JORGE LEITE DE OLIVEIRA
jojorgeleite@gmail.com
De Brasília-DF
Numa famosa República, em 1889, conhecida pela
corrupção, certo dia, inventaram uma forma de apurar os votos de candidatos à
Câmara dos comuns. A Câmara alta, constituída pela burguesia, indicava seus
representantes ao governo, mas não votava. Como ainda não havia internet, nem
muito menos urna eletrônica, a apuração far-se-ia pela cor da tinta
predominante nas cédulas eleitorais distribuídas à população. Os inventores do
processo, respaldados pelos governantes, garantiam que a máquina era à prova de
fraude, tanto quanto a cédula, que imediatamente somava mais um à cor escolhida
pelo votante. O candidato da cor mais votada seria o vencedor.
No primeiro turno daquele ano inesquecível, três
partidos principais concorriam com seus candidatos ao cargo de primeiro
ministro: o vermelho, da situação, o azul e o verde, da oposição. Houvera ainda
um quarto partido, o amarelo, cujo candidato morrera acidentado no helicóptero
que mergulhou em parafuso com ele e seus correligionários. Assim, os eleitores
do extinto partido amarelo juntaram-se ao verde e este se fortaleceu.
Na campanha eleitoral de primeiro turno (a
votação era em dois turnos), o partido verde fora de tal modo atacado pelo
partido vermelho, que seus eleitores mudaram de opinião e apoiaram maciçamente
o partido azul. Outros votaram em branco ou anularam seus votos. Agiram como
Pilatos, que lavou suas mãos, mas carrega a culpa do Cristo crucificado.
No início da campanha do segundo turno, os
ataques vermelhos se intensificaram contra o partido azul, mas este resistiu
bravamente e preveniu seus eleitores contra o que, segundo se dizia, o partido
vermelho ameaçava o povo, caso votassem no outro candidato.
O candidato azul surpreendia seus adversários,
perplexos com sua capacidade de desfazer as intrigas armadas contra ele. Havia,
entretanto, um acordo, quase secreto, dos membros do partido vermelho, na
situação há 24 anos, que juraram fazer de tudo para se perpetuarem no governo.
Na reunião rubra que decidiu definitivamente o
que fazer para se manter no poder, acompanhei de perto, sem ser visto, a
conversa e os planos mefistofélicos do partido (Afinal, não se esqueçam de que
estou em outra dimensão, a dos espíritos, que os ingênuos insistem em chamar de
alma do outro mundo. Coitados, somos deste mundo mesmo, por enquanto...).
— Ao menos setenta anos, dizia um dos
correligionários. Pois então já não estaremos mais vivos e, após nós, que venha
o dilúvio.
— Negativo, contestou outro; se fizermos a coisa
certa, nunca mais haverá alternância de partidos, neste governo. Apenas nós
permaneceremos no poder, sendo reeleitos a cada quatro anos.
— Mas não estamos numa democracia? Disse linda
deputada. É preciso dar oportunidade a outrem de propor novo representante
popular, ainda que utilizemos todos os instrumentos legais para elegermos nosso
primeiro ministro.
— Concordo contigo, falou o senador presente ao
debate. Qual é a maior empresa deste país, cujos órgãos exportadores se
multiplicam aos milhares?
— É a Mineralópolis, respondeu a deputada.
— Pois bem, nomeemos, legalmente, seu
presidente, seus diretores, seus contadores, enfim, para ocuparem cargos-chave
e abramos contas em bancos do exterior, conhecidos por seu sigilo absoluto.
Como sabemos, em nosso país, têm sido achadas muitas minas de ouro e pedras
preciosas, cujo valor é incalculável. Tudo isso está sob o controle
governamental. Negociemos esses minérios, depositemos esses valores nas contas
abertas e digamos ao povo que só temos encontrado pedras de pouco valor, cuja
utilidade maior é fabricar bijuterias.
— E o que será feito da fortuna depositada
nesses bancos, senador? Perguntou, ingenuamente, outro deputado.
— Será empregada numa causa nobre. Repartiremos
os valores, em cotas iguais para nossos correligionários, sob a condição de
utilizarem parte do dinheiro na reeleição de nosso primeiro ministro e o
restante na distribuição de pães para todas as famílias pobres deste país.
— Mas, senador, e o investimento em educação,
saúde e segurança, que tanto têm sido prometidos nas campanhas eleitorais por
todos os candidatos?
— Minha bela deputada, enquanto houver pão na
mesa do pobre, não precisamos nos preocupar com a saúde, pois uma pessoa bem
alimentada não adoece. Se todos receberem a mesma cota de pão, para que
pensarmos em segurança? Ladrão só rouba de quem tem...
— E a educação? E os burgueses da Câmara alta?
— Ora, minha ingênua companheira, se instruirmos
nosso povo, adeus plano de poder ad aeternum. Não queremos reforçar a
concorrência e, sim, governar com todos os poderes materiais e espirituais sob
nosso controle. Quanto aos burgueses de outros partidos, ficarão tão
enfraquecidos que, de resto, só restaremos nós, os burgueses vermelhos. Gostou
do trocadilho? E gargalhou...
— O povo, porém, pode se cansar de viver de
auxílio, sem perspectiva de progresso econômico e intelectual. Não se esqueça,
senador, que ainda temos na Câmara alta as elites não vermelhas, que se
sentirão ameaçadas e procurarão perverter, principalmente as mentes jovens e
sonhadoras.
— Podemos fazer um julgamento semelhante ao de
Sócrates e condenar os que se atreverem a isso a tomar cicuta, curare ou
enfrentar o pelotão de fuzilamento. Propôs um douto parlamentar, que até então
estivera calado.
— Ora, meu amigo, disse o líder do debate, há
uma forma mais prática de resolver tudo isso, sem colocar a população contra
nós, caso apelemos para a força. Usemos a inteligência.
— Como assim? Perguntaram todos a uma só
voz.
— Não estamos no controle da situação? Pois bem,
façamos cédulas nas cores azul e vermelha, com códigos específicos para ninguém
desconfiar de fraudes; porém, contratemos um especialista da mais alta
confiança, não por ser meu filho, mas por ser filiado ao partido vermelho, para
criar um mecanismo oculto nas máquinas de votação, a fim de que as células
vermelhas sejam computadas em
dobro. Meu garoto é um gênio da mecânica e já me propôs fazer
o trabalho pela bagatela de um bilhão de dólares. E o que é isso em vista dos
trilhões?...
— Como assim computadas se ainda não temos
computadores? Perguntou um corvo que tudo ouvia, atento, pousado no ombro de um
dos deputados.
— É modo de falar, mané. - Grunhiu um gato
preto, dono da linda deputada, confortavelmente deitado em bela almofada de
veludo trazida por ela. - Atualmente, computar é o mesmo que adicionar, somar,
contar, entendeu?
— Ah, sim, responderam todos os presentes... Mas
isso será o suficiente para ganharmos as eleições? E se houver unanimidade
contra o poder em nossas mãos?
— Façamos o seguinte, utilizemos todos os
correligionários de confiança do partido para que supervisionem a votação e
orientem os camaradas para só liberarem seu resultado após minuciosa apuração
de todas as urnas. Entenderam?
— Sim, sim, camarada senador. Com a rapidez desse
nosso sistema de captação de votos, em apenas uma hora a mais, decorrente de
fuso horário, poderemos substituir milhões de cédulas "defeituosas",
desde que não sejam as vermelhas...
— Todos aplaudiram-no entusiasticamente com
crepitante gargalhada.
— Ainda assim, senhores, pode haver o caso do
outro partido pedir auditoria para apuração rigorosa dos votos. Disse o
candidato, que estivera presente e calado até então.
— Nosso relator já está instruído a ser
contrário ao procedimento, alegando que tal conduta poderá prejudicar a
confiança do povo em nosso sistema único na Terra, infalível e absolutamente
confiável de apuração de votos. E, como os nossos adversários são completamente
leigos em matéria mecânica, mesmo que haja auditoria, ninguém, a não ser fulano,
eu e nosso próprio candidato, descobrirá o segredo da máquina.
— Por que somente vocês? Atreveu-se a perguntar
o gato.
— Você parece que não tem religião –
respondeu-lhe o corvo -. Nunca ouviu falar da trindade universal?
— Isso mesmo! - gritou um cachorro vira-latas
que passava por ali - executivo, legislativo e judiciário. Tudo pela
democracia.
Todos aplaudiram-no de pé; e o país das
falcatruas continuou fingindo ser a mais inteligente democracia do mundo...
Acesse o blog: www.jojorgeleite.blogspot.com
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