JORGE LEITE DE OLIVEIRA
jojorgeleite@gmail.com
De Brasília-DF
Parafraseando Cíntia Schwantes, como diria
Jack, o estripador, “vamos por partes”. Segundo meu ordinário (marche!) secretário Joteli, em seu tempo de militar,
ouviu de um colega de farda o seguinte relato:
– Eu não queria servir ao Exército, mas como
minha família era de prole numerosa, com mãe viúva e sete filhos, incluindo eu,
quatro deles ainda crianças e os dois mais velhos com empregos
salários-mínimos, alistei-me... No dia da seleção, fui logo prevenindo o
oficial encarregado das entrevistas sobre minha situação, além de colocá-lo a
par de uma otite crônica nos meus dois ouvidos.
– E o que ele lhe respondeu? Perguntou
Joteli, a quem passo a palavra daqui por diante.
– Só te dispenso do serviço militar
obrigatório se voltares aqui com um atestado médico que constate teu problema
auditivo. (O cara era gaúcho, tchê.)
– E em relação à sua condição social, o que
ele disse?
– Disse que, se eu já tinha outros dois
irmãos mais velhos ajudando no sustento da família, isso bastava. O Brasil
precisava de mim. Além do mais, no quartel, eu receberia alojamento, colegas
que dormiriam comigo no alojamento, a farda, comida, toalha de banho, banheiro
com água fria e até um soldo de um salário mínimo para as despesas próprias.
Portanto, nada me faltaria.
– Isso me faz lembrar o salmo 23 de Davi,
Joteli: “O senhor é o meu pastor, e nada me faltará...”
– Posso continuar, Machado?
– Em
frente, Joteli. O que mais lhe disse
seu colega de farda?
– Oliveira, este era seu nome de guerra,
disse-me que, naquele momento, um sentimento patriótico assomou seu espírito e
ele, antes mesmo de aprender os movimentos militares, tomou a posição de
sentido, prestou continência ao coronel, deu meia volta e... foi em... frente! Anos depois, escreveria um poema intitulado “A marcha”, que
recebeu medalha de bronze em concurso nacional de poesia, promovido pela Revista Brasília, que nem sei se ainda existe no Distrito Federal.
– Mas, Oliveira, disse-lhe eu, por que você
não levou um atestado médico?
– Porque para quem estava desempregado,
Joteli, na minha situação, as condições oferecidas eram promissoras. Além
disso, poderia, ao final do mês, repassar meu soldo para minha mãe e dar-lhe
mais uma ajuda no sustento de sua numerosa prole.
– Pelo que vejo, o serviço militar
obrigatório lhe foi muito útil, Oliveira. Mais alguma lembrança inesquecível?
– Sim, Joteli. Dois anos depois, já engajado
e pensando fazer “carreira” no Exército, fui aprovado em concurso para sargento
na área de comunicação. No ano anterior, já fora aprovado no curso para cabo,
em primeiro lugar dentre os soldados inscritos, sem ter tido o prazer de
colocar as divisas nos ombros. Mas essa é outra história.
– Muito bem! Concluído o curso,
naturalmente, você pôde continuar em sua terra natal e ajudar um pouco mais sua
mãe.
– Certo, quanto à segunda parte; errado na
primeira, porque fui transferido para Salvador, na Bahia. Como meu problema de
otite crônica bilateral nunca havia sido curado, depois de um ano nesse estado
e nesse estado, compreendeu?, voltei ao Rio de Janeiro, de férias, e
busquei tratamento otorrinolaringológico no Hospital Central do Exército.
– Muito bem! Com certeza, ante a gravidade
do seu caso, o médico que o atendeu recomendou sua transferência para perto da
família, a fim de receber os cuidados médicos e familiares, não é mesmo,
Oliveira?
– Quem me dera, Joteli! Era um coronel
otorrino que, ao ouvir minha história, ficou tão comovido que, antes de ordenar
(Militar não pede, ordena.) a uma enfermeira que fizesse uma lavagem nos meus
dois ouvidos, alertou-me com as seguintes doces palavras:
– Sargento, não me venha com a tentativa do
golpe da saúde para forçar sua transferência para cá. Você não tem nada!
Aproveite e lave a boca, além dos ouvidos dele, enfermeira.
– Gente boa, esse coronel, não é mesmo?
– Com certeza! Décadas depois, soube que em
meus ouvidos não poderia entrar uma só gota d’água. Mas, como diz a música de
Chico Buarque, transformada em peça teatral: “Pode ser a gota d’água”...
Prometi a mim mesmo que um dia eu voltaria para agradecer ao nobre oficial por
seus cuidados médicos.
– E você voltou?
– Estou voltando
agora, quarenta anos depois, nas asas dos devaneios literários. Ele lerá isto,
tenho certeza, como também foi certo o reencontro do seu amigo Machado com sua
amada Carolina, após transpostas as águas do rio Lete.
Ainda em Salvador, após passar dias tratando
soldados com febre alta, no quartel, fui acometido de uma labirintite tão forte
que perdi os sentidos e, quando despertei, estava internado no Hospital Geral
de Salvador, com um soro correndo em minha veia do braço. Ao meu lado, o médico
do quartel, quase chorando, pediu-me perdão por não me ter dado atenção quando
eu, dois dias antes, o procurei para lhe dizer que, embora fosse dia de sol a pino, via tudo às escuras...
Duas semanas depois, tive alta e voltei às
atividades normais do quartel. A otite continuava... Firme! como um soldado que recebesse ordens de seu superior, após o
primeiro comando: Cobrir! No primeiro
dia de alta, retornando ao quartel, ao participar de uma marcha matutina, sob o
comando do tenente R2 Cláudion, este
percebeu que eu marchava que nem um bêbado e gritou, para eu e a tropa
ouvirmos:
– Sargento Oliveira, acerte o passo!
Não perdi tempo e lhe respondi:
– O senhor não está vendo que estou com
problema de equilíbrio, tenente?
Ao que ele retrucou, ainda durante a marcha:
– Sargento Oliveira, ao final do desfile,
procure-me no meu posto de comando (PC).
Não lhe dei resposta, nem também obedeci a
sua ordem, mas, dias depois, soube do Raulindo,
um velho sargento que me tratava quase como um filho, que o tenente Cláudion o procurara e lhe perguntara:
– O que está acontecendo com o sargento
Oliveira e por que ele não obedeceu à minha ordem de ir falar comigo no meu PC?
Resposta do Raulindo:
– O Oliveira é um bom rapaz, mas não pise no calo dele não, pois ele vira
uma fera.
Nunca mais fiquei sabendo o que o tenente Cláudion desejava falar comigo em seu
PC, embora, por muito tempo, eu tivesse a impressão de que, ao final do
expediente, ao ser lida a ordem do dia, o sargenteante
dissesse: “Quarta parte, justiça e disciplina: fica detido no quartel, por
trinta dias, o sargento Oliveira por desacato ao comandante da companhia X”.
Tal, porém, não ocorreu... Por que será?
– Oliveira, sentido! Como você se atreve a
tanto?
– Agora, quem entra na conversa sou eu,
Joteli. Por que você fica remoendo essas remotas histórias do Oliveira?
– Então você não sabe que “água parada não
move moinho”, Machado?
Vamos em frente, Oliveira, faça de conta que
sou seu analista do Rio, assim como houve um “analista de Bagé”. Põe tudo para
fora.
– Sim, meu camarada! Da capital, fui
transferido para o interior da Bahia, sem que meu problema crônico de otite
bilateral fosse descoberto. Até o dia em que, recém-casado, fui encaminhado ao
Hospital Geral do Exército em São Paulo, com indicação cirúrgica, após ter sido
descoberto, no Hospital das Forças Armadas, em Brasília, que minha otite era
proveniente de colesteatomas bilaterais gigantes (sic).
– Sei... lá em São Paulo você foi internado
e, dias depois, operado de ambos os ouvidos, já estava em casa, recuperado e
nos braços da amada recém-casada...
– Quisera, Joteli, quisera. Deixei minha
mulher na casa de minha mãe, no Rio, e fiquei aguardando atendimento médico,
pacientemente, em enfermaria do hospital, na companhia de outros colegas de
farda. Após cerca de quinze dias, no último final de semana em que, às
sextas-feiras, ao término do expediente, todos recebíamos uma dispensa para
ficar com a família, vi que a enfermeira entregou a autorização para saída a
todos, menos a mim. Questionada, ela respondeu-me, agressivamente, que eu não
precisava de dispensa, pois passava o dia todo na boa vida, só comendo,
dormindo e lendo.
Revoltado, disse-lhe poucas e boas, mas,
hora depois, recebi a dispensa de uma raivosa enfermeira. Meu pecado era
simplesmente ser paciente por fora e doente por dentro...
A briga fora promissora. Na semana seguinte,
fui levado ao centro cirúrgico para o primeiro procedimento operatório.
Antes de ser operado, seu namorado (sic),
que era o coronel anestesista, indagou-me sobre os motivos da briga com a
enfermeira. Após minha breve explicação, sem eu saber, até então, do seu
relacionamento com a profissional da enfermagem, contei-lhe minha versão
rapidamente e chorei como criança, imaginando-me em muito boas mãos, como de
fato estava. Nada senti, nem antes, nem após o ato cirúrgico.
É bem verdade que a cirurgia não resolveu meu problema, mas que fui muito bem tratado
ali, lá isso é certo. Tão certo que, após a operação, ao se saber que eu não
possuía recursos para levar minha esposa do Rio de Janeiro para o hospital onde
me encontrava internado, reservaram-nos um quarto particular e pude ficar em
sua companhia até o dia de minha alta hospitalar.
– Mas como você conseguiu sobreviver no
estado em que estava?
– Mistérios de Deus, Joteli, mistérios
divinos... Transferido para Brasília, a meu pedido, um ano depois, ali
descobriram os tumores que me levaram a tanta guerra, ainda que em tempo de
paz. Meses após, fui internado mais duas vezes para cirurgia nos ouvidos. Na
primeira, operado por uma cirurgiã famosa, no Hospital das Forças Armadas,
despertei da anestesia geral em pleno procedimento cirúrgico e, enquanto sentia
uma serra cortar o colesteatoma, ouvia a conversa da cirurgiã com o oficial
anestesista. Em dado momento, a médica lhe disse:
– Ele está acordado, pois está se mexendo
muito...
Nada mais ouvi. Quando despertei, antes que
me fosse perguntado algo, relatei, chorando, que havia sentido tudo o que
ocorrera no ato cirúrgico. Então, tornei a “dormir”. Até hoje, lembro-me,
emocionado, do carinho recebido dos militares responsáveis por minha cirurgia
naquele dia inesquecível. Nem uma palavra de justificativa ou pedido de
desculpa!
– Sei... mas o importante é que você ficou
curado.
– Com certeza. Nunca mais tive nada no
ouvido esquerdo, nem mesmo a audição.
– E o outro ouvido?
– O ouvido direito foi operado, cerca de
três anos depois, por um famoso cirurgião, no mesmo hospital.
– E correu tudo bem com a anestesia e
cirurgia?
– Sim, pois antes de ser operado, o novo
anestesista conversou comigo e eu lhe pedi que tivesse um pouco mais de cuidado
com o procedimento anestésico, após lhe contar, rapidamente, o que ocorrera na
cirurgia anterior.
– E a audição?
– Nem o cirurgião entende o que aconteceu,
pois, embora minha “oficina auditiva” tenha sido removida, preservei cerca de
70% da audição desse ouvido, se é que pode dizer isso quem usa aparelho
auditivo há muito tempo na orelha direita.
É por isso que detesto a esquerda!
Nada mais disse Oliveira e nada mais lhe
perguntei, ó Machado.
– É o que eu sempre digo, Joteli, enquanto elementos estúpidos como você e esse seu
colega não se calarem, a democracia estará salva.
– Mas ainda acho, Bruxo, que uma intervenção
militar como a ocorrida em sua época e narrada em sua crônica, na Argentina,
quando os militares afastaram os governantes corruptos e entregaram o governo
aos civis, é o ideal para o Brasil. O que você fala agora sobre isso?
– Os mortos não falam, meu caro Joteli...
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