Uma carona surreal
JORGE LEITE DE OLIVEIRA
jojorgeleite@gmail.com
De Brasília-DF
Havíamos
terminado uma de nossas corridas no maior parque urbano do mundo, ou seja, no
Parque da Cidade de Brasília, quando encontramos um velho amigo, chamado Resus,
que também gosta de correr ali. Após os cumprimentos iniciais, fomos tomar uma
água de coco, num dos quiosques do parque, e conversar um pouco sobre os
benefícios da corrida, que tanto nos apraz. Em seguida, ele narrou-me a
seguinte história:
— Em
minha última corrida aqui, ao me encaminhar para o estacionamento, onde deixara
meu carro, deparei-me com uma criatura que parecia ter saído das profundezas do
Hades. Era uma anciã negra,
esquálida, com aparência de mais de setenta anos. Estava enrolada em trapos e
num cobertor antigo de lã, todo puído. Trazia numa das mãos uma garrafa pet com
um líquido verde e na outra uma nota dobrada de cinco reais.
Ao
nos aproximarmos, perguntou-me:
“Moço,
onde fica a rodoviária do Plano Piloto?”
Estávamos
muito distantes da rodoviária. Penalizado de sua situação, e como, para chegar
ao seu destino, eu apenas precisaria desviar-me cerca de dez minutos de minha
rota, respondi-lhe: “Entre no meu carro que eu a deixo lá”.
Disse
isso meu amigo. E prosseguiu sua narração:
—
Ela parecia jamais ter entrado num automóvel. Foi preciso que eu lhe abrisse a
porta e a colocasse sentada no banco da frente. Com certo pudor, ela aceitou
minha ajuda.
No
trajeto, perguntei-lhe o nome. Falou-me que se chamava Cíntia. Perguntei-lhe
também se iria pegar ônibus para sua cidade. Nada respondeu. Dei-me conta de
que estava diante duma pessoa bastante perturbada e moradora de rua. Dizia
frases desconexas e, a cada momento, perguntava: “Falta muito para chegar?”
Após
freada brusca do carro, ela perguntou-me: “Quer me matar?” Respondi-lhe que
não, e ela se acalmou. Perguntei-lhe, então, se havia alguém esperando-a...
Disse-me, simplesmente, que seus sobrinhos eram consumidores de drogas.
Nesse
momento, desconfiei que seu destino final seria a própria rodoviária, em torno
da qual alguns mendigos e toxicômanos passam as 24 horas do dia. Embora lhe
fosse fácil apoderar-se de algumas moedas que estavam no porta-copos do banco
da frente, onde a pusera sentada, em nenhum momento ela fez menção de pegá-las.
Entre
um e outro gole do líquido verde de sua garrafa redonda de 500 ml, segurava meu
braço e dizia: “Eu tenho medo de polícia. Eu tenho medo de polícia”.
Perguntei-lhe
se já fora maltratada pela polícia, e apenas me respondeu que tinha medo de
polícia.
Vez
por outra, dizia-me: “Sabe quanto custou esse cobertor? Mil e quinhentos
reais”. O trapo, quando novo, não custaria mais que uns cinquenta reais...
Pedi-lhe
para orar a Deus por mim, que eu faria o mesmo por ela. Foi o mesmo que falar
alemão. A impressão que me deu foi a de que jamais ouvira falar em Deus ou em
oração...
Por
fim, disse-me o amigo Resus, concluindo sua narração:
— Ao
chegarmos à antiga rodoviária, como não estava acostumado a entrar ali, acabei
parando atrás de vários ônibus, que já estavam para sair. Do outro lado da
faixa, bem próximo de nós, havia cerca de seis a oito policiais militares. Ela,
embora houvesse dito várias vezes que tinha medo de polícia, não manifestou
qualquer temor...
Ao
nos verem estacionar ali, os policiais, à frente seu comandante, vieram ao
nosso encontro. Pela janela do carro, falei ao gentil chefe da tropa: “Estou
deixando esta criatura aqui”. E mostrei-lhe a pobre anciã, envolta em trapos,
que já descia do carro.
Ele
olhou-nos, sorriu e fez sinal aos seus colegas para seguirem em frente...
Cíntia
desceu. Um fiscal de ônibus, que estava ao lado do meu carro, aborrecido,
pediu-lhe para sair dali. Ela afastou-se, lentamente, como quem já conhecia o
local, mas não sem antes me dizer, com carinho imenso, ao tempo em que segurava
seus trapos e trocados, somados aos que lhe dei:
—
Vai embora! Vai embora!
—
Recomendei-lhe, então: “Cuidado com os ônibus”.
Olhei-a
pela última vez, enquanto ela passava sob a luz de um poste. Seus olhos
lacrimejavam.
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