Duas histórias: uma para rir, outra para chorar
JORGE LEITE DE OLIVEIRA
jojorgeleite@gmail.com
De Brasília-DF
Recentemente, no dia 9 de setembro de 2021, fui ao salão de beleza onde corto
meus cabelos ondulados: uns dum lado, outros doutro... Após sentar-me,
enquanto aguardava a chegada de nossa cabeleireira, que chegaria cinco minutos
depois, fiquei ouvindo uma senhora conversar com a filha da dona do salão, que
pintava os cabelos da senhora.
De
início, a dona, máscara no rosto, dizia assuntos relacionados a um aluguel
caro, no valor de doze mil reais. Em seguida, passou a comentar temas
relacionados à área da saúde pública onde trabalha. Então, reclamou de uma
norma pública existente há anos, que limitava a doze afastamentos médicos por ano aos servidores concursados, e
citou toda a dificuldade da colega do hospital, que mora afastada do centro de
Brasília, para homologar uma dispensa médica. O deslocamento de sua cidade,
Santa Maria, para o centro, e a espera para atendimento duram o dia todo. Por
isso, justificou a decisão de sua colega em não pedir dispensa médica do
serviço, a não ser por longo período.
Depois,
quando Selma, minha cabeleireira, já chegara e eu me havia postado em cadeira
ao lado da citada cliente, esta passou a falar sobre caso ocorrido com o
ex-governador do Distrito Federal chamado Roriz, falecido há vários anos, mas
de quem ainda hoje se ouvem
"causos" pitorescos. O que ela disse e nos fez sorrir foi o seguinte:
—
Você sabia, Selma, que o Roriz era devoto de Santa Maria? Por isso criou essa
cidade e batizou-a com esse nome. Até hoje, os lotes que ele deu às famílias do
lugar não foram regularizados. Há quanto tempo ele foi governador? E Selma
respondeu:
—
Já faz mais de vinte anos.
A
cliente prosseguiu falando, após concordar comigo que, pelo tempo de uso, os
moradores já faziam jus ao direito de usucapião. Detalhe: não existe usucapião
de bem público.
—
Pois é — continuou —, ele adorava tanto a santa, que resolveu dar o nome à
cidade de Santa Maria. Mas algum tempo depois disso, ele desceu lá de
helicóptero com a santa e a hélice do helicóptero cortou a cabeça dela. Ouvindo
isso, quase caí da cadeira... Selma e a filha, que pintava o cabelo de nossa
narradora, acorreram ao seu auxílio, explicando o que de fato havia acontecido:
—
Não foi a cabeça da santa que foi cortada, foi a da irmã do governador!
Como
eu já conhecia a história, acrescentei:
—
Antes fosse a cabeça da imagem da santa... que é de barro!
Com
isso, todos concordamos. E a narradora sorriu, um pouco sem graça, no que foi
acompanhada...
Dava
para perceber, entretanto, no tom da voz da cliente, a ironia e o preconceito
contra a crença do folclórico ex-governador de Brasília. A cliente, então,
passou a falar de outro assunto, após o riso geral em virtude de sua troca da
vítima real, que lastimamos, pela cabeça da imagem. E agora, o assunto era
muito, muito sério...
—
Na sala de aula da escola em que meu filho estuda, foi matriculado um menino
negro. Todos os seus colegas eram brancos, e só ele era negro. Então, meu filho
fez amizade com ele, mas seus colegas se afastavam do garoto, que
discriminavam. Um dia, a mãe duma menina que estuda na mesma sala me disse:
"Você sabia que matricularam um menino preto na sala dos nossos filhos?"
Ouvindo isso, fiquei indignada e respondi-lhe: "Ele tem o mesmo direito de
estudar ali que nossos filhos; e meu filho é seu amigo. Além disso, o pai desse
menino é um rico empresário. Sua situação econômica é muito melhor que a
nossa."
Indignado
pelo que ouvi, em defesa da dignidade dos negros, falei-lhe que o maior poeta
da escola simbolista brasileira era negro, filho de escravos, e chamava-se Cruz
e Sousa. A senhora, que nunca houvera falar desse grande poeta, embora dissesse
que apreciava poesia, anotou seu nome e disse-me que iria ler seus poemas no
Google.
Finalizando
sua fala, já não mais tão animada, a senhora disse que o pai do menino negro
retirou-o daquela escola, onde apenas o filho dela era seu amigo.
Terminado
o corte de meus cabelos, precisei fazer a transferência do pagamento com os
olhos baixos. Não só por compaixão, como por tristeza, duas lágrimas insistiam
em permanecer em meus olhos.
Mais
do que nunca, solidarizo-me com os nossos irmãos afrodescendentes! Mais do que
nunca, minha alma manifesta sua indignação contra o preconceito sofrido por
eles. Mais do que nunca, reconheço quanto o Brasil, último país a extinguir a escravidão
oficial, é devedor de uma dívida moral e material imensa para com essa etnia tão vilipendiada, tão
perseguida, tão sofrida.
Ainda
hoje, quando assistimos a cenas brutais de espancamento, de trabalho semelhante
ao de escravos, em nosso pais, quem é que, em 90 por cento dos casos, é vítima desses abusos? A negra
e o negro. Que o Congresso Nacional e a sanção do Presidente da República corrijam a incompleta Lei Áurea
e criem nova lei com seu complemento assim:
"Fica decretado que, a partir de agora, nenhum negro ficará segregado, em
nenhuma instituição pública ou particular, e que todos os negros sejam tratados
com dignidade, respeito e idênticos direitos possuídos pelas pessoas das demais
raças e etnias.
Parágrafo
único. Nenhuma pessoa negra deixará de possuir casa, lazer, educação nos
melhores colégios e emprego com remuneração mínima suficiente a lhe proporcionar
boa alimentação, vestuário, e direito à manifestação cultural livre, de ora em
diante, que não atente contra os costumes e a legislação vigente.
Revogam-se
as disposições em contrário.
Esta
lei será regulamentada no prazo de 30 dias.
Brasília,
13 de setembro de 2021."
Saravá!
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