Páginas

sábado, 21 de setembro de 2013

A história que eu sei contar

ARTHUR BERNARDES DE OLIVEIRA
tucabernardes@gmail.com
De Guarani, MG


XVI – O emprego e o Estado

Eu lhe disse que trabalhava no Estado? Trabalhava. Tinham cavado, politicamente, para mim, um cargo público. Naturalmente tinham pensado lá com os seus botões:
– Esse camarada só vai pra frente se lhe dermos um emprego público.
Ainda não pude me ater a essa filosofia do “vai pra frente” que tão comumente se ouve. Confesso que de qualquer maneira eu tinha que ir pra frente, já que a vida não para. Não sei se iria bem ou mal. Mas iria. Inevitavelmente iria para a frente.
Dizem os Nélsons Rodrigues deste país que só há uma verdade eterna: “É que ao dia de hoje sucederá, inevitavelmente, o dia de amanhã”.
Às vezes nós não o apanhamos na vida. Mas ele sempre nos apanha.
Mas arranjaram-me um emprego. Coisas de política mineira. Eu era um eleitor. E o pessoal em quem eu votava resolveu me presentear. Fui ser “auxiliar técnico de arrecadação”. Pomposo nome, não acha? Coisas de Minas Gerais.
Até hoje não entendi bem por que “auxiliar” e “auxiliar técnico”. Da arrecadação estava claro. Nós arrecadávamos os tributos do Estado. Em contraprestação o Estado nos pagava também um tributo. Minguado, sempre curto, mas dava pro pão.
Mas auxiliar de quê? Ou de quem? Nós não auxiliávamos nada. Quem auxilia, auxilia a alguém! Nós é que fazíamos o serviço sozinhos. Como auxiliar?
E o técnico? A técnica pressupõe um preparo, um adestramento, um estágio, um estudo, uma adaptação.
Comigo não houve nada disso. Pegaram-me pelo laço e me jogaram lá dentro.
Depois eu vi que o negócio era mais ou menos assim mesmo. Que os menos capazes é que eram os favorecidos, desde que a política dominante os indicasse.
Vi isso, não em contato com os meus colegas, que são os mais eficientes nos respectivos cargos. Vi, depois que estava lá dentro, através de observações efetivas.
Meus colegas, repito, eram excelentes. Honestos, trabalhadores, cumpridores de seus deveres. Todos muito bons e muito compenetrados de suas obrigações.
Junto deles passei os bons anos de minha vida.
O chefe era o Paulo Linhares. Coletor. Muitos anos a serviço do Estado, tendo entrado para a administração fazendária muito cedo, cedo também chegou ao padrão Z, o último da carreira.
O chefe era um moço simpático, louro, alegre e bastante cordato. Tinha um defeito de dicção que nos botava um pouco perturbados no início de nossa carreira. Depois, com o tempo, fomo-nos acostumando, e adivinhávamos de pronto a ordem que ele emitia. Ele resmungava no fundo, e o papel, de imediato, era posto em sua mesa.
Tinha um vício. Não era muito expedito no assinar os talões. De modo que era comum acumularem-se papéis sobre a sua mesa, de tal modo que a Nina a apelidou de “secção-do-encalhe”. Quanto tempo perdíamos à espera de que o Sr. Lery, nome que depois lhe pusemos, porque ele fez uma porta de duzentos quilos cair em cima de um visitante, chamado Sr. Lery, e que lá fora, incumbido de uma revisão nos valores imobiliários rurais. Contribuintes se avolumando na sala de espera, o calor apertando cada vez mais, e os talões dormindo serenamente na secção do encalhe.
A Nina de que lhe falei há pouco era o encanto da repartição. Admirável figura de mulher que todos nós amávamos com o respeito e a veneração que se devem a uma santa.
Jamais a vimos triste ou desanimada. Nos quase nove anos de convivência diária, vi-a sempre com o mesmo sorriso de compreensão e de amizade. Mesmo depois de casada, com o colega Ulisses Linhares, enfrentando agora as dificuldades de mãe e de dona de casa, foi sempre a mesma. Afável, meiga, atenciosa, sorridente, eficiente, tranquila.
Dificilmente encontrarei em minha nova carreira uma mulher tão completa, e tão perfeita em tudo que faz. Com ela aprendi a admirável lição de servir a todos com o sorriso nos lábios.
O subchefe, isto é, o Escrivão, é a veneranda figura do Sr. José Simonini, que Viçosa exportou para Astolfo Dutra. Homem absolutamente tranquilo. Ao vê-lo poder-se-ia dizer: “Está aí um homem com a vida que pediu a Deus”. Católico fervoroso, jamais teve para com os dois espíritas que baixaram na sua repartição a menor palavra de censura ou de desapreço.
Espírito jovem, tinha sempre uma anedota para amenizar o cansaço dos números, nas horas das nossas obrigações.
Sua letra era um desenho. E o caixa geral da repartição lá está guardado como uma relíquia muito bem guardada.
Vivia para a repartição. De manhã à tarde, seu habitat preferido era lá. Às vezes nos perguntávamos, bisbilhoteiros de sempre: O que será que o Sr. Simonini vem fazer aqui, toda manhã? Há tanto serviço assim?
Provavelmente lá iria desenhar no seu Caixa Geral, caixa que eu andei enfeiando com o balancete de dois meses.
Seu amor predileto era o que ele chamava de “a  preciosa”. A preciosa era a fita da máquina em que estavam relacionados todos os valores da despesa e receita ocorridas no mês. A preciosa, segundo ele, era a bússola do Balancete. Se ela jogasse, tudo estava certo. Se algum erro, porventura, houvesse, a preciosa inevitavelmente acusaria.
Depois eu acabei desmoralizando a preciosa adotando um processo mais rápido. A princípio ele não gostou da ideia. Diabo, vinha eu com minhas inovações matar-lhe um amor tão antigo. Depois, acabou concordando e ficou sepultada para sempre a sua divina “preciosa”.
De Simonini trouxe, além de outras, uma feliz recordação. Eu que esperava dar-lhe alguma coisa, pela atenção com que sempre me distinguiu em todos os meus dias, fui surpreendido com um necessário presente: deu-me um terno, cortado e costurado, por ele próprio, com toda a arte e perícia. Antes do emprego público ele se notabilizara em sua terra como um excelente alfaiate.
Coitado, viu que eu não tinha lá boas roupas e, apressou-se, comprando do mascate Zezinho um lindo corte de casimira inglesa que  transformou num belíssimo e moderno terno. Parece que ele estava adivinhando que pouco tempo depois nos separaríamos para sempre.
Esse mascate de que falei há pouco é o outro auxiliar da repartição, o ilustre cidadão José Espíndola Filho, brasileiro, vacinado, casado e pai de seis filhos.
Nós o chamávamos  nosso “Consultor Jurídico”. Muito eficiente na sua função, tinha um hobby: ler, religiosamente, as revistas “O Fisco em Minas”, para estar em dia com a legislação fazendária.
Creio que esse amor à legislação nasceu, em Cataguases, em contato com o Coletor Estadual, Sr. Humberto Henriques, numas aulas que lhe andou ministrando, com vistas ao concurso que teríamos de fazer em busca da estabilidade. Das aulas do Sr. Humberto para cá, o homem se doutorou e, quando ele fala, todos nós murchamos as orelhas.
É um cabra que está sempre nervoso. Está, não. Parece estar, porque, no fundo, é um coração de passarinho. Pintávamos o sete com ele, e a todas as nossas brincadeiras respondia com um sorriso satisfeito.
É um camarada bravo. Com ele não se pode abusar, porque é malcriado como o Iracytho, embora nele predomine o sentimento dominante do amor às boas causas e à caridade. Nunca se esqueceu de entregar-me, mensalmente, a contribuição que ele próprio se fixou, em favor do nosso asilo de órfãs.
De vez em quando ia a São Paulo, para onde foi obrigado a transferir a família, com vistas à educação de seus filhos, e de lá voltava com uma mala nas costas, cheia de bugigangas. Da calça de mulher ao brinco, tudo se achava lá dentro. E eu  morria de rir, vendo o Zezinho, com aquelas peças íntimas para vender.
O outro auxiliar era o Sr. Mário Vitoriano, excelente orador e grande violonista, que com sua voz sempre alta dava à repartição uma aparência de hospício. Não perdoava ao Paulo, com quem discutia sempre a propósito dos lucros das terras do Jacaré. O Paulo argumentava, fazia cálculos, escrevia números, mas o Mário, imperturbável, o encostava à parede. Muito brincalhão, memoráveis debates tivemos a oportunidade de ver, mas o de que mais me lembro foi de uma questão levantada, por ele, a respeito de um filho louro de uma mocinha morena que tinha trabalhado na casa do Paulo e que casara com um moço também moreno.
Não sei se já se encontrou uma explicação mais viável para o caso. Mas dessa discussão rimo-nos a valer.
Esses foram os companheiros que me receberam naquele dia de trabalho, após o célebre reabastecimento espiritual. Com eles convivi, de perto, quase nove anos e de nenhum, durante todo esse tempo, tive a menor razão de queixa.
É provável que para eles eu não tenha sido tão bom quanto o foram para mim. O certo é que de todos me lembro com saudade, deles guardando as melhores recordações.
Depois surgiu o Arnaldo, garoto contratado pelo Simonini, nas férias do Paulo, e cuja permanência, como contínuo, foi confirmada pelo titular da chefia.
E bem depois, já ao apagar das minhas luzes, junto deles, lá chegou o Roberto Garoni, em período de estágio, enquanto aguardava uma nomeação prometida .
Naquele porão da casa do Sr. Alberto Pereira Menezes, junto de gente tão amiga, vi passar um pedaço muito importante de minha vida. E só uma coisa me tiraria de lá. Uma coisa presa à origem de meu ingresso e que me tolhia, demasiadamente, a liberdade.
Nasci para ser livre. Todos os homens nascem para ser livres. Não há bem maior que a liberdade, principalmente a liberdade de pensar. E foi por buscá-la que troquei uma carreira por outra.

XVII – Nasci pra ser livre!

Eu já explico.
Foi uma manobra política que me deu aquele emprego. E eu fiquei inevitavelmente preso, grato que sou, aos que me distinguiram com a nomeação.
Penso, com Rui Barbosa, que só não muda o homem que não evolui. E quanto mais o homem muda, maior é o sinal de que ele procura acertar.
Tenho dito diversas vezes que o importante, em nossa vida, não é acertarmos sempre, mas errar menos,  procurando sempre agir melhor.
Um homem que estaciona é um cérebro que se enferruja. Um homem, cristalizado dentro de determinados princípios, é uma massa sem cor e sem vida. O homem, para dignificar a sua posição, tem que ser dinâmico. Dinamismo significa evolução. Principalmente dinamismo nas ideias.
Tudo muda na vida. Se as árvores permanecessem imutáveis jamais chegariam à divina explosão dos frutos. É por mudar que a mocinha de hoje se faz mãe amanhã. É mudando, e mudando sempre, que se passa da infância para a juventude, para a maturidade, para a velhice e se atinge a eternidade.
A mudança é tão fundamental em nossa vida que Alexis Carrel afirmara que nenhum homem é o mesmo em dois segundos sucessivos. Tudo se transforma em nós. As células se substituem, os tecidos se modificam, os átomos se renovam, porque vida é sinônimo de renovação e de mudança.
Há quem diga que devemos mudar nem que seja para pior. Não vou  a tanto, embora compreenda e aceite o ponto-de-vista. O que digo é que devemos sempre mudar, claro que para o melhor, ou para aquilo que supomos o melhor.
Na minha posição de servidor público, lá posto da maneira que fui, eu era um homem amargurado, triste, abatido. Injustiças e mais injustiças desfilavam-se ante meus olhos, sem que eu pudesse, ao menos, levantar o clamor da desaprovação.
Mesmo o concurso, a que depois me submeti e que me deu a estabilidade funcional, não conseguiu apagar em mim aquelas reações desagradáveis; e meu irresistível desejo de mudar chocava-se sempre com o meu  sentimento de gratidão.
Meu mal era irreversível. Eu me consumia, a cada novo dia, no mais lamentável de todos os tédios. Vi-me afastar de meu pai e de meus irmãos e seguir um caminho que eu sentia não ser o melhor, para, através do voto, pagar aquela dívida que me consumia.
Eu estava sufocado. Parece-me que só duas pessoas sabiam dessa angústia. Duas não, três: minha mulher, o Jarbinhas Scher e o Zezinho.
Eis senão quando surge no horizonte do DASP um concurso para escrivão federal. Cá disse comigo mesmo: “Nesta eu me embarco e adeus Astolfo Dutra. Vou readquirir lá fora a liberdade que  perdi aqui dentro”.
Para trás fiquem meus amores e minhas amizades. As árvores em que tantas vezes subi nas minhas brincadeiras juvenis, as águas em que tantas vezes me banhei, as ruas em que ficaram, palmo a palmo, as minhas emoções mais fortes, os olhares que me fitaram com tanta simpatia nos dias de festas, as casas em que eu aprendi a ver um prolongamento da minha, tudo isso que representa o baú das minhas mais caras recordações, vale menos do que a liberdade que eu procuro.
Nasci para ser livre. Todos os homens nasceram para ser livres. Quero a liberdade dos pássaros para conhecer outros céus e amar outras estrelas e apertar nas minhas mãos as mãos de outros seres, mas sobretudo para ser eu, sozinho, o verdadeiro dono de mim mesmo. Sei que durante muito tempo fui “o filho do Astolfo” de que, na realidade, me orgulho. Só muito tempo depois acabei sendo reconhecido como eu mesmo, Arthur Bernardes construindo sua história. A gente sabe quão importante é a influência dos pais nos caminhos do filho. Vezes há que essa influência é tão forte que o filho dela não se liberta, atravessando uma existência inteira sem marcar sua passagem  na Terra.

Nota:

O texto acima faz parte do livro intitulado “A história que eu sei contar”, escrito por Arthur Bernardes de Oliveira e concluído no dia 28 de julho de 1964. O livro compõe-se de 20 capítulos e está sendo publicado aqui ao longo de dez semanas, sempre aos sábados. A primeira parte foi publicada neste blog no dia 28 de julho de 2013.






Um comentário:

  1. Bom dia senhor Astolfo eu li e reproduzir e meu blog a História que eu sei contar. Abraços fraternos

    ResponderExcluir