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sábado, 14 de setembro de 2013

A história que eu sei contar

ARTHUR BERNARDES DE OLIVEIRA
tucabernardes@gmail.com
De Guarani, MG


XIV – O pai é o exemplo

Meu pai é um homem impressionante.(1) Nascido em 1908, filho de José Basílio e de D. Rita. Não conheci a vovó Ritinha e do meu avô só tenho uma recordação bastante desagradável. A dos seus últimos momentos de vida, estirado numa cama, nos estertores dos últimos suspiros. Aquele homem magro, cadavérico, com a língua enroscada, assistindo, sem nenhuma possibilidade de luta, à chegada do fim.
Inteligência aguda, nos cursos que fez, quase todos particulares, e com o esforço próprio, foi o primeiro da sala. Pobre, tendo como mãe uma mulher um pouco debilitada mentalmente, sofreu como cachorro, na infância, na mocidade e nos primeiros anos de casado.
Estudou por correspondência e concluiu um curso de Contabilidade, tendo defendido alguns pedaços de pão, suplementando durante a noite o pouco ganho do dia.
Parece-me que as dificuldades o levaram a uma vida um pouco desregrada nos seus primeiros anos, até que a presença de Abel Gomes mudou o rumo de sua vida. Ingressando no Espiritismo, desenvolveu enormemente a sua cultura, através da literatura espírita, sem favor nenhum das melhores que o mundo conhece. Melhores e  maiores.
Fundou o jornal “Arauto da Fé”, em companhia do Mário Vitoriano e Amadeu Santos, e conseguiu, creio que por correspondência, uma carteira de jornalista.
Durante muitos anos foi assim uma espécie de a grande cabeça da cidade. Escrevia quase que sozinho dois jornais: “Arauto da Fé”, publicação espírita, e “A Tribuna”, publicação da Prefeitura Municipal de Astolfo Dutra.
No Espiritismo, cedo começou a sua faina de pregador, transformando-se num dos maiores oradores espíritas que eu conheço.
Dono de uma facilidade de expressão admirável e possuidor de um estilo claro e correto, produziu páginas admiráveis. Polemista, dele se tornou célebre a participação contra o Professor José Schiavo, da cidade de Ponte Nova, a respeito de problemas e assuntos religiosos.
Tem viajado por inúmeros estados e em toda a parte por onde passa deixa uma legião de amigos e de admiradores sinceros.
Não conheço ninguém com tanta capacidade de fazer novos amigos. É um homem bastante experimentado e de tudo conhece um pouco. Embora haja assuntos dos quais ele conheça muito.
Difícil escrever sobre ele. Dono de um coração admirável, não distingue pessoas. Pobres e ricos à sua presença sentem-se absolutamente à vontade.
Dono de uma prosa cativante, com ele se passa horas e mais horas, sem que o relógio nos desperte.
Sua grande virtude é não medir dificuldades para ajudar seus semelhantes. Patrão excelente, todos os seus viajantes tornaram-se mais ricos do que ele.
Dinâmico, sua vida toda tem sido encaminhada no sentido de construir. Tem o hábito da construção. Não fica sossegado, se não estiver edificando alguma coisa.
Politicamente divergimos quase sempre. Quando na Revolução de 1932 esteve na iminência de ser preso, parece que o seu espírito se inclinou para o terreno da oposição. E como oposicionista ferrenho, tem acentuadas simpatias pela UDN. Ora, como eu sou fundamentalmente avesso ao sistema político-partidário udenista, é natural que os nossos pontos de vista não se encontrem, o que, sinceramente, lamento.
Eu entendo que, embora mais moço, esteja em melhor situação para analisar determinados problemas do que ele. Sobretudo porque em meu espírito ainda não chegou aquela marca da perseguição que ele conheceu, duramente, de perto, e que culminou por lhe dar uma visão muito pessoal das coisas, subordinando-se a uma filosofia que eu não consigo aceitar.
É natural que ele me suponha enganado, não só pela consciência que tem da própria inteligência, indiscutível aliás, como pelo número de anos que leva de vantagem sobre o filho.
É o tipo do homem justo. Sua justiça só sofre distorções, quando em debate certos fatos políticos, e aí consolido milha posição, porque sou justo em todas as situações, inclusive na política.
Como pai, talvez motivado pela dureza de sua vida e de seus problemas iniciais, nunca permitiu que nos aproximássemos muito dele, razão por que havia, e até hoje ainda há, um certo temor dos filhos no debate de algumas ideias na sua presença. Por isso mesmo, entregava à esposa a tarefa de nos encaminhar mais de perto. É evidente que dele temos recebido sempre as mais preciosas orientações, mas entendo que levamos vantagem, quando confrontamos a influência dele e de minha mãe.
É claro que ele não se sente diminuído com isso. Fã numero um da esposa, sabe o tipo de mulher e de santa, a quem ele transferiu, em grande parte, a tarefa da educação dos filhos.
Nós, em casa, nos nossos momentos de desânimo, algumas vezes, o culpávamos, achando-o melhor para os estranhos do que para nós. No fundo, estávamos enganados,  porque ele em outra coisa não pensa senão na felicidade dos filhos.
Como avô, talvez porque o tenha sido muito cedo, não é dos mais amorosos. Mas faz lá de vez em quando a sua média com os netos. Todos nós o adoramos. Mesmo quando o censuramos muito, naquilo em que não nos atende, fazemo-lo por amor.
Bastante acomodado, raramente escreve aos filhos. Mas, quando o faz, apaga de uma só vez todos os aborrecimentos provocados pelo silêncio tão longo.
Enfim, é preciso uma boa análise para que o entendamos melhor.
Extremamente caridoso, construiu, com outros irmãos, a Fundação Espírita Abel Gomes, para abrigar menores desamparados. Vive para aquela casa. Todos os seus sonhos se orientam para a sua Fundação e tudo o que faz é visando ao desenvolvimento maior daquela casa, com maior conforto e melhor educação para as meninas que lá se abrigam.
Pai de onze filhos, muito cedo ficou sozinho. Casou todas as filhas, e três dos cinco filhos.
Em matéria de planos, foi dele que herdou o Amaury. Faz planos fabulosos, mas logo após acomoda-se, e os abandona, por comodismo, para ficar em paz.
Solicitado por toda parte, como orador espírita, quase sempre arranja uma “dor de cabeça” para afastá-lo do ônibus.
É das pessoas que conheço a que mais admiro e a quem mais afeição eu dedico. Confidente de muitos anos, e companheiro de todas as horas, fizemos jornadas memoráveis e debatemos ideias e problemas importantíssimos.
Sei que a minha saída representou em sua vida uma lacuna, Tão grande quanto a que a sua ausência provocou no meu caminho.
Alegre, jovial, prazenteiro, junto dele não se conhece tristeza. Amigo de seus amigos, muitos apertos sérios tem enfrentado em sua vida, por não saber deixar de atender a quem o procura.
Correto em seus negócios, honesto até a sublimação, é um homem completo. Culto e inteligente, bom e amigo, dinâmico e feliz.
É assim o meu pai, como lhe disse, um homem impressionante. Que está construindo uma obra que há de dignificar o seu futuro e abençoar o seu passado.

XV – O escândalo e a fé

Mas, como eu lá ia dizendo, quando chegamos à Fundação, para a reunião matinal, o meu cunhadíssimo Wálter veio ao nosso encontro. E foi com essas palavras que lhe apresentei a Elizabeth.
– Wálter, apresento-lhe aqui a minha futura esposa.
Wálter, sorridente, com aquele jeitão de quem está sempre brincando, engrossou a voz:
– Olha lá,  cunhado, vê lá o que está fazendo.
E perguntou a ela se ela achava que daria certo, dizendo, antes da resposta, que eu era o tipo consumado de “embrulhão”, mas um bom sujeito.
Elizabeth respondeu timidamente:
– Vamos ver, não é. Vamos tentar. Se der certo, bem. Se não, que fazer?
Estava quebrada a barreira inicial. A timidez da primeira hora passara com uma velocidade que estava fora de todos os meus cálculos. Dali para frente, a grande caminhada.
Confesso que nada ouvi daquele reabastecimento. Estava eu restabelecido com outra espécie de vigor, que não é apenas “o” espiritual, mas que é profundamente espiritual.
É provável até que eu tenha falado alguma coisa sobre o ponto, pois estava atravessando a fase do entusiasmo, aquela em que por qualquer coisa estamos nos levantando e deitando a nossa falação.
Disso não me lembro bem. Só me lembro que naquela manhã só tinha olhos para vê-la. E o pior, sinceramente o digo, é que a via com um pouco de audácia. Olhando-a, procurava despi-la, para descobrir por trás dos panos aquele corpo que me aparecera na véspera, inteiramente nu.
Eu era todo olhos. Olhos maus, impudentes, mas sinceros. Isso sempre fui. Costumava dizer, ao definir-me, que era sincero até nos momentos de insinceridade.
Um dia parei para analisar essa frase, e verifiquei que ela não tinha nenhum sentido. Mas me agradou, porque me pareceu definir bem a sinceridade que eu procuro imprimir em todas as minhas ações. Cheguei  a gostar dela. E não a risquei jamais das minhas elucubrações.
Dos meus trezentos vícios e das minhas duas virtudes, posso dizer, com certa ênfase que sou feliz dentro da minha sinceridade.
Tenho observado nos meus anos de vida e nas andanças que tenho feito que a sinceridade é uma das aves mais raras no convívio dos homens. Vejo que há, entre as criaturas, uma verdadeira obsessão pela insinceridade, como se ela fosse a própria  essência da vida.
Em parte entendo essa maneira de pensar. Para vencer na vida, a insinceridade é o caminho mais curto. Na política, então, chega a ser uma virtude. Sobretudo nessa política que no Brasil, segundo Rui Barbosa, virou politicalha.
Foi por vê-la tão difícil que me tornei amigo dela. É claro que no princípio tive que passar por seriíssimas ginásticas mentais. Depois fui me acostumando. De modo que hoje ela funciona com uma naturalidade impressionante em minha vida.
Mas, para exemplificar como a sinceridade é difícil, vou citar um exemplo.
Antônio Siqueira de Carvalho é uma das mais adoráveis criaturas que tenho conhecido. Bom como a água, simples como as pombas, encantador como as flores, puro como o sol. Pois bem, lendo as primeiras páginas dessa conversa, apressou-se a me aconselhar uma perífrase, Justamente para substituir o que eu disse, quando vi a Elizabeth pela primeira vez. Lá está, com palavras textuais: “Confesso que não a achei bonita”. Profundo psicólogo e marido exemplar, temia ele que aquelas palavras, ditas assim de maneira tão sincera, pudessem não digo desgostar, mas amarelecer o sorriso de minha esposa ao dar-se com elas.
Retruquei com todo o respeito que me merece essa admirável figura de homem e de artista:
– Substituir, não substituo. Ou eu conto o que aconteceu ou não conto. O que não posso fazer é fugir à sinceridade que me norteia a vida.
É por isso que não me acanho ao reproduzir agora as impressões daquela manhã feliz.
Sei que muitos espíritas, principalmente os mais velhos, ficarão escandalizados, ou melhor, ficariam escandalizados se fossem ouvir essas confidências.
Diriam, doutoralmente:
– Isso é um absurdo! Uma profanação! Uma afronta aos amigos do espaço!
E apresentariam o remédio:
– Fizesse uma prece, para afugentar os maus pensamentos. Pedisse passes magnéticos aos protetores e tudo estaria resolvido.
Mas eu lhes retrucaria:
– E quem disse que eram maus os pensamentos? A maldade está nas coisas, ou está em nós? E ademais nós só buscamos a prece para afugentar de nós o que nos desagrada. E aqueles pensamentos me agradavam mais do que tudo. E eu era feliz com eles.
Desculpem-me o escândalo que eu possa, com essas palavras, provocar.
Mas lembrem-se de que estava diante da mulher que há muitos anos vinha procurando. Afigurava-se-me aquele encontro como o reencontro comigo mesmo. Era o ressurgir de uma emoção, já quase morta. Pelo amor de Deus, compreendam isso!
Eu achara finalmente o tesouro por que procurava ansiosamente. Então, eu que chego aos vinte e cinco anos, numa procura insistente e sempre inútil, acumulando decepções sobre decepções; alimentando insatisfações continuadas, enredando-me nos mais fragorosos e sucessivos fracassos; chegando mesmo a perder o sentido da vida, em face de uma procura tão mal sucedida; agora que a encontro, posso dar-me ao capricho de afugentar de mim aqueles pensamentos, que já estavam  mortos? Para lá. Espera aí!
Ademais o pensamento de que se gosta é incontrolável. Na vida só há uma liberdade realmente positiva. Aquela que nos permite pensar.
Mas a reunião terminou e fomos seguindo os nossos destinos. Ela para o repouso da tarde. Eu para os talões burocráticos da fazenda estadual.

(1) No dia em que este livro foi concluído, Arthur contava 33 anos e Astolfo Olegário de Oliveira, seu pai, apenas 56.


Nota:

O texto acima faz parte do livro intitulado “A história que eu sei contar”, escrito por Arthur Bernardes de Oliveira e concluído no dia 28 de julho de 1964. O livro compõe-se de 20 capítulos e está sendo publicado aqui ao longo de dez semanas, sempre aos sábados. A primeira parte foi publicada neste blog no dia 28 de julho de 2013.



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