Páginas

terça-feira, 24 de março de 2015

Um sonho no momento da morte



CÍNTHIA CORTEGOSO
cinthiacortegoso@hotmail.com
De Londrina-PR

Senhor Hian formara família. Os filhos estavam casados e já lhe haviam dado alguns netinhos. Ele sempre trabalhara com agricultura, herança de família, mas nos últimos meses foi adoecendo e, há poucos dias, levado às pressas a um hospital.
Todo recurso fora utilizado para a sua recuperação, no entanto, constatado somente diminuição da dor, e nenhuma melhora. A família estava presente; sua esposa, Evie, grande companheira, sempre ao seu lado.
Na quinta-feira, por volta das dezesseis horas, inesperadamente, o quarto de Hian, no hospital, ficara sem nenhum acompanhante, apenas o senhor em seu leito. Isso não havia acontecido antes.
Não demorou muito, um jovem rapaz entrou calmamente e se posicionou próximo à cabeceira. Passou a mão na cabeça do senhor que, com dificuldade, abriu os olhos e observou.
– Olá, Hian – o jovem saudou.
O senhor esboçou um tímido sorriso, mas parecia querer dizer algo.
– Vou inclinar um pouco a cama para tentar falar – o jovem falou por entender a necessidade.
Depois de melhor acomodado, Hian consentiu com mais um discreto sorriso num canto do lábio.
O jovem estendeu as mãos sobre a cabeça do senhor, sem tocá-la, por alguns segundos e uma suave brisa de bem-estar se dispersou pelo ambiente singelo. Então, Hian se mostrou pronto para dizer o que tanto queria.
– Gostaria de falar.
– Sim, diga o que deseja – o jovem, atencioso, falou.
– Um desejo... – o senhor se expressou com certa dificuldade.
O rapaz estava bem próximo.
– Gostaria de dizer o que tanto desejava ter feito – o homem falou devagar, mas um pouco mais sereno após a imposição de mãos sobre sua cabeça.
– Pois bem, estou para ouvi-lo – o jovem disse.
– Meu rapaz, hoje, analisando, mais se confirma a grandeza da vida... diante da pequenez que, muitas vezes, cultivamos no dia a dia – deu uma pausa e seu olhar ficou distante com as memórias. – Quando se é jovem, muito ainda se precisa aprender, mas quando os anos se passam tão rapidamente e os vícios e enganos ganham unanimidade no palco de nossa caminhada, sinceramente, isso tanto nos entristece... e só percebemos, com nitidez, quando somos forçados a nos recolher na coxia e, assim, nos resta tempo para pensar e analisar...
O jovem ouvia o senhor com atenção e carinho.
E recomeçou a consideração:
– Sabe, meu jovem, quando meus filhos eram crianças, quantas vezes me pediram para eu participar dos folguedos com eles... mas o trabalho era antes de tudo. Minha esposa, nos poucos passeios que fez, sempre fora sozinha. Nunca tive tempo de ver os desenhos dos meus filhos... Depois do jantar já estava dormindo e minha esposa lavava toda a louça, sozinha, e colocava nossos pequenos na cama. Analisando agora, o meu egoísmo me deixa menor que uma conta de mostarda.
– Hian, procure desabafar sem tanto sofrer, pois o que está feito serve apenas como exemplo. Compartilhe, mas tenha amor e compaixão por você – o jovem lhe explicou.
– Meu rapaz, quando se constata que tanto ficou sem fazer, muito difícil é a assimilação – o homem se lamentou. – Penso também nos lugares a que poderia ter ido; nos abraços que não dei; no tempo que não tive para ouvir as pessoas; nos entardeceres que nem percebi; no céu azul e no sol brilhoso que não me lembrei existirem; nas gargalhadas ausentes; no olhar amoroso despercebido; no silêncio nos braços da amada que não valorizei... Penso na incomparável maravilha que é a vida... e que não vivi – a essa hora os olhos de Hian estavam banhados pela lágrima do triste arrependimento. – Oh, meu Deus, tenha piedade de mim... 
O senhor não mais pôde continuar pela tamanha emoção que o invadira.  
Então, o jovem mais se aproximou e, novamente, posicionou as mãos sobre a cabeça do senhor.
Em alguns segundos, Hian voltou a se acalmar e procurou a figura do rapaz.
– Desculpe-me, mas ao mesmo tempo que o sinto familiar não consigo me recordar quem é você – o homem falou.
– Hian, talvez eu seja algum amigo desta jornada... que somente cultivou o cuidado por você... e não fora percebido, no entanto, sempre estive ao seu lado – o jovem falou.
E os olhos do senhor estavam, mais uma vez, embargados.
– Meu rapaz, obrigado por me ouvir. Sinto-me um pouco confuso... muitas lembranças, passagens vieram... e de todas pude sentir a emoção. Obrigado, sinto-me mais aliviado... Muito, muito obrigado.      
E Hian suspirou profundamente e o cordão se desfez. Os olhos do homem ficaram úmidos pela visita daquela grande emoção e seguido acontecimento; fora um presente valioso para seu espírito poder seguir o caminho da eternidade.
A misericórdia do Senhor concedeu, a esse homem, a sua própria acareação ainda no invólucro terreno.
No quarto de hospital, o amparo dos espíritos benfeitores era evidente e oportuno. Todos os pormenores foram cuidados; nada foge aos olhos da atenção espiritual.
Alguns parentes do campo etéreo estavam presentes naquele recinto, também dois grandes amigos, de longa data, de Hian. E o amparo se verificou cuidadosamente frente à ocorrência.
 Mais uns segundos se passaram e a esposa do senhor entrou no quarto. Os olhos do companheiro ainda estavam úmidos. A senhora se aproximou rápido, descontente pelo momento solitário do marido, entretanto, quando percebeu que Hian não mais respirava, de fato, o choro, muito sentido, saltou incontido, e o abraço no companheiro foi a primeira ação a fazer. Para a esposa, vieram sentimentos diversos, do tempo vivido e até do último momento de tê-lo deixado, sozinho, por aqueles derradeiros minutos.
Amigos espirituais se mantinham no ambiente procurando, com energia benfazeja, harmonizar e fortalecer os familiares para essa nova etapa, imprescindível para todos.
Talvez não seja um privilégio comum, na hora da partida, poder se arrepender de tudo aquilo que poderia ter feito, no entanto, é oportunidade definida poder fazer o melhor em relação a tudo e a todos, pertencentes, a cada presente existência; o livre-arbítrio será a ação e a sua idêntica reação.
Que as verdades universais possam ser percebidas e amorosamente preservadas, sendo o que é importante sempre valorizado e o que é efêmero sem tanta preservação e cuidado.
O amor, a paz, a bondade, a paciência, a tolerância, a família, a fé, a compreensão, o respeito, todos são verdades universais.
Sempre é tempo de acordar e começar ou voltar a ser o coração que valoriza a vida.
Oxalá, Hian tenha entendido o valor de uma existência e nós, quanto antes, possamos viver mais em acordo com a proposta perfeita e abençoada do Mestre.

Visite o blog Conto, crônica, poesia… minha literatura: http://contoecronica.wordpress.com/



Nenhum comentário:

Postar um comentário