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terça-feira, 20 de maio de 2014

Juan García e o segredo de uma vida


CÍNTHIA CORTEGOSO
cinthiacortegoso@hotmail.com
De Londrina-PR

O doce e o azedo; o frio e o gelado; o claro e o escuro; o fundo e o raso; o sim e o não; o bem e o mal.
Pela aparência das árvores e a grande quantidade de folhas amarronzadas para o laranja, a estação era o outono. Este tempo se situa entre o verão e o inverno, e na vida humana sua posição se encontra na fase anterior à velhice.
Naquela estação de trem, um jovem estrangeiro estava pela primeira vez. Gostaria de ter chegado ao determinado país para realizar estudos do idioma, aperfeiçoamento da língua inglesa, nativa, daquele lugar.
Há certos casos em que os fatos são bem distintos quanto à idealização. Então, não havia ninguém para aguardá-lo, pois não houve acordo algum anterior à sua chegada. Estava muito interessado em aprender o novo idioma, no entanto, a verdade era que o jovem viera em busca de uma vida com melhores oportunidades financeiras. Em seu bolso, havia pouco mais da quantia para se fazer uma refeição diária por cinco dias.
Santiago deixara a vida no Chile dos vinhedos para a esperança da britânica ocasião, onde o céu era cinza na maioria das vezes, entretanto, a polidez usual e a valorização cidadã inspiravam-no a uma sociedade mais ideal do que conhecera em sua terra até agora vivida.
Os olhos do jovem, ainda na estação, buscavam o lado direito do caminho, não estavam certos, então, desejaram observar o outro lado e depois à frente; a direção seria tomada para o horizonte que mais se afinizasse com seu coração. Pois bem, o jovem escolhera e o primeiro passo recebeu a energia comandada pela programação bem antes assumida.
Mas aonde ir? Não havia lugar para o pernoite, e Santiago andou por ruas largas e algumas estreitas. Tentando economizar o mísero dinheiro, pensou que conseguiria ficar sem comer, sem alimentar o corpo físico, mas este é movido a energia apropriada para a sua manutenção. Há de se alimentar os corpos com o alimento compatível à sua formação: corpo somático ou físico, perispírito e espírito.          
Durante o caminho escolhido, quantos pensamentos surgiram na mente do rapaz. Vinham a voz esclarecedora sugerindo ânimo e a voz desanimadora podando a luz da esperança. Quando percebeu que a inquietação interna estava realmente desordenada, teve apenas uma atitude: a prece.
O jovem deixou a maleta ao lado e com a fé aliada ao ensinamento da família quanto à importância da oração, por ser ele oriundo de um núcleo familiar bastante religioso, na calçada mesmo, rogou a Deus, proteção, sabedoria e discernimento para o presente e futuro tão próximo.
Naquele momento, cuja concentração, fé e energia amorosa se fundiram, a luz brilhante uniu Santiago ao Alto e um determinado raio de extensão ao seu redor também se iluminou com a luz radiosa, curadora, esclarecedora e protetora da oração sincera. Após a conexão, o jovem estava mais calmo e revigorado com a capacidade de, pelo menos por aquele momento, poder orientar-se, fortalecer-se e proteger-se de investidas negativas e maléficas.
Após aquela conturbação vencida, Santiago, caminhando com mais equilíbrio e paz, deparou-se com um anúncio pregado num poste na calçada, que dizia estas palavras: “Contrata-se jovem para trabalhar em oficina; há quarto para dormir. Entrevistas somente na terça-feira de manhã.” O jovem sofrera para compreender o novo idioma, mas entendeu. E a terça seria o dia seguinte. Ele se ajeitou sobre uma cobertura comercial e começou a comer o lanche que havia comprado minutos antes de enxergar o anúncio.   Mesmo com muita fome, o rapaz comera com calma e mastigava várias vezes antes de engolir. O corpo agradecia a energia para manter-se com força a fim de continuar o seu objetivo.
Depois de alimentado e de ter amansado a sede com um restinho de água da garrafa que trouxera da viagem, ajeitou-se no local que mesmo público e sem conforto acolhedor, pôde se acomodar para, pelo menos, descansar um pouco para no dia seguinte dar início, de fato, aos passos nos degraus de seu objetivo.
Os primeiros raios de sol, incrivelmente, começaram a surgir no cenário gris londrino. Então, quando Santiago acordou, com um pequeno brilho iluminando seu rosto, sem dúvida, sentiu que a nova etapa poderia, sim, ser muito feliz. Preparou-se como pôde e logo pegou a direção de onde se precisava: do jovem que viera da América do Sul.
Santiago caminhava com a confiança da realização do iminente primeiro objetivo; como ainda é um plano material, faz-se necessária a energia do dinheiro, e o trabalho honesto é o meio mais seguro e confiável para a aquisição desse recurso.
E os seus passos levaram-no para o estabelecimento de interesse. O rapaz, com sua pequena maleta, olhou, procurou por alguém, entrou alguns passos e, logo, um homem, muito bem vestido veio ao seu encontro.
– Bom dia, em que posso ajudá-lo? – o homem perguntou com um olhar bastante simpático.
– Bom dia, senhor! Estou aqui por causa da vaga para ajudante de mecânico, ou melhor, para trabalhar em que precisar na oficina – o rapaz respondeu um pouco acanhado.
– Você tem alguma experiência?
– Não, senhor, mas preciso muito trabalhar e também de um local para dormir.
– Pelo sotaque, vejo que não é inglês.
– O senhor está certo. Sou do Chile e meu nome é Santiago.
– Então, você é a capital do país? – o homem falou em tom leve de brincadeira.
Santiago sorriu.
– Quantos anos você tem? – o homem quis saber.
– Tenho vinte anos, senhor! – respondeu o jovem.
– De início, não é um salário muito bom, mas poderá se manter. E penso que precisará aprender o idioma para melhor se comunicar e compreender.
– Sim, senhor! Quero muito aprender – respondeu o rapaz.
– Pois bem, seja bem-vindo ao país e ao seu novo trabalho. Se quiser... já está contratado – o homem, sucintamente, falou.
– Quero, quero, sim. Muito, muito obrigado!
Apertaram-se as mãos.
– Desculpe-me, por favor, como é o seu nome, senhor?
– Ah, sim. Meu nome é Juan García.
Santiago admirou-se:
– O senhor é...
– Sim, também sou chileno – falou interrompendo.
– Quanta coincidência! – o jovem estava muito surpreso.
– Coincidência não existe, rapaz. Há sempre um fio que liga os acontecimentos da vida, as pessoas pelas quais passaremos e as quais passarão por nós. Venha, vou lhe mostrar o seu quarto – o homem convidou.
Santiago seguiu Juan. Durante o percurso, o dono da oficina apresentou-lhe alguns funcionários e mecânicos e também o levou para conhecer o local onde ficavam os carros para o conserto. Era uma grande área total.
Finalmente, o rapaz chegou ao quarto no qual poderia guardar sua maleta com tão poucas roupas.
– Este será seu dormitório enquanto trabalhar na oficina. É individual.
– Gostei muito, senhor. É quase do tamanho de minha casa, no Chile, na qual moravam cinco pessoas, agora, quatro – Santiago, feliz, estava. – Senhor, com profundo sentimento, agradeço-lhe. Farei todo o trabalho com muita disciplina e capricho. Muito obrigado, senhor – o rapaz curvou-se e abaixou um pouco a cabeça demonstrando seu respeito e reconhecimento pela oportunidade.
– Tudo bem! Tudo bem! Receberei sua gratidão com um bom trabalho realizado. Vamos! Vamos! Tome um banho, troque-se de roupa e vá para o refeitório tomar o café da manhã. Após a refeição, passe no meu escritório para regularizar os documentos e, em seguida, começará a aprender o ofício. Procure pelo senhor Dimitrius.
Os jovens olhos, atentamente, compreenderam a ordenação. Outra vez agradeceram.
O senhor Juan, atropelando sua emoção, deixou logo o jovem e voltou ao trabalho.
Durante o trajeto até o escritório, o homem estava conturbado; seus pensamentos estavam confusos, recebiam informações incoerentes e as imagens lançadas poderiam ser reveladoras ou, simplesmente, algumas situações com equívocos próprios da mente.
Quando Juan chegou à sua sala, pegou um copo d’água com a crente promessa de se acalmar e voltar ao normal, ou melhor, à forma mais estável e serena cotidiana. No entanto, a vida é a própria arte e não há como fugir do espetáculo.
Santiago, em trinta minutos, havia tomado banho e estava no refeitório para tomar o café da manhã. Um pouco tímido, aproximou-se do balcão no qual lhe ofereceriam a bandeja com pão, leite, café e uma fruta. Recebeu o desjejum e foi sentar-se para a refeição.
Carregando a bandeja, não acreditava que já havia conseguido emprego e lugar para ficar. Sentia-se tão feliz, pois em breve poderia enviar algum dinheiro para a família.
Comera tudo o que lhe fora servido. Então, devolveu a bandeja no balcão e agradeceu a senhora que o servira.
Com passos mais rápidos, foi procurar pelo senhor Dimitrius, quem lhe ensinaria o trabalho.
Encantou-se com o local. Perguntando pelo senhor, logo o encontrou.
– Bom dia, senhor! Sou Santiago.
– Bom dia, meu rapaz. Sou Dimitrius. Seja bem-vindo e venha que você começará a aprender o ofício.
O jovem acompanhou o senhor.
Do primeiro andar, o senhor Juan García tinha a visão completa da oficina que era especializada na parte elétrica de automóveis. O dono podia ver, mas não era visto pelo vidro, havia um insulfilm espelhado, impedindo a visão interna.
O dono da oficina tinha um filho, Estevan, com dezenove anos. O jovem observou, silencioso, todo o desencadeamento e a contratação de Santiago. Como conhecia seu pai, percebeu que ele estava, de certa forma, inquieto por algo relacionado ao rapaz chileno. Estevan também reparou que o pai estava em pé e observava, pelo vidro, alguma coisa na parte da oficina.
Sem comentar, o curioso filho levantou-se e buscou a mesma direção do olhar paterno. O único alvo para o ângulo era a figura do jovem Santiago que aprendia o novo trabalho.
– O que tanto interessa ao senhor? Nunca o vi observar por mais de dez segundos sequer... e já dura quase dois minutos sua observação com um certo interesse... parece-me – o filho, incomodado e com desconforto, questionou o pai.
– Não... somente observo se o novo rapaz está interessado realmente pelo trabalho, apenas isso – o pai respondeu um pouco desconsertado.
– Isso é estranho, pois nem sequer vira os novos contratados, mal sabia o nome – insistiu o filho.
– Por favor, Estevan, chega de falar! – o pai pediu rispidamente.
O filho saiu e bateu a porta do escritório. O pai fechou os olhos com a batida, mas logo os abriu e buscou, mais uma vez, a figura de Santiago que, ao mesmo tempo, o incomodava e lhe trazia tanta alegria.
Os dias se passavam.
Dimitrius ensinava todo o trabalho para o rapaz chileno que aprendia com maestria e muito capricho.
Sempre havia os olhos de Estevan cuidando dos passos do novo funcionário. E a perseguição passou a se transformar em ciúme doentio, rivalidade exacerbada, descontrole emocional.
E Santiago não possuía nenhum sentimento negativo, muito menos pelo filho do patrão; na verdade, quase nem o via, quase nem o conhecia. No entanto, a cada dia, Estevan sentia maior o sentimento negativo e começou a criar formas de pôr fim a essa situação.
Algo incomum foi Juan García querer conhecer mais o jovem chileno. Então, para não se aproximar tanto do rapaz, passou a perguntar a Dimitrius como o jovem era, como era o seu comportamento. E o responsável pelo trabalho o elogiava com os mais significativos atributos. A cada descoberta, Juan passava a gostar mais do jovem estrangeiro.
Passou a se enxergar em Santiago quando tinha essa mesma idade em sua juventude.
Estevan, após quase um ano de sofrimento, pelo ciúme e inveja do jovem estrangeiro, que era pobre e sozinho, sugeriu ao pai que o demitisse.
– E qual seria o motivo? – perguntou Juan.
– O motivo é que não faz um bom trabalho e ainda não sabe se comunicar – o filho respondeu com frases incoerentes para quem conhecia o jovem estrangeiro.
– Que mais? – o pai perguntou, rude.
– E não é o suficiente? – o filho respondeu com outra pergunta. – Pai, diga-me, por que o senhor o admira tanto e lhe tem todo esse carinho? E por que nunca me admirou e nem demonstra afeto por mim? – o filho questionou com sentimentos em desequilíbrio.
Juan García, no escritório onde estavam, sentiu-se tão perturbado perante as palavras e o estado do filho.
– Estevan, meu filho, não sei aonde quer chegar! – simplesmente o pai falou. – O que lhe falta? Tem tudo – o pai respondeu também alterado.
– Não tenho, não! O senhor só se refere a coisas materiais... Por Santiago, sente um carinho que nunca teve por mim. Por que para ele, enquanto eu sou o seu filho? – o rapaz gritou e saiu do escritório batendo a porta.
Juan García permaneceu no lugar. Seu estado emocional também era perturbador.
Nenhum funcionário percebera; os dois se desentenderam a portas fechadas.
E por ordem de Dimitrius, Santiago foi levar uma nota de serviço ao patrão. Dificilmente Santiago subia ao escritório; raras foram as vezes. No entanto, naquele momento acontecera.
Com vergonha e receio, o rapaz chegou à sala. Bateu silenciosamente à porta, recebeu uma voz de autorização para entrar.
Quando os olhos do homem perceberam o rapaz, foi como fazer descer uma cortina de agradável imagem à sua frente. Tudo se apaziguou.
– Senhor, Dimitrius pediu para trazer-lhe esta nota de serviço – o rapaz, em tom baixo, falou.
– Sim, Santiago. Entre, por favor!
O jovem encostou, cuidadosamente, a porta e se aproximou do patrão com o documento, entregando-lhe.
Juan García pegou o papel, mas logo pediu:
– Por favor, sente-se, gostaria de conversar um pouco.
Santiago, com muita timidez, se sentou ocupando apenas parte da dianteira do assento da cadeira demonstrando desconforto pela situação, pois muito simples e humilde era o rapaz.
– Você está contente aqui, meu jovem? – perguntou.
– Sim, senhor. Estou muito – ponderava o que era necessário.
– Não sei muito sobre você, sobre sua família. Como era a sua vida no Chile? – perguntou interessado.
– Senhor, vivia uma vida com muita privação... minha família ainda vive assim – o rapaz respondeu.
– Conte-me um pouco sobre você – pediu o patrão.
– O senhor quer saber, mesmo? – insistiu pela insegurança de falar de fato.
– Por favor, sobre sua família também.
O rapaz observou-o desacreditando que estivesse interessado em sua história, mas, assim, começou:
– Minha família é muito pobre. Bem, a história começa por minha mãe que foi abandonada há quase vinte anos por um homem, quando soube que ela estava grávida; portanto, não conheço meu pai de verdade, mas Lorenzo me criou como seu próprio filho, tornando-se meu pai do coração e eu, seu filho do peito; ele sempre cuidou muito bem de minha mãe. Quando eles se casaram, eu estava com dois anos, mas minha mãe me contou que nos dois anos antes de conhecê-lo, muita fome passamos. Não havia ninguém para nos ajudar e meus avós maternos não aceitaram minha mãe, grávida e solteira – o rapaz, com calma, contava. – O senhor quer que eu continue? – perguntou com receio.
– Por favor, Santiago! – o senhor pediu.
– Depois do casamento, nasceram os meus dois irmãos, Azucena e o caçula Paco; cada vez mais nos sentíamos uma família, mas a dificuldade financeira aumentou, até que minha mãe adoeceu recentemente e por falta de trabalho, decidi buscar uma nova oportunidade de emprego para ajudar minha família.
A cada palavra, Juan García se sentia mais interessado e, ao mesmo tempo, tão incomodado com os fatos revelados.
– E quando cheguei aqui e encontrei este trabalho, tanto agradeci a Deus e ainda, com lugar para dormir, pois economizaria e enviaria mais dinheiro ao tratamento de minha mãe querida – Santiago completou.
Fez-se um silêncio. Olhos se olharam.
O semblante do rapaz era tão bom, mesmo com tantas situações aflitivas já vividas.
– Desculpe-me, senhor Juan – o rapaz se sentiu constrangido pelo silêncio do interlocutor.
– Santiago, por favor, qual era o nome de sua mãe? Se quiser responder – pediu o homem.
– Posso, sim, senhor. Minha mãe se chama María Dolores.
Quando Juan ouviu esse nome, seus olhos se dispersaram no horizonte em busca de suas memórias. Estático, completamente, estático, ele ficou.
– O senhor está bem? – Santiago perguntou, assustado, com a fisionomia pálida de Juan.
Ele demorou a responder e quando voltou para aquele momento, lançou outra pergunta:
– Por favor... e qual é o sobrenome?
– De minha mãe?
– Sim...
– Sosa. María Dolores Sosa – falou o nome completo.
Juan buscou subitamente a cadeira mais próxima para não se perder no chão.
– O senhor está bem? – Santiago, rapidamente, se aproximou. – Vou pegar um copo d’água.
Naquele momento o jovem serviu o senhor.
Como um quebra-cabeça, o homem juntava algumas informações e intensamente simpatizava com o rapaz. O rosto de uma jovem mulher ficava rondando a mente de Juan com exagerada insistência. Atos do passado investiam contra os do presente.
Quando um pouco de equilíbrio estava prestes a aparecer, a porta bruscamente se abriu e Estevan presenciou a pior cena para o seu ciúme exagerado: Santiago, com uma das mãos no ombro de Juan e com a outra oferecia-lhe um copo d’água, com o cuidado tão próximo.
Naquele momento, todo sentimento denso e negativo do filho foi lançado ao pai e ao jovem chileno. Palavras depreciativas, esbravejadas e infelizes foram lançadas e direcionadas tão ferozmente.
Minutos perduraram horas angustiantes. Por fim, três almas feridas dividiam o mesmo ambiente.
Estevan, então, desnorteado, saiu do escritório; sem entender nada, Santiago pediu para se retirar; Juan García, com incontáveis pensamentos confusos, procurou a ficha do jovem rapaz para conferir o seu nome completo e, principalmente, se certificar do nome do genitor.
Com as mãos trêmulas, procurava sem encontrar a ficha desejada; o nervosismo sempre cega os olhos da razão, o que tão claro e próximo está.
Desorganizou todos os ordenados documentos e, finalmente, os olhos lacrimejados identificaram o nome do rapaz e conferiu: Santiago Sosa Hernandez.
Como se o homem despencasse num abismo em sua consciência e soltasse o desassossegado monstro que tanto o ameaçara e o ferira durante duas décadas e um pouquinho mais.
Veio como uma espada em brasa também a lembrança de seu sobrenome que há muito não usava: Juan García Hernandez. Seu peito sentiu-se diminuir querendo deixar de existir, fugir para um lugar onde, neste momento, não haveria, pois à sua consciência pertence tanto o momento favorável quanto o desesperador.
Reviveu com forte emoção a ocorrência do passado que não o deixara até o momento desses dias. Lutou a cada amanhecer contra sua consciência implacável que o acusava incessantemente, carregava o seu próprio juiz.
Lembrou-se do primeiro sorriso de María Dolores, em sua companhia e, na mesma hora, ouviu mais uma vez o choro da mulher quando lhe contara que esperava um filho seu. Juan não quis tamanho compromisso e despejou a mulher grávida na ladeira do desgosto e da infelicidade. Desde esse ato em diante, ele não mais encontrou o brilho do sol, nem o colorido das flores, muito menos, os segundos de paz, nem mais uma noite de verdadeiro descanso e refazimento. Sua vida se compunha de antes e depois da arbitrária decisão cometida.
Então, o homem buscou novos ares em terras estrangeiras, imaginou que longe da situação, do local e da pessoa, pudesse recomeçar como se nada houvesse... mas não se foge do que lhe pertence; aonde quer que se vá também vão as dores e os amores que se hajam conquistado.
Conheceu nova mulher e logo constituiu família tentando a paz, mas garantindo apenas uma grande decepção permitida pela ilusão criada por ele.
Quantas noites, já com a nova etapa em outro país, ficou em claro sem poder dormir, sem a tranquilidade que restaura o corpo e a alma, eterno espírito.
E o outro filho nascera no núcleo atual, mas Juan não era capaz de se alegrar com a nova criatura sabendo que havia outra talvez passando por tanto sofrimento, necessidade primária e até mesmo de toda sorte.
Com as estações que se passavam, Juan não conseguia cultivar amor pelo filho do convívio, pois sempre sofria com a comparação de um que podia ter tudo o que precisava e de outro que nem ao menos sabia se fora capaz de sobreviver e, se assim fosse, quantas necessidades e desgostos, podia ele ter passado.
O homem começou a repelir o filho; não havia carinho, amor. O tratamento era somente de um pai provedor das questões materiais.
E assim, Juan deixou de cumprir sua obrigação diante dos comprometimentos acordados no plano imaterial, tanto com um filho quanto com outro; espíritos compromissados para retificação e posterior progresso. Entretanto, ainda pela imperfeição de espíritos perfectíveis, o sofrimento ocupava a maior parte das emoções.
Estevan cresceu com a ausência do pai presente; Santiago, com um pai que lhe renegara num impulso impensado, mas com a bondade do Alto recebera um pai que o amara tanto e lhe proporcionou ensinamentos sobre moral e os bons sentimentos.
Um pai e dois filhos que se imaginavam perto, cada um com seu segredo, com o seu desejo de conviver. O pai que se cobrava pela irresponsabilidade; o filho mais velho desejoso de conhecer e compreender o motivo do abandono; o filho mais novo insistindo pelo amor paterno sob o mesmo teto, mas não um lar.
Com a emoção dando início ao equilíbrio, Juan García estava novamente junto de seu corpo, retornara da imensa viagem em sua memória, lembranças tão presentes e atormentadoras pelos atos, pelo tempo.
Olhou para o Alto como uma alma que roga a Deus, força, discernimento, amparo. Naquele dia, mais nenhuma emoção seu coração suportaria.
A noite veio, e muitas questões difíceis se resolvem durante o sono dos aflitos, com amparo dos bons amigos.
Pela manhã, o homem pediu, no escritório, a presença de seu filho Estevan e também a do jovem Santiago.
Os dois jovens atenderam ao pedido e estavam presentes.
No começo da conversa, os olhos se incomodavam uns com os outros e fugiam rapidamente de suas indagações. No entanto, as resoluções também são imprescindíveis e sempre ocorrem.
E este era um dos momentos no qual se encerra um tempo para um novo caminho.
– Chamei-os a fim de elucidar um acontecimento, por uma ação inadequada, irracional, o profundo equívoco e desencontro.
Durante o esclarecimento, as lágrimas rancorosas e ciumentas de Estevan passaram a se transformar em compadecidas lágrimas e amorosamente fraternais, pois ainda aqui, em graus de parentesco, eram, sim, irmãos em busca do horizonte de paz.
As lágrimas mais doces e amparadoras de Santiago abraçaram o pai tão desejado e embalaram com amor o choro carente do irmão.
Palavras apropriadas foram intuídas pelo amparo rogado com tanto amor e piedade. Enquanto Juan García expunha todo o ocorrido era-lhe ministrada energia calmante e refazedora do Alto, de mãos amigas e bondosas; dois amigos espirituais rodeando os três também amparavam e protegiam a ocasião.
Os jovens ouviam não mais a dor, mas um sentimento maior de amor e perdão fortalecidos pela compreensão.
E naquele momento, o pai e os dois filhos de hoje se ouviam e começaram, pela primeira vez em tantas oportunidades falidas, um entendimento de que somente com amor sustentado pelo perdão é que poderiam encontrar a paz tão necessária para a trilha da vida, caminho da libertação.
Estevan olhou o pai com olhar de um menino puro, simples, carente do carinho paterno que, agora, sim, começou a receber e como se redescobriu sendo irmão.
Santiago, com o contentamento pleno da alma, admirava estar ao lado do pai e mais ainda se felicitou em observar no olhar do recém-irmão a força a mais para uma grande caminhada que teriam pela frente, os três.
Aquela quinta-feira recebeu o brilho do sol. O pai, com seus dois meninos, abraçou-os, beijou-os; seu coração depois de, aproximadamente, vinte anos passou a compassar na harmonia que só a bondade, a paz e o amor promovidos pelo perdão são capazes de sintonizar o perfeito intervalo para o sopro da vida.

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