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terça-feira, 14 de março de 2017

Contos e crônicas


A indígena menininha

CÍNTHIA CORTEGOSO
cinthiacortegoso@gmail.com
De Londrina-PR

Dily dançava sob os raios do pôr do sol. Ela dizia que era seu agradecimento por mais um dia maravilhoso. Na aldeia onde morava, todos agradeciam à natureza... o ar, a água, o fogo, a terra, as flores, as folhas, a comida, os animais, a vida.
Os raios avermelhados do horizonte para a menina, pensava ela, “eram o aconchegante abraço de Deus”.
Os pequeninos pés pisavam a terra e a grama, sentiam a água do rio e as texturas das rochas e dos cascalhos. Seu rosto recebia o vento formado de liberdade e paz. Seus olhos podiam apreciar as cores e as suas inúmeras tonalidades. Seu nariz sentia os cheiros e reconhecia cada um deles desde o início da primavera ao término do inverno.
Definia com precisão as folhas de floresta ao redor da aldeia; conhecia cada pássaro ou animal de porte grande, médio ou pequeno e ainda os nomeava. Os insetos eram muito observados pelos olhos da menina e com aqueles estes muito aprendiam.
O olhar de Dily era meigo, amoroso e atento. Percebia quando um animalzinho não estava bem ou uma criança estava triste, quando um adulto estava preocupado com algum problema surgido na aldeia ou se a observação eram apenas ações cotidianas em sociedade indígena.
Passou a interpretar para qual lado o vento soprava, pois, dependendo da direção do sopro, podia ser chuva calma ou até temporal. A cada nova descoberta, Dily amava e respeitava ainda mais a natureza. A pequena indígena aprendia todos os dias. Mas ela não conseguiu prever nem impedir a desventura ocorrida em sua aldeia: uma tempestade terrível avassalou todo o lugar e sua família inteira não mais amanheceu no novo dia, não somente os seus familiares, apenas Dily pôde abrir os olhos na manhã após o dilúvio por se esconder dentro de um tronco de uma grande árvore.
E a indígena menininha estava só naquela floresta com fauna e flora tão conhecidas, mas, ao mesmo tempo, numa situação imensamente estranha: sozinha... e ainda tão pequenina.
Começou a observar o desastre no local e seus olhinhos eram muito pequenos para suportarem as lágrimas de tanta dor; a face morena dourada estava tão triste. A menina encontrou a sua família em corpos sem vida, os amigos, os animaizinhos... mas dor sentida foi quando encontrou o corpo de sua amada avó, sua melhor amiga, quem lhe ensinou quase tudo que sabia, sinônimo de amor e de respeito. Dily ajoelhou-se ao lado, pegou a mão, que tanto carinho lhe fizera, e beijou-a. Acariciava o rosto da índia anciã e determinada, mas, também naquele momento, a menina pôde sentir a delicadeza e a suavidade da senhora que somente um espírito em real progresso poderia ter. E sua avó era assim.
Um silêncio choroso estava presente. Dily procurou deixar o corpo da avó e os dos outros em uma posição mais serena e isso foi trabalho para muitos dias. A menina procurou organizar a aldeia da melhor forma, no entanto, reconheceu que não poderia ficar ali, não havia condições em muitos sentidos, então, foi a alguns quilômetros à frente onde um dia havia ido com a avó que lhe dissera que aquele lugar era muito abençoado e profícuo. A antiga aldeia transformou-se num santuário para a menina e o tempo foi indiscutível companheiro na vida da pequena indígena.
Com os meses avançados, Dily não voltava diariamente para fazer a oração na antiga aldeia como fizera no início. A cada novo amanhecer se lembrava dos ensinamentos da avó, como um deles era preservar no coração, por meio do sentimento e pensamento, os que se ama, e toda sua família indígena perdida no dilúvio se encontrava em paz e muito amada no puro coração da menina.
Depois de muitos dias, Dily, numa manhã dourada e de novo feliz, dançou sob os raios do lindo amanhecer, há quanto tempo não fazia. Aquela dança, acompanhada de um tímido canto, era o agradecimento pela vida, pois a menina podia ver a beleza da natureza, sentir o vento fresco e puro, comer a comida natural oferecida, podia reconstruir uma nova estrada a caminhar, uma nova alvorada para viver. E isso estava realizando muito bem.
Até uma moradia havia construído com muito cuidado e eficiência. Novos amigos animais já havia aos montes... e a avó era presente em tudo o que a neta fazia. E em quantos entardeceres o rosto da anciã se apresentava sorrindo para a pequena querendo dizer que a vida continua e o sentimento atravessa tempo e plano e chega ao destinatário amado. E a neta sorria para os olhos que a olhavam.
Conforme os dias se acalmavam, mas trabalho sempre havia, Dily, mesmo com uma casinha bem arrumada, com sua horta, algumas flores em volta, um novo ambiente aconchegante, comida fresca, tantos amigos animais, ela era menininha... gente e desejava muito conviver com outras pessoas. Nesse longo tempo após a grande mudança, Dily vira apenas duas pessoas, uma única vez, um médico e um assistente que visitavam as aldeias daquelas terras. Nessa ocasião, os dois quiseram levá-la para a cidade, mas, com muita destreza, a menina indígena se embrenhou no mato e só voltou depois de dez horas; eles já haviam ido embora.
Portanto, agora era Dily que queria muito ver esses rostos dos quais já fugira. E os dias passavam.
E tantos dias transformaram-se em meses, parecia que a menina havia sido abandonada. E após a única visita nem os dois homens voltaram à aldeia como faziam. De certa forma, por observarem o acontecimento na antiga aldeia e a constatação de única sobrevivente que fugira, o local e a sua proximidade foram encerrados para a lista de visitas que o governo mantinha.
Após quase dois anos de acontecimento, Dily não tinha mais o olhar alegre, mas mantinha-o amoroso, era o seu jeito. E a menina precisava de ajuda, aos poucos começou a adoecer. A pequena indígena precisava de um abraço, do convívio com pessoas que lhe dessem amparo e carinho... e a ausência e a saudade de quem amava e não mais podia estar fizeram com que ela enfraquecesse e adoecesse.
Deitadinha em sua cama de um tipo de capim seco, Dily ficou completamente esmorecida; sua respiração era fraca e seu corpinho, tão frágil, ainda estava mais miúdo. E os olhos da avó viam tudo e ela, configurada em outra dimensão, estava com tristeza ampliada sem poder muito o que fazer, mas todo ser recebe auxílio onde se encontra, no tempo e na forma adequados.
E a dificuldade da pequena continuava, mas ao mesmo tempo o desespero não a detinha, pois bem no fundo de seu coraçãozinho podia sentir a felicidade por reencontrar a amada avó ‒ aqueles sábios indígenas acreditavam na eternidade da vida ‒, mas outro sentimento mais profundo tomou Dily: a valorização dos presentes dias. Sua avó dizia que se os olhos piscassem havia energia para a conquista.
Uma suave névoa leve e completa de bem-estar envolveu a pequena menina que não pôde observar muito menos compreender o ocorrido no momento, porém, sua melhora foi crescente. Seus olhinhos começaram a brilhar, suas mãos se aqueceram e também seus pés, todo o corpinho recebeu a benéfica energia... como um renascimento.
A suave névoa era na verdade, espíritos em socorro pela pequena, os respeitados ancestrais; a avó também observou o amparo e quanto se emocionou pela permissão. Muito discretamente um canto indígena acompanhou todo o ato amoroso.
E no tempo adequado, sem poder contá-lo em segundos terrenos, todo o envolvimento cessou, o que pudera ser permitido assim estava, no entanto, o resultado aguardado; a avó permanecia com olhos bondosos para a frágil menina.
O que estava previsto poderia ser, de fato, até aquela medida de tempo na floresta terrena, na idade de menina. Apenas a sabedoria maior detém esse saber.
Discretamente, a pequena índia começou a se mexer como quem quer despertar de um descanso profundo. Abriu os olhinhos, esticou os braços, estava acordando para uma vida nova. A menina agora, em seu espírito milenar, havia sido restabelecida e sua energia estava vigorosa com uma saudação que lhe viera do lado de fora.
‒ Por favor, tem alguém aí? ‒ uma voz perguntou.
Dily demorou uns segundos a responder, como quem precisa assumir todos os controles do corpo, e respondeu:
‒ Sim.
A menina não conseguiu ainda se levantar e correr para atender como faria antes. Ela estava terminando o processo de despertamento. Conseguiu sentar-se.
‒ Sim – respondeu outra vez.
‒ Posso entrar? ‒ a voz perguntou.
‒ Sim – outra vez.
    Devagar, uma mulher entrou acompanhada de um homem e de outro jovem. Todos vestiam branco.
A menina, sentada na cama, ainda necessitada do recurso de uma nutritiva alimentação, sorriu.
‒ Minha querida, está sozinha? ‒ a mulher perguntou.
‒ Sim.
‒ Oh, meu bem. Vamos ajudá-la.
Os três de branco rodearam a pequena ao amparo necessário. O homem, com todo carinho e cuidado, tomou a menina nos braços e os quatro saíram do local singelo onde não mais poderia abrigar aquele coração com algo abençoado a realizar. Eram novos médicos que cuidariam daquela região.
Quem sabe Dily terá seu nome entre os grandes feitores do bem, como em prêmios notáveis de paz e ciência. No entanto, algo definido é que todo propósito benfazejo será ladeado para o seu cumprimento.
E os olhos bondosos da avó sorriram no horizonte a se dispersarem na natureza.
   
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