó dura escravidão! Só mesmo a
reencarnação explica tantas diferenças. Concluía Jean.
— E ainda há gatos que ou são
mortos pelos próprios donos, os quais fazem churrasquinho deles, ou são
devorados por cães, sem que seus proprietários liguem a mínima para isso...
Confirmava Josias. Mas tudo isso está na vontade do Senhor, que temos de temer
e obedecer. Louvado seja Deus! arrematava o pastor.
Até que, um dia, Jean veio a
falecer, após ouvir, em silencioso respeito, as preces que Josias fazia em seu benefício.
Desencarnou aos nove anos, deixando Sessi viúva, com sete anos e sete filhotes
ainda jovens para alimentar.
Sessi, então, passou a
trabalhar duro e contou com a ajuda de seus gatinhos e gatinha para continuarem
a saga de sua última existência.
Dom Dinis, porém, ao crescer,
precisou ir para outras terras, onde se casou com uma gata profeta, teve treze
filhotes e vários netos.
Seus irmãos e irmã casaram-se
também, tiveram filhos e netos. Dinis, todavia, nunca esquecera seu pai e
jamais olvidara o esforço do velho para proporcionar à sua felina família uma
educação primorosa.
Aconteceu que, durante anos,
Lulu, esposa de Dinis, que era médium, passara a receber mensagens espirituais
do espírito do sogro Jean, as quais muito confortavam Dinis e o orientavam a
bem educar seus filhos.
Após anos de contato mediúnico,
quando alguns gatos da família já estavam casados e tiveram filhotes, Dinis
informou a sua nora que iria reencarnar, sem que dissesse em qual família iria
renascer.
Depois disso, nunca mais deu
qualquer notícia do Além.
Desde então, dom Dinis, entre
uma e outra caça ao rato, passa dias e noites à sua procura, miando no claro ou
no escuro, sem saber que o gato amado está tão perto...
Nota machadiana: Esta é uma crônica de ficção. Qualquer semelhança
com a realidade de seu leitor ou leitora e respectiva família é mera
coincidência. Mas, como murmurou Galileu Galilei, ao ser obrigado a renegar,
diante da Inquisição, sua crença de que a Terra se move em torno do Sol: E pur
si muove.
Visite
o blog Jorge, o sonhador: http://www.jojorgeleite.blogspot.com.br/
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