Uma estrela azul sob o céu
CÍNTHIA CORTEGOSO
cinthiacortegoso@gmail.com
De Londrina-PR
O chão era de terra não só ao redor do casebre, mas em quase toda a
cidade, só mesmo bem no centro da cidade havia calçamento, e também era sujo de
terra.
E no casebre número dezessete morava Shaira, uma menina africana de
doze anos. Mais cinco irmãos, uns maiores e outros menores que ela, sua mãe e a
avó materna também dividiam o local suspenso por frágeis estacas de madeira
velha. Esse era o cenário de quase toda a cidade, com exceção do centro que era
calçado e possuía construções de comércio e alguns estabelecimentos necessários
para o funcionamento de uma pequena área de civilização.
A mãe trabalhava numa fabriqueta de costura. Cumpria quase doze horas
diárias de trabalho para manter a comida para a família, uma mistura de farinha
com água mais alguns legumes era prato rotineiro. A avó fazia uns bolinhos
típicos da região a fim de conseguir um pouco de dinheiro para algum remédio ou
comprar algo de quase tudo que lhes faltava.
Shaira era diferente dos outros irmãos e das crianças que por ali
viviam. Era mais quieta e muito observadora. E adorava olhar para o céu quando
a noite começava a chegar. Ficava encostada, se a deixasse, por horas, no
batente da única porta do casebre e olhava tanto para aquele profundo céu com
estrelas. Não se encantava muito pelas brincadeiras comuns do lugar. Mas ao
mesmo tempo era cheia de ternura e muito carinhosa com sua família.
A avó muito a observava. Era uma senhora simples que exageradamente já
havia trabalhado em sua vida. Desde criança era entregadora de água, ou seja,
ela ia até a fonte, um lugar bem distante, enchia latas grandes de água e
trazia para as pessoas que tinham alguma moeda para lhe dar. Com esse trabalho
criou a filha e ajudou a criar os netos, mas ultimamente sentia, com dor e
desconforto, o excesso cometido ao corpo ao longo dos anos. E os bolinhos agora
podiam ajudar a renda. E a avó perguntava para Shaira:
‒ Minha neta, o que tanto olha para o céu?
‒ Eu gosto muito do céu, vó ‒ simplesmente a menina respondia e
continuava com o olhar compenetrado.
A avó a olhava um pouquinho mais e voltava para os afazeres.
Durante o dia, Shaira ia à escola, ajudava em casa. A magia começava
com o início da noite e continuava noite adentro, mas às dez horas já estava na
cama junto com todos os irmãos.
A menina gostava muito de cantarolar uma música folclórica da região.
Eram assim os versos que ela sempre repedia: “E um dia, quando for forte e
grande, terei condições de salvar meu povo e subir para o céu”.
Naquele dia, última sexta-feira do mês, Shaira voltou da escola em
companhia de seus irmãos e alguns coleguinhas, como sempre fazia. Quando ela e
os irmãos chegaram, a comida estava pronta, a mistura de farinha com água mais
alguns legumes; a avó é quem preparava, pois a mãe trabalhava na fabriqueta
quase doze horas por dia.
Depois de lavarem as mãos, as crianças se sentavam num banco de madeira
que havia no casebre. A avó lhes servia um prato de comida para cada um. Sem
falatório, nem boca aberta, as crianças e a avó comiam com calma e muita
educação. Esse comportamento era natural naquela família. Quando muito, durante
a refeição, uma ou outra criança compartilhava algum acontecimento.
Alimentados, então era hora de cada um fazer o que deveria. E Shaira
sempre lavava a louça do almoço. Assim também fez naquela sexta-feira. E depois
da tarefa feita, ela pediu à avó se poderia ir à casa de uma amiga para as duas
fazerem o trabalho da escola.
‒ Sim, minha neta. Mas tome cuidado ‒ falou a avó.
A menina deu um beijo no rosto da querida senhora e nos dos irmãos que
ali estavam, pois dois deles já haviam saído para brincar. Pegou o material e
foi para a casa da amiga.
O trabalho escolar consistia em criar uma poesia e declamá-la no dia da
grande apresentação da escola. Alguns países fizeram uma aliança cultural,
cujos vencedores das escolas participantes viajariam para um país europeu e
apresentariam as poesias. Então,
Shaira chegou à casa da amiga Malika, que vivia numa situação financeira um pouquinho
melhor. As duas eram muito amigas e decidiram se reunir para se ajudarem com o
propósito da criação da poesia.
Sentadas à mesa, com lápis na mão e papel à frente. Só faltava mesmo a
inspiração.
As duas começaram a rir. A graça de criança.
‒ Mas, Malika, precisamos ter ideia... precisamos saber sobre o que
vamos escrever ‒ Shaira falou.
‒ É mesmo. Precisamos escolher o que queremos escrever ‒ pensou um
pouco. ‒ Será que podemos colocar sobre qualquer coisa? ‒ a amiga perguntou.
‒ A professora falou que sim, mas que precisa ter sentimento, porque
poesia não existe sem sentimento ‒ Shaira relembrou o que a professora havia
explicado.
E aquela tarde foi a primeira das cinco que as duas se encontraram para
tentar escrever a poesia. Malika finalmente escreveu sobre o amor que sentia
por seu cão vira-latas de olhos cor de mel. Ela o amava, então, descreveu esse
sentimento com simples e verdadeiras palavras.
No entanto, Shaira, na véspera do dia da entrega da poesia, ainda não
havia terminado e muito menos poderia declamar algo que ainda não existia. Ela
se despediu de Malika que lhe falou:
‒ Shaira, podemos dizer que escrevemos juntas a poesia e pedimos para
declamar. O que acha?
Shaira a escutou com carinho e lhe falou:
‒ Malika, a professora disse que cada um precisa escrever a sua própria
poesia. Desse jeito, nós duas ficaremos sem nota... e você já escreveu a sua...
que ficou linda ‒ Shaira falou com a delicadeza que lhe era tão
própria.
‒ Gostaria que você já estivesse escrito uma bela poesia ‒ Malika
falou.
‒ Sim... ‒ Shaira falou meio desanimadinha e logo foi embora.
Ela estava esperançosa que durante o caminho de volta tivesse uma ideia
que a ajudasse com a poesia, mas ela chegou ao casebre e nenhuma ideia havia
surgido.
E mais uma vez, Shaira chegou e ajudou a avó. A menina estava
preocupada com o seu dever poético.
Terminada a ajuda, a menina foi admirar as estrelas. Seus olhos
brilhavam com o encanto do céu. Mais do que nunca, ficou estática a buscar o
entusiasmo criador. Precisava escrever uma poesia; a inspiração começou a
surgir.
A menina, sem perder tempo, correu para o papel e o lápis. As palavras
começaram a formar os primeiros versos, melodia, cadência, estrofação, tudo sem
conhecimento de estrutura poética, mas com inteiramente o caminho do coração.
Shaira começou a organizar o que já existia em seu sentimento, simplicidade foi
dando forma. E não parou de escrever até colocar o ponto final no último verso.
Soltou o lápis sobre o papel. Os irmãos, aquela noite, estavam mais
calminhos.
Pegou o papel e leu a poesia. Após a leitura seus olhinhos estavam
marejados. Leu a sua própria emoção. Mas logo se lembrou de que não bastaria
escrever, era necessário memorizar a poesia para, no dia seguinte, declamá-la e
garantir, pelo menos, alguma pontuação para a nota final.
Sua família já estava dormindo. A avó e a mãe não se importavam em
deixar uma luz acesa, pois sabiam do trabalho escolar. E, com determinação, a
menina conseguiu, por mais uma hora, ler e tentar gravar a poesia; em seguida o
sono e cansaço foram mais determinados que a jovenzinha.
Novamente o sol nasceu e o dia da apresentação chegou. A ordem para
declamar seguia o livro de chamada. Shaira seria uma das últimas e, sentadinha,
aguardava a sua vez na humilde sala de aula.
Alguns alunos eram mais aplaudidos que outros; finalmente chegou a vez
da menina que se levantou e foi para a frente da sala. Levou a poesia escrita
no papel que a criara. Ela sabia que não poderia ler, mas foi mais por
segurança.
Um pouco tímida, começou. Não houve um barulhinho sequer durante a
apresentação. Quando terminou, os aplausos foram muitos.
‒ Que poesia linda, Shaira – a professora falou.
‒ Obrigada, professora – a menina agradeceu.
‒ Adorei, Shaira – Malika abraçou a amiga. ‒ Eu estava triste por você,
ainda ontem, não ter conseguido... Que bom... você conseguiu! ‒ Malika falou
muito feliz.
‒ Sim, Malika, também estou muito feliz. Escrevi o que eu estava
sentindo ‒ Shaira falou.
E por ser tão simples e sensível, a poesia de Shaira foi escolhida,
entre as dos alunos da escola, para a declamação em um país europeu.
A menina, na companhia dos colegas e irmãos, voltou saltitando de
alegria para casa. Também levou um pedido solicitando, no dia seguinte, a
presença do responsável para as determinadas explicações e a autorização para
Shaira poder participar do evento cultural em um país europeu que custearia
todos os gastos. Seria também uma preciosa oportunidade para a menina conhecer
novos lugares e pessoas, oportunidade até de iniciar uma nova vida.
No dia seguinte, a avó, com a procuração, chegou à escola na companhia
da menina; a mãe não pôde comparecer, pois trabalhava quase doze horas diárias.
O professor, que também acompanharia Shaira, explicou à avó como seria
a viagem, quanto tempo ficariam e o mais importante, além de todo gasto ser
pago por um país europeu, a aluna receberia uma quantia em dinheiro pela
participação. E a avó foi embora; Shaira ficou na escola. Mais tarde, o
professor daria entrada à documentação necessária.
Como a cada dia tanto se resolve, após alguns amanheceres, chegou a
manhã da viagem. A pequenina, com sua avó e irmão, chegou à escola um pouco
adiantada do horário marcado.
A despedida foi emocionante.
Shaira nunca havia ficado distante de sua família... de sua avó
querida. Mas eram apenas alguns dias e por um motivo tão feliz: a sensível
poesia.
E lá no alto, o avião já recebia de mais perto os dourados raios solares.
A menina estava sentadinha ao lado do atencioso professor e de uma professora
acompanhante. Mais algumas horas e o avião tocou o solo em outro país,
continente, com distinta cultura e valores.
Passada a noite, Shaira e os professores, após um delicioso café da
manhã no hotel, foram levados ao maior colégio da cidade, onde aconteceria a
apresentação com vinte alunos vencedores de diversos países.
O teatro do colégio estava lotado.
Vários alunos já haviam recitado quando Shaira foi apresentada.
‒ Recebam, com uma salva de palmas, a querida africana Shaira – foi o
anúncio final do apresentador.
Shaira entrou no palco.
O público se aquietou.
A menina de doze anos estava diante de uma enorme plateia. Então, ela
respirou fundo e começou a declamar sua poesia. Ela, assim, delicadamente
começou:
“Gostaria tanto de pegar
uma estrela do céu.
Mas pensei... se eu pegá-la,
uma estrelinha deixará
de brilhar, pois em minha
mão não é o seu lugar.
Gostaria de ser uma estrela...
uma estrela azul,
poderia ver meu povo do alto;
mas se fosse assim,
estaria longe e não
poderia ajudá-lo.
Gostaria de ser
uma colorida borboleta
para voar por todo
os espaços e ver do
que meu povo mais precisa,
mas eu seria muito frágil
para ampará-lo.
Poderia, então, ser
uma linda flor
perfumada para
ajudar as pessoas a
se sentirem melhor.
Mas uma flor tem
vida mais curta
e não poderia ajudar
muitas pessoas.
Então, posso continuar mesmo a ser...
Shaira, uma menina africana
de olhos verdes,
pois crescerei e o
brilho das estrelas
iluminará meu caminho;
como a borboleta,
terei sabedoria para
ir por todos os lados
e serei doce como a
flor para conversar com meu querido povo
e entendê-lo.
Somos o que devemos ser,
mas podemos nos melhorar sempre”.
O público começou a se levantar antes mesmo de a menina terminar sua
declamação. Algumas pessoas se encaminharam para os corredores. E quando a
menina, magrinha e muito simples terminou, ficou um pouco envergonhada no
palco, sozinha.
Em segundos, os aplausos aumentaram. O público do corredor queria estar
mais próximo da menina africana de olhos verdes e não ir embora por estar
desinteressado. O som das almas e assovios aumentavam a cada segundo.
Aqueles olhos verdes estavam brilhantes da lágrima emocionada. Abraços
e cumprimentos, Shaira perdeu a conta de tantos que recebeu. E mesmo com a
apresentação posterior dos outros alunos, foi Shaira quem levou o troféu por
sua linda poesia. Estava muito feliz, pois além de tantos bons momentos durante
a viagem, ela receberia um prêmio em dinheiro e poderia comprar coisas muito
necessárias para sua família, inclusive, o primeiro bolo de aniversário para
sua avó que em três dias completaria setenta e dois anos.
Shaira, na verdade, já era uma estrela, uma flor e uma borboleta, pois
irradiava luz, era profundamente sensível e também de uma grande sabedoria, a
de amar e tanto querer ajudar o seu povo.
E lá do céu, a menina enxergava o pequenino universo onde morava.
Estava cheia de planos. O avião aterrissou.
Os olhos verdes da menina se encontraram com sua família e seu povo. As
estrelas do céu brilhavam forte depois de um dia de sol.
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