O
luthier
CÍNTHIA CORTEGOSO
cinthiacortegoso@gmail.com
De Londrina-PR
Pierre Chantal era um luthier que
morava na casa cinza com muitas janelas. (1) Ele era francês.
Também havia muitos gatos na casa, eram os seus “chats”, gatos em francês, mas
sem pronunciar as duas últimas consoantes, simplesmente [chá]. A língua
francesa é muito misteriosa, pois se escrevem todas as letras, mas nem todas
são pronunciadas. O senhor Chantal também era misterioso e ainda construía
violinos.
Dois dos gatos eram cinza; outros
dois, brancos; outros dois, pretos e apenas um, malhado, com fundo branco e
pintas amarronzadas, total de sete gatos. E como havia sete grandes janelas,
cada gato se exibia, sentado, no parapeito de uma delas, e sabe-se lá como,
cada dia um gato ficava numa janela, com rodízio em sentido horário, e durante
a semana não se confundiam... gatos são gatos... inteligência, observação e uma
certa metidez. E tanto lambiam seus pelos, suas patas. Tomavam, rigorosamente,
o sol da manhã, sabiam a hora do almoço; à tarde passeavam pela redondeza e por
volta das cinco e meia da tarde, antes de a empregada fechar as janelas e ir
embora, os sete gatos retornavam para não mais saírem à noite, só, mesmo, no
dia seguinte.
Quanto à empregada, ela se chamava
Seraphine e trabalhava para o senhor Chantal há mais de trinta anos.
E o senhor Chantal, muito pouco, saía
de casa. Ele transformou uma área bem grande de dentro da casa em sua oficina.
As duas salas espaçosas se tornaram seu local de trabalho.
Naquela oficina com sete janelas,
muitos violinos foram construídos. Violinos coloridos, grandes, pequenos,
alguns que só tocavam músicas russas; outros, apenas músicas italianas; outros
ainda, músicas japonesas; ainda outros foram construídos, simplesmente, para
tocarem músicas sacras. Alguns violinos foram construídos para crianças;
outros, para jovens; outros, ainda para adultos e uma quantidade, para as
pessoas mais velhas.
O senhor Chantal amava construir violinos
ou talvez isso o ajudava a esquecer algo. Ele construiu violinos durante quase
toda a sua vida. Ele não se casou, não formou família, não teve filhos por isso
não brincou com esses filhos; ele nem conheceu outros países, nem pessoas; nem
quis ver mais vezes o céu, admirar as estrelas e sentir o calor do sol. Ele
nunca foi à feira às terças-feiras; Seraphine quem ia, ela pagava as contas,
fazia as compras e também cuidada da conta no banco. O senhor Chantal, a
maioria das vezes, recebia o pagamento dos violinos por depósito bancário;
outras poucas vezes recebia em dinheiro em sua oficina.
E os gatos... eles não foram
comprados, nem buscados em algum lugar pelo senhor Chantal. Os gatos foram
aparecendo, na verdade, um foi chamando o outro. E, incrivelmente, quando
somaram sete, mais nenhum gato apareceu. Sete janelas; sete gatos.
Durante o dia todo, o senhor Chantal
ouvia música clássica, calma, em volume baixo; os gatos pareciam gostar, pois
ficavam sentados no parapeito da janela com os olhos mais fechados que abertos.
Também eram calmos e nem miavam muito, só mesmo quando estavam com fome de
leão. Mas a senhora Seraphine não os deixava com tanta fome assim, colocava
ração para eles e também água limpa todos os dias pela manhã, se precisasse
colocava mais água durante o dia, mas ração era só uma vez, mesmo assim, nunca
ficaram com fome de leão.
No vidro de bolachas sempre havia
umas bolachinhas de nata que Seraphine fazia; o senhor Chantal gostava de comer
umas delas às quatro da tarde com uma xícara de chá e ele deixava algumas no
canto de um pequeno tapete na sala para os gatos quando chegassem do passeio
vespertino. Eles quase sempre comiam tudo.
Cada gato tinha um nome e todos os
bichanos eram educados e mansos e eram sempre chamados pelo nome tanto por
Seraphine quanto pelo senhor Chantal, mas o luthier pouco os chamava, ele só
queria mesmo construir violinos. Isso não quer dizer que ele não gostava deles,
apenas não os chamava, pois os bichanos sempre estavam por perto e estes também
gostavam do senhor Chantal e gostavam também de Seraphine. Era na verdade, um
relacionamento sem cobranças, só isso.
Senhor Chantal e Seraphine pouco se
conversavam, mas muito se entendiam.
Há uma revelação: ele, todo dia 15 de
cada mês, saía às oito horas da manhã, com algumas flores colhidas de seu
jardim, e retornava entre dez e dez meia.
Senhor Chantal trabalhava com roupas
formais, calça com vinco, camisa de manga comprida, normalmente de cor clara, e
suspensórios. Vestia-se assim, pois se algum cliente chegasse já estava
arrumado para recebê-lo, era isso que um dia explicou para Seraphine. E ele
recebia encomendas de vários países, mas essas encomendas ‒ os violinos ‒ eram
feitas por telefone. Então, depois de prontos, os violinos eram despachados
pelo correio que vinha busca-los na casa do luthier.
Sábados e domingos eram dias comuns,
de muito trabalho, apenas o fazedor de violinos encerrava o expediente às
quatro da tarde, hora do chá com bolachas, e ia conferir seu belo jardim feito,
aos pouquinhos, durante cada sábado e domingo depois das quatro ao longo da
vida.
Com as mãos, enlaçadas, para trás das
costas, o senhor Chantal observava as flores e sabia detalhes de cada uma.
Olhava minuciosamente e também conversava com elas; isso ele havia aprendido
quando era bem criança, com seu avô que o criara, este lhe havia ensinado que
as plantas tinham sentimento. E esse aprendizado fora muito apreciado por
Pierre Chantal.
E observava e fazia um carinho de
leve nas folhinhas, mas não em todas, eram muitas. E naquele domingo, depois de
o jardim ter sido observado pelo olho clínico do próprio cultivador e também de
ter sido regado, pois o senhor Chantal usava um belo regador antigo e afirmava,
nas poucas palavras, que a regagem por regador era mais carinhosa, o homem se
recolheu quase seis da tarde; as andorinhas buscavam os ninhos, todo mundo quer
voltar para casa, para quem ama. O sol estava alaranjado e bem fraquinho sumindo
no horizonte. O dia estava acabando para começar a noite.
E para o senhor Chantal, a noite não
era tão bem-vinda, era o período que podia ouvir mais os sentimentos, sentir
mais saudade... saudade.
Os gatos eram os companheiros, mas
eles eram quietinhos e dormiam cedo, logo depois de comerem alguma ração
sobrada no potinho ou algum restinho de bolacha no tapete.
Mais uma noite e o senhor estava
sozinho, em sua casa, com a saudade e os sentimentos.
Ele gostava de assistir a programas
sobre cultura e músicas clássicas, mas, muitas vezes, apenas olhava para a tela
da TV sem assistir a nada. E quando algum programa apresentava concertos com
peças mais dramáticas, então, seu olhar ainda mais se perdia no espaço e
algumas lágrimas escorriam pela face do senhor francês.
E nessa noite, quando a saudade não
cabia mais em seu peito, e a tristeza o tomara, senhor Chantal, em desespero,
suplicou a paz que há muito não sentia, desde quando começou a construir
violinos. Num ato desatinado, encolhendo-se na poltrona, com a face banhada,
começou a verbalizar sua dor...
‒ Há quanto amo, há quanto sofro...
nada mais me resta. Desde aquele 15 de abril do fatídico ano, não mais pude
viver... sobrevivo, pois sou insignificante demais para me tirar o que Deus me
concedeu... mas confesso que muito já pensei ‒ falava com voz alta que há muito
não se ouvia. ‒ Por quê? Por que com tanto amor não tive tempo de doar... para
minha Gabrielle... que me deixou por, equivocadamente, comer uma pequenina
fruta venenosa, pensando que fosse uma doce fruta comum no parque onde
passeávamos uma semana antes de nosso casamento... Por quê? Ajude-me, Pai!
O senhor Pierre Chantal desfaleceu na
poltrona. Certamente, vai melhorar, pois fora a primeira vez que exteriorizou
seu sofrimento; a cura, enfim, começara.
Sou o primeiro violino a ser
construído pelo grande luthier. Sou o início da fase da construção da alegria
para muitos corações por meio da música, já que o do senhor francês vivera até
agora na aflição dos dias, entretanto, poderá, a partir de hoje, sentir os
acordes com mais leveza, pois se permitiu chorar e revelar a dura dor; o pedido
de ajuda estava feito, a bondade divina poderá finalmente operar.
A partir do fatídico dia é que o
senhor Chantal começou a construir violinos; “Gabrielle amava o som dos
violinos”, o senhor Chantal sempre murmurava.
(1) Luthier (palavra
francesa, de luth, alaúde: leia-se lutiê): artesão que fabrica ou repara
instrumentos de corda com caixa-de-ressonância.
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