A morte e os
seus mistérios
Ernesto Bozzano
Parte 17
Continuamos o estudo do clássico A morte e os seus mistérios, de Ernesto Bozzano,
conforme tradução de Francisco Klörs Werneck. O estudo será aqui apresentado em 24 partes. Nossa
expectativa é que ele sirva para o leitor como uma forma de iniciação aos
chamados Clássicos do Espiritismo.
Cada parte do estudo compõe-se de:
a) questões preliminares;
b) texto para leitura.
As respostas às questões propostas encontram-se no final do
texto abaixo.
Questões preliminares
A. A “visão panorâmica” dos episódios da vida, durante a
crise da morte, é mencionada também pelas escolas ocultistas?
B. A “visão panorâmica” dos fatos ocorridos provoca algum
tipo de sensações?
C. Que conclusão podemos extrair das manifestações
espontâneas da visão panorâmica?
Texto para
leitura
259. A 3ª Monografia que compõe esta obra tem como título
“Visão panorâmica ou memória sintética na iminência da morte”.
260. Ensinam as escolas ocultistas que, durante a crise de
separação do espírito e do organismo somático e, algumas vezes, quando o
"laço fluídico", que une o espírito ao corpo, já rompeu, passam,
diante da visão espiritual do agonizante, como em "visão panorâmica",
isto é, na sucessão mais rápida e quase instantânea, todos os episódios da vida
terrestre do moribundo.
261. Eles desfilam em ordem regular, seja em sentido
inverso, seja em sentido direto, começando então na primeira juventude e
chegando aos últimos dias da vida, e se apresentam objetivamente, em forma
"pictográfica", de modo que o percipiente verifica enfim, plenamente,
o que foi, em um conceito que lhe falta, a sua vida corrente.
262. Além disso, as ditas escolas ocultistas são acordes em
afirmar que, raramente, tal "primeira visão recapitulativa" provoque,
no vidente, sensações profundas de satisfação ou de remorso, e acrescentam que
assim é para conter o risco de que sentimentos emocionais sejam obstáculos ao
desenrolamento regular dos quadros figurativos da vida decorrida. E, sempre a
crer nos ocultistas, todos os acontecimentos da vida escoada, emergindo
integralmente perante a visão espiritual dos moribundos, estão gravados, em
traços indeléveis, no "corpo astral" e aí constituem um Grande Livro
de Créditos e Débitos espirituais que ele deverá liquidar, inexoravelmente,
numa nova existência.
263. Assim, nos primeiros tempos se apresentará uma segunda
vez ao espírito, então desencarnado, a mesma visão panorâmica de suas
recordações. E, nesse momento, ele os considerará com um critério de julgamento
penetrante, plenamente capaz de apreciar, desde que o espírito esteja em estado
conveniente para fazer a avaliação dos efeitos em relação às causas,
engendradas por suas próprias ações, durante a existência terrestre.
264. Acontece, nesse momento, que experimenta satisfação
muito pura em todas as vezes que os quadros pictográficos lhe apresentam os
esforços que ele fez para elevar-se. Ao contrário, experimenta remorso e
diminuição profunda à vista dos símbolos objetivos que lhe recordam suas
fraquezas e a sequência das suas faltas.
265. Não existe mais, nesse instante, para ele nenhuma
ilusão possível. Quanto mais vivazes são as imagens que ele considera, tanto
mais eficaz e intensiva é a reação do espírito e, proporcionalmente, tanto mais
depressa são dissipadas suas baixas inclinações. O resultado dessa revisão do
passado pode contribuir para abreviar, na medida do arrependimento, a duração
das sanções.
266. Tais são os ensinamentos das escolas ocultistas. Mas
convém notar que sua afirmativa concernente ao reaparecimento, em "vista
panorâmica", de todos os aspectos da vida, no momento da morte, longe de
ser opinião estritamente teórica e de ordem fantástica, tem o caráter de fato
cientificamente reconhecido, apoiado que está em grande número de observações
incontestáveis.
267. Esta certeza, de resto, tem sido aceita sem reserva,
mesmo pelos representantes da psicologia oficial. Entretanto, concebe-se que
eles expliquem o fenômeno de modo bem diferente do que o fazem os ocultistas.
Suas interpretações, de natureza rigorosamente psicológica, parecem racionais e
legítimas, ainda que sejam puramente formais e bem pouco substanciais, assim
como ficam bem longe de resolver o problema, o que, aliás, não afirmam os
homens de ciência.
268. Entre os primeiros que se interessam pelas
manifestações deste gênero, importa citar os fisiologistas ingleses,
professores Forbes, Winslow e Munk, assim como o Dr. Feré e o professor Th.
Ribot, na França.
269. Este último, na sua monografia Les maladies de la memoire (As doenças da memória), pág. 141,
exprime-se nestes termos: "A excitação geral da memória parece depender
exclusivamente de causas fisiológicas e, em particular, da rapidez da
circulação cerebral... Existem várias narrativas de afogados, salvos de morte
iminente, que concordam neste ponto que, no instante em que começava a asfixia,
lhes pareceu ver, em um momento, a sua vida inteira nos menores incidentes. Um
pretende que lhe pareceu ver toda a vida passada se desenrolando em sucessão
retrógrada, não como simples esboço, mas com detalhes bem preciosos, formando
panorama de sua existência inteira, de que cada ato era acompanhado de um
sentimento de bem e de mal". Em circunstância análoga, "um homem de
espírito notavelmente lúcido atravessava uma estrada de ferro no momento em que
o trem chegava a toda velocidade. Ele não teve senão o tempo de estender-se
entre as duas fileiras de trilhos. Enquanto o trem passava por cima dele, o
sentimento de perigo lhe trouxe à memória todos os incidentes de sua vida, como
se o Livro do Juízo tivesse sido aberto diante de seus olhos".
270. Tal como se vê, segundo o professor Th. Ribot, o
fenômeno da "visão panorâmica" na iminência da morte seria
determinado "exclusivamente por causas fisiológicas e, em particular, pela
rapidez da circulação cerebral". Teoricamente falando, não há nada de
inverossímil em tal interpretação dos fatos, ainda que se conheçam numerosos
episódios inconciliáveis com esta hipótese.
271. O Dr. Feré limita-se a apontar uma analogia presumida
entre os fenômenos da "visão panorâmica" e "certas rememorações
que se produzem nos epilépticos antes da crise e que constituem uma forma de
aura intelectual". Nada de mais inverossímil nesta analogia, ainda mais
porque, na verdade, nada explica nem implica.
272. Já Victor Egger escreveu: "Se a morte sucede
imprevista e súbita, não se tem tempo de se pensar, de traduzir seu ‘eu’ em
conceitos e proposições; talvez também o pensamento propriamente dito fique
como que paralisado pela rapidez do acontecimento. Vê-se, então, simplesmente
sob a forma concreta de uma série de recordações visuais, de que cada uma tem
um sentido profundo e cujo conjunto resume a vida que se viveu... O afluxo das
lembranças, quaisquer que sejam a ordem e o número, significa o ‘eu’ que vai
acabar e, se o passado surge assim na consciência, é que ele é chamado pela
ideia subitamente concebida da morte iminente." (Revue Philosophique, 1896, vol. 1, pág. 30.)
273. A hipótese de Egger poderia ser uma explicação
essencialmente psicológica dos fatos. Segundo ela, a ideia da morte iminente
faria afluir, por contraste autossugestivo, recordações integrais da existência
percorrida, mas, na verdade, não se saberia adivinhar por qual misterioso laço
causal o fato é determinado, visto que uma pessoa sã que, de imprevisto, se
ache em perigo de morte, é assaltada por bem outras preocupações que as de
evocar recordações de seu passado. Aqui falta, em suma, todo o laço lógico e
plausível para unir a causa em ação e o efeito presumido.
274. O Dr. Sollier declara por sua vez: "Creio, então,
que o mecanismo da rememoração, nos casos de síncope por esgotamento, podendo
terminar pela morte, é idêntico ao da rememoração, da regressão da
personalidade, na histeria, sob a influência do despertar cerebral. A única
diferença é que, no caso de esgotamento cerebral, o potencial é normal e cai da
normalidade a zero, ao passo que, na histeria, ele está abaixo do normal e
volta para o seu máximo, mas o resultado é o mesmo, porque, em ambos os casos,
o cérebro apresenta sucessivamente todos os estados pelos quais já passou, e é
a essa sucessão de estados que é devida a sucessão mesma das imagens dos
estados de personalidade na ordem exata em que se produziram; que essa ordem
seja a mesma ou a inversa pouco importa, aliás, ao ponto de vista da fisiologia
cerebral e da compreensão das relações entre o estado cerebral e o estado
psicológico. Quanto à questão da rapidez, ela não tem absolutamente qualquer
valor, tal como expliquei mais acima." (Bulletin de l'Institut général psychologique, 1903, pág. 51.)
275. Estas explicações dos fisiologistas e psicólogos,
encaradas em seu conjunto, parecem bem insuficientes e baseadas em simples
presunções ou analogias, muito provavelmente errôneas. Fossem elas, aliás,
formuladas com brilho, não forneceriam ainda a solução do problema,
considerando que tendem exclusivamente em afirmar a existência presumida de um
paralelismo psicofisiológico nos fenômenos de visão panorâmica, paralelismo que
ninguém, até hoje, põe em dúvida.
276. A verdadeira equação a resolver não consiste nisto:
ela consiste no fato de que as manifestações espontâneas da visão panorâmica
concorrem - de modo resolutivo - para demonstrar a existência latente, na
subconsciência humana, de uma memória integral perfeita e indelével,
constatação de fato absolutamente inconciliável com postulados da morfologia,
da fisiologia, da psicologia. Na verdade, tais postulados se mostram
inconciliáveis com este outro fato colateral: a existência latente, na
subconsciência humana, de faculdades supranormais dos sentidos, independentes
das leis da evolução biológica.
277. O eminente filósofo Bergson não deixou de se preocupar
com os fenômenos aqui considerados. Se a explicação sugerida por ele pode
parecer pouco clara e pouco concludente, pelo menos o desenvolvimento dos
argumentos que a precedem é dos mais notáveis. Vê-se destacar dele o ponto de
vista em que se coloca Bergson para penetrar o mecanismo da memória, ponto de
vista em tudo conforme ao que será exposto no decorrer destas páginas.
278. Diz ele: "Inúmeros fatos parecem indicar que o
passado se conserva até em seus menores detalhes e que não há esquecimento
real. Todos devem lembrar-se de que os afogados e os enforcados, logo que foram
restituídos à vida, declararam ter tido, em alguns segundos, a visão panorâmica
da totalidade de sua vida passada. Poderia citar outros exemplos, porque a
asfixia não representa nada no fenômeno, apesar do que se tem dito. Um
alpinista jazendo no fundo de um precipício, um soldado em torno do qual surge
de repente uma saraivada de balas, terão, às vezes, a mesma visão. A verdade é
que o nosso passado todo inteiro existe continuamente e que basta virarmos para
trás para o perceber; apenas não podemos nem devemos voltar-nos. Não o devemos
porque o mecanismo cerebral tem precisamente o papel, aqui, de nos ocultar o
passado, de não deixar transparecer, em cada instante, senão o que pode
esclarecer a situação presente e favorecer a nossa ação: é mesmo obscurecendo a
totalidade de nossas recordações, salvo o que nos interessa e que o nosso corpo
já esboça pela mímica, que ele faz ressurgir essa lembrança útil. Agora que a
atenção à vida vem a enfraquecer um instante - não falo da atenção voluntária,
da que depende do indivíduo, mas de uma atenção que se impõe ao homem normal e
que se poderia chamar "a atenção da espécie" - então, o espírito,
cujo olhar era mantido forçado para a frente, se detém e, pela mesma força, se
volta para trás: a totalidade de seu passado lhe aparece. A visão panorâmica do
passado é, pois, devida a um brusco desinteresse da vida, produzido, em certos
casos, pela ameaça de uma morte súbita. Era precisamente em manter a atenção
fixa na vida, a retrair utilmente o campo da visão mental, que se achava
ocupado até então o cérebro, tanto quanto o órgão da memória." (Annales de Sciences psychiques, 1913.
pág. 326.)
279. Assim se exprime Bergson. Diante destas considerações,
deve-se convir que elas são filosoficamente muito sutis para serem de natureza
a elucidar o enigma do ponto de vista das causas, psíquicas ou
psicofisiológicas, determinantes do fenômeno que é aqui estudado. Estas
considerações, porém, têm a mais alta importância no sentido de que salientam
uma grande verdade: saber que nada some de nosso passado, que nos refolhos da
subconsciência humana existe a memória integral, perfeita e indelével, e, mais,
que a verdadeira função do mecanismo cerebral, nas suas relações com as funções
de rememoração, é de nos ocultar o passado. São conclusões inovadoras, onde
está contida, em gérmen, uma profunda verdade de ordem metapsíquica, que tudo
concorre para uma demonstração fundamentada.
280. Presentemente, há necessidade de passar em revista
certo número de episódios circunstanciados, com relação ao assunto. Nós os
observaremos com uma ótica que não será exclusivamente a da psicologia oficial,
inteiramente insuficiente. Para dizer com mais precisão, nós os consideraremos
nas suas relações com várias categorias de manifestações supranormais, de ordem
similar, pois que também é verdade que a orientação da psicologia do futuro não
pode se determinar senão nesta nova direção.
Respostas às
questões preliminares
A. A “visão
panorâmica” dos episódios da vida, durante a crise da morte, é mencionada
também pelas escolas ocultistas?
Sim. Ensinam elas que, durante a crise de separação do
Espírito e do organismo somático e, algumas vezes, quando o "laço
fluídico", que une o Espírito ao corpo, já se rompeu, passam, diante da
visão espiritual do agonizante, como em "visão panorâmica", isto é,
na sucessão mais rápida e quase instantânea, todos os episódios da vida
terrestre do moribundo. (A morte e os
seus mistérios, 3ª Monografia – Visão panorâmica ou memória sintética na
iminência da morte.)
B. A “visão
panorâmica” dos fatos ocorridos provoca algum tipo de sensações?
Segundo as escolas ocultistas, raramente essa primeira
visão recapitulativa provoca, na pessoa, sensações profundas de satisfação ou
de remorso, para conter o risco de que sentimentos emocionais sejam obstáculos
ao desenrolamento regular dos quadros figurativos da vida decorrida. (Obra
citada, 3ª Monografia.)
C. Que
conclusão podemos extrair das manifestações espontâneas da visão panorâmica?
Tais fatos demonstram a existência latente, na
subconsciência humana, de uma memória integral perfeita e indelével,
constatação de fato absolutamente inconciliável com postulados da morfologia,
da fisiologia, da psicologia. (Obra citada, 3ª Monografia.)
Observação:
Para acessar a Parte 16 deste estudo,
publicada na semana passada, clique aqui: https://espiritismo-seculoxxi.blogspot.com/2020/01/a-morte-e-osseus-misterios-ernesto_17.html
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