O Espiritismo perante a Ciência
Gabriel Delanne
Parte 31
Continuamos o estudo do clássico O Espiritismo perante a Ciência, de
Gabriel Delanne, conforme tradução da obra francesa Le Spiritisme devant la Science.
Nosso objetivo é que este estudo possa
servir para o leitor como uma forma de iniciação aos chamados Clássicos do
Espiritismo.
Cada parte do estudo compõe-se de:
a) questões preliminares;
b) texto para leitura.
As respostas às questões propostas encontram-se no final do texto abaixo.
Questões preliminares
A. Quais são, em filosofia, os principais
sistemas que buscam explicar a vida no homem?
B. Em que consiste o sistema animista?
C. Qual é, segundo os ensinos espíritas, a causa da vida vegetativa?
Texto para leitura
715. Em filosofia existe, para
explicar a vida no homem, à parte o materialismo, três sistemas diferentes: 1º
- os vitalistas; 2º - os organicistas; 3º - os animistas. Passemos rapidamente
em revista estas diferentes escolas.
716. Sabe-se, de modo geral, que o
corpo cresce como os vegetais, sente e se move como o animal e, enfim, que tem
uma existência superior, que reside na vida intelectual. É preciso, pois, que o
sistema que explica o homem físico e moral abrace essas três ordens de fatos.
Vamos verificar que são todos insuficientes, porque se limitam a encarar uma só
face da questão, em lugar de vê-la no conjunto.
717. Os vitalistas só querem
reconhecer no homem uma força, o princípio vital, e acham que ele basta para
explicar tudo. Eis no que se apoia a sua convicção. Notam que existe entre os
fenômenos da natureza inorgânica e os da matéria organizada uma diferença
radical: os corpos brutos obedecem a leis que nos foi dado conhecer e formular,
de maneira que podemos, à vontade, fazer a análise e a síntese de todas as
substâncias. Mas, quando passamos dos corpos brutos à planta mais ínfima, mais
rudimentar, impossível se nos torna reproduzi-la, quaisquer que sejam as
condições em que operemos. Uma simples folha de árvore, que o vento destaca, é
um mistério impenetrável quanto à sua produção. A química pode decompor essa
folha, saber o peso e a natureza dos corpos que entram em sua composição, mas
não pode reproduzi-la, porque não dispõe da vida, que é a única potência capaz
de organizar essa matéria.
718. No corpo humano esse princípio
age da mesma maneira que na planta; nutre as células dos tecidos, substitui-as,
sem que a alma tenha conhecimento, e chega a agir depois da morte, pois que se
encontraram cadáveres em que os cabelos e as unhas haviam crescido. Mas, se
quisermos explicar todos os fenômenos que se passam no homem pelo simples jogo
do princípio vital, defrontamos com insuperáveis dificuldades.
719. É preciso distinguir
cuidadosamente os efeitos vitais dos produzidos pela alma, porque entre os dois
gêneros de ação existem diferenças enormes. Assim, por exemplo, os fenômenos da
digestão, da assimilação, da circulação do sangue se operam independentes da
vontade, sem a participação da alma. Existe, pois, um princípio vital, mas que
não pode explicar todas as modalidades humanas; os vitalistas têm, portanto,
uma teoria incompleta.
720. Os organicistas pretendem
explicar a vida vegetal e a vida animal pelo simples jogo dos órgãos, isto é,
pela atividade natural da matéria. Baseiam-se no fato de poderem-se, em
determinadas condições, submeter insetos, como os rotíferos e os tardígrados, à
morte e à ressurreição; é, pelo menos, como qualificam o estado desses animais
antes e depois da operação. Basta, com efeito, depois de secar esses
animálculos, sob a ação do frio, e quando eles parecem mortos, pô-los numa
estufa, que se eleva gradualmente a cem graus, para vê-los voltar à vida,
quando os umedecem depois do resfriamento. Daí concluem que o meio físico faz
tudo, o organismo nada. Mas o que prova que esses filósofos estão em erro é que
há uma temperatura que se não pode ultrapassar, sem que o animal perca a vida.
Há nele, portanto, um princípio que resiste à morte até certo grau; transposto
este, a força é destruída, o que nos prova, uma vez mais, a existência do
princípio vital.
721. Os organicistas se baseiam,
também, na transformação do calor em força. Gavarret estabeleceu,
experimentalmente, por fatos rigorosos, verificados e controlados por
fisiologistas eminentes, que a produção do calor, a contração muscular e a ação
nervosa derivam diretamente da ação do oxigênio do ar sobre os materiais do
sangue. Essa reação química é a única fonte da força indispensável ao
organismo, para executar os movimentos que compõem a vida. Assim, nem alma, nem
princípio vital, conclui o físico.
722. Para responder a Gavarret, basta
notar que esses fenômenos se produzem nos corpos animados, isto é, já
organizados pela força vital. A explicação do sábio fisiologista é, pois,
simplesmente uma informação sobre a maneira como funciona a vida nos seres
organizados, mas não toca em nada no próprio princípio vital.
723. Os partidários da precatada
opinião apoiaram-se também nos fenômenos que se passam no estômago e nos
pulmões; estudaram as ações produzidas por essas duas vísceras e chegaram a
conhecer as leis que as dirigem. Concluíram que não há necessidade de outras
forças, além das que entram em jogo, neste caso, para explicar a vida.
724. Observaremos que a quimificação
só se pode produzir, estando vivo o estômago, assim como o pulmão não respirará
se o animal não estiver vivo, como o fizeram ver Cuvier e Flourens. Muller, o
fisiologista, constata que “o gérmen é uma matéria sem forma, isto é, uma massa
não organizada, que não apresenta qualquer espécie de órgão ou de rudimento de
organização e, entretanto, vive. A força orgânica existe, pois, no gérmen,
antes de todos os órgãos”.
725. Os animistas, enfim, esperam
explicar tudo pela ação única, consciente ou inconsciente da alma. Podemos
admitir que os fenômenos intelectuais são o produto direto da alma, mas as
ações da vida orgânica devem ser atribuídas a outra causa, porque não se pode
compreender que uma força imaterial exerça ação sobre a matéria do corpo.
726. Cada escola se coloca, pois, em
um ponto de vista exclusivo e não resolve, completamente, o problema. O
Espiritismo, com as luzes que traz a tais questões controvertidas, pode servir
de síntese a essas concepções diversas, como veremos a seguir.
727. Demonstrada, suficientemente, a
existência do princípio vital, nós o aceitamos como causa da vida vegetativa.
Resta compreender de que modo se exercem as ações automáticas que se passam no
corpo humano. A noção do perispírito nos vai fazer perceber como o duplo
fluídico pode ser considerado o regulador da vida orgânica, o que, até certo
ponto, dá razão aos organicistas. Enfim, os animistas podem aliar-se conosco,
dada a maneira pela qual explicamos a ação da alma sobre o corpo.
728. O que nos falta dizer é como o
perispírito pode ter adquirido todas as qualidades necessárias ao funcionamento
de uma maravilha como é o corpo humano. É preciso que estabeleçamos por qual
processo esta organização fluídica pode dirigir as diferentes categorias de
ações orgânicas que compõem a vida.
729. Segundo acreditamos, quanto mais
o Espírito se eleva, mais se lhe depura o invólucro. Podemos, pois, dizer,
olhando para o passado, que quanto mais grosseiro é o invólucro menos adiantado
é o Espírito; donde a conclusão de que a alma humana, antes de animar um
organismo tão perfeito como o corpo humano, teve que passar pela fieira animal.
730. Não pretendemos que o princípio
inteligente tenha sido obrigado a atravessar a fase vegetal, porque nas plantas
não encontramos sinal algum de sensibilidade bem nitidamente acusada. Os
movimentos de certas dioneias, como a mimosa pudica, vulgarmente chamada
sensitiva, não bastam para estabelecer esta propriedade nas raças vegetais.
Tomaremos, pois, como ponto de partida das evoluções do princípio inteligente
os mais rudimentares animais.
731. Sabemos, pelo estudo da Geologia,
que o princípio vital nem sempre existiu sobre a Terra. Esta ciência nos ensina
que, em indeterminada época de sua duração, a Terra não passava da massa de
matéria inorgânica, submetida, simplesmente, às leis físico-químicas que regem
o mundo mineral. Quando nosso globo sofreu todas as modificações materiais de
que era suscetível, apareceu a vida, isto é, a força organizadora, e, desde
então, assistimos a uma série de transformações maravilhosas. Os organismos
procedem uns dos outros, indo do simples ao composto. Desde a matéria do
protoplasma até as formas mais elevadas, há uma escala de seres não
interrompida, uma série de anéis que ligam a mais ínfima criatura ao homem,
suprema expressão dos tipos que se têm sucedido na Terra.
732. Essa longa elaboração reclamou
milhares de séculos e, à medida que o mundo envelhecia, tornava-se cada vez
mais apto a receber seres mais perfeitos. Darwin procurou explicar esta
progressão contínua, por leis naturais, e, apesar de não estar o transformismo
ainda universalmente admitido, aceitamos suas teorias.
733. Vimos, então, efetuar-se uma
primeira transformação: à natureza bruta sucede a natureza organizada, graças à
aparição do princípio vital; a este sucede o princípio anímico, e a
consequência desse segundo agente é a formação dos animais. A planta vive, mas
não possui nem a sensibilidade nem o poder de locomover-se. O animal, ao
contrário, não somente vive, mas sente e move-se. Podemos, a partir desse
momento, empreender o estudo da evolução intelectual.
734. Admitindo-se que a alma e seu
invólucro tenham passado pela fieira animal, concebemos logo como as coisas
deveriam ter sucedido. Notamos que o animal possui o instinto, isto é, uma
força que o dirige seguramente para fazer evitar o que lhe é prejudicial. Como
nasceu essa força?
735. No animal toda ação é o resultado
de um prévio julgamento que implica vontade, consciência, raciocínio,
inteligência. Não podemos encontrar na matéria o gérmen dessas faculdades e por
isso as atribuímos ao Espírito; o instinto é uma propriedade perispiritual, que
tem por causa a alma, mas que dela difere essencialmente.
736. Para fazer compreender essa
diferença, tomemos um exemplo. Como a criança aprende a ler? Ela deve, a
princípio, compenetrar-se da forma das letras. Nos primeiros tempos ela
confunde o A com o O, o N com o U, o B com o D, o P com o Q; ela deve
entregar-se a mais comparações para reconhecer seus caracteres distintivos.
Cada vez que ela firma um juízo, que ela diz que um A é um A, que um O é um O,
ela deve arrazoar consigo mesma o porquê desse juízo. Mas, pelo exercício, esse
juízo se torna cada vez mais rápido, de modo que, dado esse primeiro passo,
pode proceder-se com ela ao estudo das sílabas. É preciso que ela aprenda agora
a distinguir NA de AN, OV de VO, IE de EI, novas comparações, novos juízos,
novos exercícios; depois, essas dificuldades são vencidas, por sua vez.
Aborda-se, então, o conhecimento das palavras, depois o das frases. Quanto
tempo, quantos esforços, quantos estudos são necessários para que chegue a ler
corretamente! Ela consegue isso, entretanto, e, por fim, percebe imediatamente
uma frase pela simples inspeção do texto, como certos jogadores fazem
instantaneamente a adição de cinco ou seis dominós estendidos diante deles.
Chegada a esse ponto, já não tem lembrança dos atos preliminares por que passou
para ter o conhecimento da frase. Não vê mais que soletra, que julga da forma
das letras e de sua respectiva posição nas sílabas.
737. Esses movimentos são, a
princípio, feitos por querer, com plena consciência, depois chega a escrever
sob ditado, sem mesmo prestar atenção às palavras pronunciadas; sua mão
obedece, de alguma sorte, por si mesma, aos sons que lhe ferem o ouvido. É de
modo análogo que o perispírito adquire, insensivelmente, todas as suas
qualidades funcionais. Como não se destrói com a morte do corpo e tem uma
existência tão real como a do Espírito, acumula em seu seio todos os esforços e
todas as aquisições deste. Graças à sua perpetuidade, pode voltar à Terra mais
bem provido que da vez precedente.
738. Os organismos dos animais
primitivos são, com efeito, muito simples e se aproximam da natureza das
plantas. O princípio anímico tem poucas funções a preencher; habitua-se à vida
ativa, mas não fica inerte, porque, desde os primeiros passos na vida animal, o
gérmen inteligente tem sensações. Ele quer, por exemplo, evitar ou apanhar um
objeto, mas o movimento não lhe acompanha imediatamente a vontade. Ele deve,
para isso, empregar esforço e vencer certas resistências que provêm de um
arranjo perispiritual das moléculas, pouco favorável ao movimento. Este
movimento, acaba, entretanto, por se propagar, seguindo a linha de moléculas
cuja vibração apresenta com ele menos divergência.
739. É assim que é vencida nos
primeiros tempos a inércia das moléculas perispirituais, sob a influência da
vontade nascente. Daí resulta que o mesmo movimento, quando desejado segunda
vez, experimenta menos resistência e, à força de repetições, acaba por ser
feito, com o menor esforço possível e de tal maneira fraco, que nem é sentido.
Por consequência, o movimento, a princípio penoso, torna-se em seguida fácil,
depois natural e, enfim, maquinal.
740. Eis como se pode conceber que,
pouco a pouco, depois de milhares de passagens do princípio inteligente, na
série animal, o perispírito chegue a fixar as leis que nos aparecem sob a forma
de instinto, mas que foram lentamente conquistadas por ele, por meio de
existências sucessivas. Pode-se, pois, dizer, de maneira geral, que o movimento
é voluntário, quando se sabe como e por que é feito; que é habitual quando é
feito sem se saber como; instintivo, quando feito sem se saber por quê; reflexo
ou automático quando feito sem o saber.
741. O hábito se adquire pelo
exercício, isto é, pela repetição voluntária de uma série de atos, os quais
acabam por se suceder cada vez mais rapidamente e com um dispêndio de força
menor. Modifica o organismo até nos óvulos e espermatozoides. A modificação dos
pais se encontra nos filhos sob forma, a princípio, de necessidade, em seguida,
de instinto. Ao mesmo tempo em que o animal se aperfeiçoa, os instintos
progridem e servem para dirigi-los; formam-se, assim, as leis da matéria
animada. À medida que o Espírito envelhece, isto é, que se encarna, adquire
qualidades novas e se torna apto a habitar corpos cada vez mais aperfeiçoados.
742. Chegada à humanidade, a alma já
fixou, em seu invólucro todas as leis automáticas destinadas a regular a
maravilhosa máquina do corpo humano. Executam-se com regularidade as funções
animais, e a alma, desprendida das peias mais grosseiras da matéria, emerge da
ganga que a envolvia e deve ser senhora absoluta da matéria que, até então, a
dominava.
743. Um fato pareceria contradizer a
teoria que sustentamos. Notam-se entre o macaco mais aperfeiçoado e o selvagem,
mesmo o mais embrutecido, diferenças imensas, que parecem indicar uma
demarcação nitidamente estabelecida entre o homem e o animal. Para explicar
essa anomalia no ponto de vista físico, a antropologia nos ensina que há uma
série de animais, chamados antropoides, que são o intermediário entre a
humanidade e a animalidade.
Respostas às questões preliminares
A. Quais são, em filosofia, os principais sistemas que
buscam explicar a vida no homem?
São eles: 1º - o vitalista; 2º - o
organicista; 3º - o animista. Observamos, porém, que todos eles são
insuficientes, porque se limitam a encarar uma só face da questão, em lugar de
vê-la no conjunto. (O Espiritismo perante
a Ciência, Quarta Parte, Cap. IV – Hipótese.)
B. Em que consiste o sistema animista?
O sistema animista explica tudo pela
ação única, consciente ou inconsciente, da alma. De fato, os fenômenos
intelectuais são o produto direto da alma, mas as ações da vida orgânica devem
ser atribuídas a outra causa, porque não se pode compreender que uma força
imaterial exerça ação sobre a matéria do corpo. (Obra citada, Quarta Parte,
Cap. IV – Hipótese.)
C. Qual é, segundo os ensinos espíritas, a causa da vida
vegetativa?
O princípio vital, eis a causa da vida
vegetativa. É preciso compreender, porém, de que modo se exercem as ações
automáticas que se passam no corpo humano. A noção do perispírito nos faz
perceber como o duplo fluídico pode ser considerado o regulador da vida
orgânica, o que, até certo ponto, dá razão ao sistema organicista. Enfim, o partidários
do sistema animista podem aliar-se conosco, dada a maneira pela qual explicamos
a ação da alma sobre o corpo. (Obra citada, Quarta Parte, Cap. IV – Hipótese.)
Observação:
Para acessar a parte 30 deste
estudo, publicada na semana passada, clique aqui: https://espiritismo-seculoxxi.blogspot.com/2020/10/o-espiritismo-perante-ciencia-gabriel_9.html
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