Irmão X
Vivera arredado do
mundo, no conforto precioso que herdara dos pais. Falava pouco, andava menos,
agia nunca. Era visto invariavelmente em trajes impecáveis. A gravata ostentava
sempre uma pérola de alto preço, pequena orquídea assinalava a lapela, e o
lenço, admiravelmente dobrado, caía irrepreensível, do bolso mirim. O rosto
denunciava-lhe o apurado culto às maneiras distintas. Buscava no barbeiro cuidadoso,
cada manhã, renovada expressão juvenil. Os cabelos bem postos, embora escassos,
cobriam-lhe o crânio com o esmero possível.
Dizia-se cristão e,
realmente, se vivia isolado, não fazia mal sequer a uma formiga. Assegurava,
porém, o pavor que o possuía, ante os religiosos de todos os matizes. Detestava
os padres católicos, criticava as organizações protestantes e categorizava os
espíritas no rol dos loucos. Aceitava Jesus a seu modo, não segundo o próprio
Jesus. As facilidades econômicas transitórias adiavam-lhe as lições benfeitoras
do concurso fraterno, no campo da vida.
E cada vez mais se
convencia de que as melhores diretrizes eram as dele mesmo. Afastamento
individual para evitar complicações e desgostos. Admitia, sem rebuços, que
assim efetuaria preparação adequada para a existência depois do sepulcro.
Em vista disso, a
desencarnação de homem tão cauteloso em preservar-se passaria por viagem sem
escalas com o destino à Corte Celeste.
Dava aos familiares
dinheiro suficiente para aventuras e fantasias, a fim de não ser incomodado por
eles; distribuía esmolas vultosas, para que os problemas de caridade não lhe
visitassem o lar; afastava-se do mundo para não pecar.
Não seria Joaquim
Sucupira, perguntavam amigos íntimos, o tipo religioso perfeito?
Distante de todas as
complicações da experiência humana, pela força da fortuna sólida que herdara
dos parentes, seria impossível que não conquistasse o paraíso. Contudo, a
responsabilidade que o defrontava agora não correspondia à expectativa geral. Joaquim
Sucupira, desencarnado, ingressava numa esfera de ação, dentro da qual parecia
não ser percebido pelos grandes servidores celestiais. Via-os em movimentação
brilhante, nos campos e nas cidades. Segredavam ordens divinas aos ouvidos de
todas as pessoas em serviço digno. Chegara a ver um anjo singularmente abraçado
a uma velha cozinheira analfabeta.
Em se aproximando,
todavia, dos Mensageiros do Céu, não era por eles atendido. Conseguia andar, ver,
ouvir, pensar. No entanto, desventurado Joaquim!!! As mãos e os braços
mantinham-se inertes, semelhavam-se a antenas de mármore, irremediavelmente
ligadas ao corpo espiritual. Se intentava matar a sede ou a fome, obrigava-se a
cair de bruços porque não dispunha de mãos amigas que o ajudassem.
Muito tempo
suportara semelhante infortúnio, multiplicando apelos e lágrimas, quando foi
conduzido por entidade caridosa a pequeno tribunal de socorro, que funcionava
de tempos em tempos, nas regiões inferiores onde vivia compungido.
O benfeitor que
desempenhava ali funções de juiz, reunida a assembleia de Espíritos penitentes,
declarou não contar com muito tempo, em face das obrigações que o prendiam nos
círculos mais altos e que viera até ali somente para liquidar casos mais
dolorosos e urgentes.
Devotados
companheiros do bem selecionaram a meia dúzia de sofredores que poderiam ser
ouvidos, dentre os quais, por último, figurou Joaquim Sucupira, a exibir os
braços petrificados.
Chorou, rogou,
lamuriou-se. Quando pareceu disposto a fazer o relatório geral e
circunstanciado da existência finda, o julgador obtemperou:
- Não, meu amigo,
não trate de sua biografia. O tempo é curto. Vamos ao que
interessa.
Examinou-o
detidamente e observou, passados alguns instantes:
- Joaquim, você era
casado?
-
Sim.
- Zelava a
residência?
- Minha mulher
cuidava de tudo.
- Foi
pai?
-
Sim.
- Cuidava dos filhos
em pequeninos?
- Tínhamos suficiente
número de criadas e amas.
- E quando
jovens?
- Eram naturalmente
entregues aos professores.
- Exerceu alguma
profissão útil?
- Não tinha
necessidade de trabalhar para ganhar o pão.
- Nunca sofreu dor
de cabeça pelos amigos?
- Sempre fugi,
receoso das amizades. Não queria prejudicar, nem ser prejudicado.
O julgador
interrompeu-se, refletiu longamente e prosseguiu:
- Você adotou alguma
religião?
- Sim, eu era
cristão - esclareceu Joaquim Sucupira.
- Ajudava os católicos?
- Não. Detestava os
sacerdotes.
- Cooperava com as
Igrejas reformadas?
- De modo algum. São
excessivamente intolerantes.
- Acompanhava os
espíritas?
- Não. Temia-lhes a
presença.
- Amparou os doentes
em nome do Cristo?
- A Terra tem numerosos
enfermeiros.
- Auxiliou
criancinhas abandonadas?
- Há creches por
toda parte.
- Escreveu alguma
página consoladora?
- Para quê? O mundo
está cheio de livros e escritores.
- Utilizava o
martelo ou o pincel?
- Absolutamente.
- Socorreu animais
desprotegidos?
- Não.
- Agradava-lhe
cultivar a terra?
- Nunca.
- Plantou árvores
benfeitoras?
- Também não.
- Dedicou-se ao
serviço de condução das águas, protegendo paisagens empobrecidas?
Joaquim Sucupira fez
um gesto de desdém e informou:
- Jamais pensei nisto.
O instrutor
indagou-lhe sobre todas as atividades dignas conhecidas no Planeta.
Ao fim do
interrogatório, opinou sem delongas:
- Seu caso
explica-se: - Você tem as mãos enferrujadas.
Ante a careta de
Joaquim Sucupira amargurado, esclareceu:
- É o talento não
usado, meu amigo. Seu remédio é regressar à lição. Repita o curso terrestre.
Joaquim Sucupira,
confundido, desejava mais amplas elucidações.
O juiz, porém, sem tempo
de ouvi-lo, entregou-o aos cuidados de outro companheiro.
Rogério, carioca
desencarnado, recebeu-o de semblante amável e feliz, após escutar-lhe as
compridas lamentações, convidou, pacientemente:
- Vamos, Joaquim Sucupira.
Você entrará na fila em breves dias.
- Fila? - interrogou
Joaquim Sucupira, boquiaberto.
- Sim - acrescentou
o alegre ajudante -, na fila da reencarnação.
E, puxando Joaquim
Sucupira pelos ombros, disse-lhe:
- O que você
precisa, Joaquim Sucupira, é de movimento...
Do livro Luz
Acima, obra psicografada pelo médium Francisco Cândido Xavier.
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