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domingo, 14 de agosto de 2016

Notas de família



Lembrando o nosso querido e saudoso pai...

Vivi na casa do meu pai até os 18 anos de idade. A partir daí, passamos a residir em localidades distantes e bem diferentes, ele em Minas, eu e depois minha própria família no Paraná.
Hoje, dia em que todos se lembram do próprio pai e desejam homenageá-lo, decidi também fazê-lo.
Mas... como?
Lembrei-me então de dois textos que meu querido irmão Arthur Bernardes de Oliveira escreveu sobre aquele que, com Anita Borela, nos pôs no mundo, facultando-nos uma oportunidade preciosa que é passar novamente pela experiência reencarnatória, único meio que possibilita à criatura humana a evolução. (Veem-se nas fotos abaixo: na primeira, Anita Borela e meu pai; na segunda, tirada no dia do meu casamento, meus sogros, eu, Célia, meu pai – de terno claro - e minha madrasta D. Sinhaninha.)

   Os textos – adiante transcritos – compõem o livro de memórias que Arthur escreveu aos 33 anos de idade, intitulado Uma estrela em forma de flor (capa ao lado), publicado em 28 de julho de 2014 pela EVOC – Editora Virtual O Consolador.
Ao reproduzi-los desejo homenagear Astolfo Olegário de Oliveira – o A.O., como nós o chamávamos, – personagem central, modelo e exemplo indiscutível de minha vida.
Eis os textos escritos por Arthur Bernardes de Oliveira:

O pai é o exemplo

Meu pai é um homem impressionante. Nascido em 1908, filho de José Basílio e de D. Rita. Não conheci a vovó Ritinha e do meu avô só tenho uma recordação bastante desagradável. A dos seus últimos momentos de vida, estirado numa cama, nos estertores dos últimos suspiros. Aquele homem magro, cadavérico, com a língua enroscada, assistindo, sem nenhuma possibilidade de luta, à chegada do fim.
Inteligência aguda, nos cursos que fez, quase todos particulares, e com o esforço próprio, foi o primeiro da sala. Pobre, tendo como mãe uma mulher um pouco debilitada mentalmente, sofreu como cachorro, na infância, na mocidade e nos primeiros anos de casado.
Estudou por correspondência e concluiu um curso de Contabilidade, tendo defendido alguns pedaços de pão, suplementando durante a noite o pouco ganho do dia.
Parece-me que as dificuldades o levaram a uma vida um pouco desregrada nos seus primeiros anos, até que a presença de Abel Gomes mudou o rumo de sua vida. Ingressando no Espiritismo, desenvolveu enormemente a sua cultura, através da literatura espírita, sem favor nenhum das melhores que o mundo conhece. Melhores e maiores.
Fundou o jornal “Arauto da Fé”, em companhia do Mário Vitoriano e Amadeu Santos, e conseguiu, creio que por correspondência, uma carteira de jornalista.
Durante muitos anos foi assim uma espécie de a grande cabeça da cidade. Escrevia quase que sozinho dois jornais: “Arauto da Fé”, publicação espírita, e “A Tribuna”, publicação da Prefeitura Municipal de Astolfo Dutra.
No Espiritismo, cedo começou a sua faina de pregador, transformando-se num dos maiores oradores espíritas que eu conheço.
Dono de uma facilidade de expressão admirável e possuidor de um estilo claro e correto, produziu páginas admiráveis. Polemista, dele se tornou célebre a participação contra o Professor José Schiavo, da cidade de Ponte Nova, a respeito de problemas e assuntos religiosos.
Tem viajado por inúmeros estados e em toda a parte por onde passa deixa uma legião de amigos e de admiradores sinceros.
Não conheço ninguém com tanta capacidade de fazer novos amigos. É um homem bastante experimentado e de tudo conhece um pouco. Embora haja assuntos dos quais ele conheça muito.
Difícil escrever sobre ele. Dono de um coração admirável, não distingue pessoas. Pobres e ricos à sua presença sentem-se absolutamente à vontade.
Dono de uma prosa cativante, com ele se passa horas e mais horas, sem que o relógio nos desperte.
Sua grande virtude é não medir dificuldades para ajudar seus semelhantes. Patrão excelente, todos os seus viajantes tornaram-se mais ricos do que ele.
Dinâmico, sua vida toda tem sido encaminhada no sentido de construir. Tem o hábito da construção. Não fica sossegado, se não estiver edificando alguma coisa.
Politicamente divergimos quase sempre. Quando na Revolução de 1932 esteve na iminência de ser preso, parece que o seu espírito se inclinou para o terreno da oposição. E como oposicionista ferrenho, tem acentuadas simpatias pela UDN. Ora, como eu sou fundamentalmente avesso ao sistema político-partidário udenista, é natural que os nossos pontos de vista não se encontrem, o que, sinceramente, lamento.
Eu entendo que, embora mais moço, esteja em melhor situação para analisar determinados problemas do que ele. Sobretudo porque em meu espírito ainda não chegou aquela marca da perseguição que ele conheceu, duramente, de perto, e que culminou por lhe dar uma visão muito pessoal das coisas, subordinando-se a uma filosofia que eu não consigo aceitar.
É natural que ele me suponha enganado, não só pela consciência que tem da própria inteligência, indiscutível aliás, como pelo número de anos que leva de vantagem sobre o filho.
É o tipo do homem justo. Sua justiça só sofre distorções quando em debate certos fatos políticos, e aí consolido milha posição, porque sou justo em todas as situações, inclusive na política.
Como pai, talvez motivado pela dureza de sua vida e de seus problemas iniciais, nunca permitiu que nos aproximássemos muito dele, razão por que havia, e até hoje ainda há, um certo temor dos filhos no debate de algumas ideias na sua presença. Por isso mesmo, entregava à esposa a tarefa de nos encaminhar mais de perto. É evidente que dele temos recebido sempre as mais preciosas orientações, mas entendo que levamos vantagem, quando confrontamos a influência dele e de minha mãe.
É claro que ele não se sente diminuído com isso. Fã número um da esposa, sabe o tipo de mulher e de santa, a quem ele transferiu, em grande parte, a tarefa da educação dos filhos.
Nós, em casa, nos nossos momentos de desânimo, algumas vezes, o culpávamos, achando-o melhor para os estranhos do que para nós. No fundo, estávamos enganados, porque ele em outra coisa não pensa senão na felicidade dos filhos.
Como avô, talvez porque o tenha sido muito cedo, não é dos mais amorosos. Mas faz lá de vez em quando a sua média com os netos. Todos nós o adoramos. Mesmo quando o censuramos muito, naquilo em que não nos atende, fazemo-lo por amor.
Bastante acomodado, raramente escreve aos filhos. Mas, quando o faz, apaga de uma só vez todos os aborrecimentos provocados pelo silêncio tão longo.
Enfim, é preciso uma boa análise para que o entendamos melhor.
Extremamente caridoso, construiu, com outros irmãos, a Fundação Espírita Abel Gomes, para abrigar menores desamparadas. Vive para aquela casa. Todos os seus sonhos se orientam para a sua Fundação e tudo o que faz é visando ao desenvolvimento maior daquela casa, com maior conforto e melhor educação para as meninas que lá se abrigam.
Pai de onze filhos, muito cedo ficou sozinho. Casou todas as filhas, e três dos cinco filhos.
Em matéria de planos, foi dele que herdou nosso mano Amaury. Ele faz planos fabulosos, mas logo após acomoda-se, e os abandona, por comodismo, para ficar em paz.
Solicitado por toda parte, como orador espírita, quase sempre arranja uma “dor de cabeça” para afastá-lo do ônibus.
É das pessoas que conheço a que mais admiro e a quem mais afeição eu dedico. Confidente de muitos anos, e companheiro de todas as horas, fizemos jornadas memoráveis e debatemos ideias e problemas importantíssimos.
Sei que a minha saída representou em sua vida uma lacuna, tão grande quanto a que a sua ausência provocou no meu caminho.
Alegre, jovial, prazenteiro, junto dele não se conhece tristeza. Amigo de seus amigos, muitos apertos sérios tem enfrentado em sua vida, por não saber deixar de atender a quem o procura.
Correto em seus negócios, honesto até a sublimação, é um homem completo. Culto e inteligente, bom e amigo, dinâmico e feliz.
É assim o meu pai, como lhe disse, um homem impressionante. Que está construindo uma obra que há de dignificar o seu futuro e abençoar o seu passado.
(O texto acima foi escrito em 1964 quando Arthur tinha 33 anos e A.O., 56. Compõe o cap. XIV do livro Uma estrela em forma de flor.)

Meu pai

Meu pai era extremamente severo conosco. Não elogiava; não aplaudia; achava que a gente estava sempre dando menos do que podia dar. Pelo menos, perto da gente. Longe, não. Longe ele sempre falava bem dos filhos; elogiava alguma virtude que a gente pudesse ter; algum desempenho nas manifestações das artes que a gente sempre cultivava para apresentar nas reuniões de nossa juventude.
Era como um rei ou uma rainha. Ai da gente se tentasse dirigir-lhe a palavra. Só quando ele puxasse conversa ou perguntasse alguma coisa.
Não me lembro que foi que eu e meu irmão mais velho, Amaury, fizemos para tomar dele uma surra com um pau de barbante nas costas. Antigamente (eu não sei se ainda há essa forma de apresentação desse tipo de barbante a que eu quero me referir), mas antigamente esse barbante mais grosso, utilizado no comércio de fumo em corda, era acondicionado em forma de – como direi? – de trançado, do comprimento de mais ou menos 60 centímetros e formava uma espécie de corda grossa, pesada, que batendo no lombo da gente deixava marcas profundas, até cortes mesmo. Ele era assim.
Meus dois irmãos mais velhos, a Marília e o Amaury, brilhavam na escola. Estavam no 1º e 2º anos do antigo curso primário (hoje esse curso é chamado de ensino fundamental). Só tiravam, nas provas de desempenho, dez com distinção e louvor. Era mais que dez. Mas como na avaliação eles só utilizavam valores até dez, para dizer que aquela prova valia mais que dez, eles inventaram essa forma de dizer isso, acrescentando ao número dez essa expressão “distinção e louvor!” com uma exclamação enorme para chamar mais atenção ainda. Meu pai espumava de tanta alegria. Todos, na pequena cidade de Astolfo Dutra... (antigamente minha cidade, como distrito de Cataguases, chamava-se Porto de Santo Antônio. Vejam que coisa mais bonita: Porto de Santo Antônio. Porto, lugar de emoções. De quem parte, emoções de tristeza, de saudade, de dor. De quem chega, emoções de alegria, de reencontro, de renovação... E ainda mais: de Santo Antônio, o santo das casadoiras.) Quando virou cidade, resolveram mudar e colocaram um nome que nada tem a ver com a cidade: Astolfo Dutra. Astolfo Dutra foi um homem muito importante. Maior até que a nossa cidade e seus habitantes. Mas nada tinha a ver com o nosso Porto de Santo Antônio.
Pois bem, aí cheguei eu. Foi um fracasso. Tomei pau no terceiro ano. Uma tragédia. Fiquei marcado como a exceção inevitável. Não há um provérbio que diz que “toda regra tem exceção”? Pois bem! Eu fui a exceção dos filhos do Astolfo. Ganhei logo novo status e nova alcunha: o burro da família. Nisso que aconteceu, meu pai não quis investir comigo nos estudos. Amaury foi ser interno no Colégio de Cataguases, onde continuou brilhando como sempre; eu fui ficando por cá fazendo os mandados da casa. Minha obrigação mais importante era ir ao correio buscar a correspondência de meu pai que chegasse no trem das sete. Eu podia estar no centro assistindo a uma reunião importante. O trem fazia barulho na linha por detrás da nossa rua, meu pai olhava para mim, indiscretamente, todo mundo via, e eu tinha que levantar rápido e correr para o correio aguardar que Dona Guiomar distribuísse a correspondência chegada para os escaninhos de cada portuense que comumente recebia maior volume de correspondência para, depois, abrir a porta e começar a entregar às pessoas presentes aquilo que houvesse chegado. De posse daquele maço de cartas, cartões, revistas, jornais, voltava eu orgulhoso para entregar tudo aquilo a meu pai.
Tempos depois, acho que, com a consciência pesando, meu pai chegou em casa, em cima quase do exame exigido para a matrícula no primeiro ano do ginásio (hoje é uma parte do tal curso fundamental) e me disse de supetão:
– Olha, vou dar a você uma chance. Vai fazer a prova do exame de admissão e se passar eu o mando pro ginásio. Se não passar, a manivela está te esperando para o empacotamento do fumo. (Meu pai era fumeiro: vendia fumo para os estados de São Paulo, Mato Grosso, Paraná etc. Naquela altura já tinha um punhado de viajantes trabalhando pra ele.)
Parei com tudo. Minha mãe me liberou de todas as obrigações e eu me debrucei sobre um livro com toda a matéria exigida na prova e com muita sorte consegui ser aprovado. Que sufoco! Mas valeu a pena. Pude então começar, já velho para a primeira série, minha trajetória estudantil. Eu estava entrando no ginásio com quatorze anos, quando todos os meninos da minha idade estavam já saindo com o diploma na mão.
Meu pai era um homem extraordinário. Um dos maiores oradores da Zona da Mata mineira.  Autodidata, foi pioneiro, juntamente com Amadeu Santos e Mário Vitoriano, na divulgação da doutrina espírita em nossa terra.
Hoje, Astolfo Dutra é a mais espírita cidade de nosso País. Fruto, sem dúvida, da trajetória desses três pioneiros de que ninguém se esquece na cidade.
(O texto acima foi escrito em 2012 quando Arthur tinha 81 anos e A.O. já havia desencarnado.  Compõe o cap. 2 do Apêndice constante do livro Uma estrela em forma de flor.)


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