JORGE LEITE DE OLIVEIRA
jojorgeleite@gmail.com
De Brasília-DF
A revista Seleções
informa-nos, neste mês, que fez um teste de honestidade em seis cidades
brasileiras, nas quais “perdeu” 72 carteiras, com cem reais e identificação do
proprietário em cada carteira. Não vamos mencionar os nomes das cidades, mas
constatou-se que na mais honesta, São Paulo, setenta por cento das pessoas
devolveram a bolsa, enquanto na menos honesta, o Rio de Janeiro, esse mesmo
percentual a reteve.
Lembrei-me então do
meu conto “A carteira” e resolvi contar-lhe seu desdobramento, amigo leitor.
Afinal, tudo muda neste mundo, até a honestidade carioca, que, em outros
testes, já foi considerada uma das mais elevadas... Provavelmente, essas últimas
carteiras, no meu Rio de Janeiro, estivessem no lugar e hora errados, não é
mesmo?
A vida, meu bom
amigo, é uma só; mas as existências corporais são muitas. Ou você não leu Brás
Cubas, que, de nossa dimensão, narrou a saga de sua última jornada terrena?
Pois bem, para seu
melhor entendimento desta versão de “A carteira nº 2” , é preciso que leia em www.dominiopublico.gov.br a versão
nº 1. A
não ser que, como bom apreciador da literatura, já conheça a história
anterior...
A vida prossegue...
Continuando aquela
existência, diríamos que Honório tornara-se renomado advogado e jamais
desconfiara da infidelidade de Amélia, que o traíra durante dez anos, com
Gustavo, amigo do casal. Até que a febre amarela os matou, a todos, no bom ano
de 1896, com a diferença de três a quatro semanas entre cada óbito.
Sobrevivera a filha
de Amélia, então com quatorze anos, que fora morar com uns parentes, casara-se
e dera origem a nova geração da árvore genealógica da família. Ficara, porém,
uma dúvida: Maria Clara, a filha, seria mesmo de Honório ou de Gustavo?
É bem verdade que,
cinco anos antes de Clara nascer, D. Amélia não conseguira engravidar, o que
somente ocorrera após o estreitamento da amizade que o casal passara a ter com
Gustavo, o qual, desde então, costumava ser visto a sós com a esposa de Honório
na ausência deste. Em geral, Amélia, que gostava de tocar ao piano músicas
alemãs, tocava para o amigo, que embevecido não se cansava de aplaudi-la e
elogiá-la.
Mas o tempo passara
e, como dissemos acima, o triângulo amoroso foi ajustar contas na terra dos pés
juntos. Para não confundir o leitor, manteremos, em sua “repaginação”, os
mesmos nomes de nossos personagens que se encontram em “A carteira” de 15 mar.
1884.
Eis que, passados
quarenta anos no umbral [região trevosa do plano espiritual], o trio reencarnou
no Rio de Janeiro. Amélia retornou ao corpo físico como vizinha dos pais de
Honório, o marido traído na existência pregressa. Moravam, agora, na Glória.
Gustavo, o amante de outrora, voltara à nova existência perto dali, no Leblon,
como neto de Clara e filho de um advogado famoso, que muita influência teria em
sua vocação para a advocacia.
Os três ficaram
amigos, na escola de ensino médio, frequentada por eles, de nome Irmandade da
Trindade Universal, dirigida por um padre franciscano. Concluídos os estudos
secundários, ainda adolescentes, Gustavo começou um namoro firme com Amélia,
sob as vistas complacentes de Honório, que mantinha uma relação amorosa secreta
com a amiga.
O tempo passou, e
casou-se Gustavo com Amélia; mas agora, o pianista era ele, que também se
formara em Direito e passara a advogar sem muito sucesso na profissão; a
provedora-mor da casa era a esposa. Foram residir no Leblon, em apartamento
doado pelos pais de Gustavo.
Amélia graduara-se em
relações internacionais e fora aprovada no concurso do Instituto Rio Branco.
Tornara-se diplomata, ganhava muito bem e trabalhava muito também.
Teve filhos gêmeos:
um loiro e alto, como Gustavo; o outro, moreno e baixo, como Honório. Por essa
época, as crianças estavam com quatro anos, e nada lhes faltava em casa.
Quanto a Honório,
tornara-se comerciante em Botafogo, onde também passara a residir. Sua loja ia
de vento em popa, desde que Amélia se lhe associara informalmente, haja vista
que sua função pública a impedia de assumir qualquer outra atividade
remunerada.
Eis que, um belo dia,
de repente, Gustavo olhou para o chão e viu, meio oculta, uma carteira caída à
frente do balcão da loja do amigo, quando em visita a este, no final do
expediente comercial. Em instantes, abaixou-se, apanhou-a e, sob os olhares de
um homenzinho que já fechava a porta da loja, e ninguém mais era do que seu
amigo Honório, ouviu este lhe dizer, sorrindo, enquanto Amélia, pálida,
aparecia por detrás do balcão:
— Rapaz, que bom que
você achou minha carteira. Amélia estava ajudando-me a procurá-la, pois a féria
do dia está toda guardada aí e já estávamos imaginando que algum larápio a
roubara.
Ao que respondeu
Gustavo, entregando-lhe a bolsa, orgulhoso da douta e prestimosa esposa:
— Muito bem, querida,
ajudar os amigos é mais do que um favor, é obrigação. Ainda mais quando se é
sócio, completou rindo bastante. Mas agora vocês me desculpem, tenho que ir
voando à casa de vovó, Maria Clara, tomar um chazinho com ela, pois vamos
comemorar minha primeira vitória importante na vara de família.
— É mesmo, amor? – pergunta-lhe a esposa, já
refeita do susto inicial — E qual foi a causa que ganhaste?
— Coisa simples. Uma
separação litigiosa em favor do marido traído; algo que jamais ocorrerá
conosco, não é mesmo, amor da minha vida?
— O amor de vocês é
tão lindo – acrescenta Honório —, que nada no mundo vai separá-los.
— Claro — conclui
Amélia — lindo e único! Parabéns, querido, depois, os três comemoramos mais
esta sua vitória jurídica, quando você tocará para nós, ao piano, uma sinfonia
alemã. Mas agora que está tudo bem, vou para casa descansar um pouco, pois hoje
precisei auxiliar o embaixador num processo de concessão de asilo a um político
corrupto e adúltero. E isso me deixou exausta e indignada...
— Quer que a deixe em
casa, amor? Estou de carro...
— Não é preciso,
querido, também estou de carro; e vou conferir com Honório a féria do dia. Às
21 horas, estaremos lá.
Gustavo sai. Honório,
de posse da carteira, retirou de seu interior um bilhetinho, que o outro não
tivera tempo de “ler, e estendeu-o a D. Amélia, que, ansiosa e trêmula,
rasgou-o em trinta mil pedaços: era um bilhetinho de amor”.
Mais tarde, os três
inseparáveis amigos comemoraram, na casa do casal, a causa ganha por Gustavo
que, ao piano, tocou a 9ª sinfonia de Beethoven.
Ao centro, voltado
para o teclado, o advogado, feliz, tocava divinamente ladeado por Honório e
Amélia que cantavam, com ele, a letra musical em português. De
repente, silenciaram, se abraçaram emocionados e choraram copiosamente, após
recitarem esta estrofe:
Quem já conseguiu o
maior tesouro
De ser o amigo de um
amigo,
Quem já conquistou
uma mulher amável
Rejubile-se conosco!
Sim, mesmo se alguém
conquistar apenas uma alma,
Uma única em todo o
mundo.
Mas aquele que falhou
nisso
Que fique chorando
sozinho!
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