CINCO-MARIAS
As coisas que não vemos
EUGÊNIA PICKINA
eugeniapickina@gmail.com
O mal surge sempre quando o amor não é suficiente.
Hermann Hesse
Talvez seja apenas a minha infância, mas a gente descia as escadas
às cambalhotas, ria ruidoso de nada, cantava – e a voz tão alta –, girando sem
direção na solidão da sala, o assombro das árvores diante de nossos olhos, as
mãos sujas de terra.
A gente brinca quando é criança. Aprende porque brinca. Mas, para
muitos adultos, enfermos de infelicidade, o puro ser da criança, seus ritmos e
necessidades, é coisa demais para toda hora suportar.
Hoje em dia há grande intolerância às manifestações espontâneas
das crianças. Preocupa-me cada vez mais que se queira enrijecer a vida
infantil, até o extremo de que não possam brincar livre nem estar muito tempo
com seus pais.
Quantas crianças passam o dia comprido nos berçários? As escolas
gigantes de período integral – e tudo isso para quê? Ora, os pais devem
trabalhar sossegados – qual é mesmo o objetivo da existência?
Há quem diga que “antigamente era melhor”. Entretanto discordo.
Tenho outras visões. Nasci ao anoitecer, felizmente após esse antigamente e,
ainda assim, não percebo nenhum passado glorioso para a humanidade. O mundo,
aliás, continua atormentado pelo desamor, povoado de gente ignorante,
assustada, sofrida.
Hoje, estranhamente, o psicológico adquiriu muito
destaque na infância. Exemplos: toda vez que um meninozinho ingressa no
berçário (ou no jardim de infância), os pais já começam a receber “sinais”
sobre o meninozinho, principalmente se o meninozinho não responder a um “padrão
determinado”. Próximo passo, os encarregados do lugar apontarão as falhas do meninozinho,
aconselhando aos pais a visita a um especialista e, a depender da situação, os
próprios educadores emitirão um diagnóstico cercando o
meninozinho. Pois se a receita é conhecida, basta aplicá-la quando surge a
ocasião e uma “certa criança” necessitar ser “reparada”. Outras vezes,
incrivelmente, são os próprios pais que se queixam ao médico de que seu
meninozinho ou sua meninazinha “padece” de tal coisa e, assim, melhor
submetê-lo à prescrição médica porque a criança falha e precisa ser
consertada.
Vi isso centenas de vezes: se o menino brinca com o mesmo
brinquedo será um TOC (Transtorno Obsessivo Compulsivo); se a menina não se
interessa pelas aulas monótonas e, aos olhos da professora e do
coordenador, revelar cabeça voando, definitivamente é um TDAH (Transtorno de
Déficit de Atenção/Hiperatividade); se na escola é aluno desobediente ou é
criança que desafia, claro que corre o risco de ganhar o rótulo TOD (Transtorno
de Oposição Desafiante) – se bem me conheço, se eu tivesse hoje cinco anos, a depender
da escola em que fosse matriculada, meus pais provavelmente seriam intimados
para me tratarem desse medonho transtorno, pois o ideal, no pátio e na
sala de aula, são os robôs obedientes – e aqui me assusta porque poucos pais
estão gritando: “minha gente, é a escola que está doente, não a criança…”
Abandonamos a pedagogia da palmada não faz muito
tempo. De outro lado, seguimos reprimindo o que é essencialmente humano:
emoções, pensamentos, potencialidades, tudo que perfaz a riqueza singular de
uma criança, seu modo de ser único e irrepetível.
Não sem razão, afirmou Rubem Alves nos seus fecundos escritos: “há
muitas escolas que não passam de jacarés. Devoram as crianças em nome do
rigor…” E há pais também que são cúmplices dessas escolas-jacarés,
tudo também em casa conspirando para que o filho deixe rapidamente as coisas de
criança. Mas e se o filho na escola de algum modo começar a reclamar? Bom,
nesse caso, é “a criança que está tendo problemas, um foco cerebral com
certeza, neurologista, psicólogo, psicanalista, e os pais vão, de angústia em
angústia, gastando dinheiro, querendo o melhor para o filho…” (Rubem Alves, em Estórias
de quem gosta de ensinar – o fim dos vestibulares. 13ª ed. Campinas:
Papirus, 2013, p. 60.)
Quanto a mim, considero que a infância exige respeito. Etiquetar,
portanto, uma criança, aceitando que ela use esses descabidos
psicoestimulantes, que afetarão sem dúvida seu pleno desenvolvimento, suas
capacidades emocionais, ilustra, além de desamor, uma cruel pedagogia (ainda)
em ação… há pior espetáculo? Quem agradece? A indústria farmacêutica com sua
sede insaciável por dinheiro.
Notinhas
Jorge L. Tizón, 71 anos, psiquiatra, neurologista e psicólogo,
considerado hoje um dos principais expertos em saúde mental na Espanha, afirma,
por exemplo, nos seus escritos e entrevistas, que o TDAH (Transtorno de Déficit
de Atenção/Hiperatividade) é na realidade uma “invenção psiquiátrica e
farmacológica” e, desse modo, as crianças desde cedo estão sendo medicadas com
psicoestimulantes (anfetaminas). Cf. Entrevista al Dr. Jorge Tizón
(“Empastillados”), 25 Marzo, 2015 - www.nuevapsiquiatria.es
Psicoestimulantes são a categoria de medicamentos mais comuns no
tratamento do TDAH. São os remédios mais utilizados para Déficit de Atenção e
Hiperatividade no Brasil.
*
Esta seção, cuja estreia neste blog ocorreu no dia 6 de janeiro deste
ano, traz sempre textos dedicados à infância, seus cuidados, sua educação. O
título – Cinco-marias – é uma alusão a um conhecido brinquedo
que integra um conjunto de brincadeiras e
atividades lúdicas conceituadas como Patrimônio Cultural da Humanidade.
Eugênia Pickina é educadora ambiental e terapeuta
floral e membro da Asociación Terapia Floral Integrativa (ATFI), situada em
Madri, Espanha. Escritora, tem livros infantis publicados pelo Instituto
Plantarum, colaborando com o despertar da consciência ambiental junto ao Jardim
Botânico Plantarum (Nova Odessa-SP).
Especialista em Filosofia (UEL-PR) e mestre em
Direito Político e Econômico (Mackenzie-SP), está concluindo em São Paulo a
formação em Psicanálise.
Ministra cursos e palestras sobre educação ambiental
em empresas e escolas no estado de São Paulo e no Paraná, onde vive.
Seu contato no Instagram é @eugeniapickina
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