segunda-feira, 27 de novembro de 2023

 


 

Mãos enferrujadas

 

Irmão X

 

Quando Joaquim Sucupira abandonou o corpo, depois dos sessenta anos, deixou-nos a impressão de que subiria incontinenti aos Céus.

Vivera arredado do mundo, no conforto precioso que herdara dos pais. Falava pouco, andava menos, agia nunca. Era visto invariavelmente em trajes impecáveis. A gravata ostentava sempre uma pérola de alto preço, pequena orquídea assinalava a lapela, e o lenço, admiravelmente dobrado, caía irrepreensível, do bolso mirim. O rosto denunciava-lhe o apurado culto às maneiras distintas. Buscava no barbeiro cuidadoso, cada manhã, renovada expressão juvenil. Os cabelos bem postos, embora escassos, cobriam-lhe o crânio com o esmero possível.

Dizia-se cristão e, realmente, se vivia isolado, não fazia mal sequer a uma formiga. Assegurava, porém, o pavor que o possuía, ante os religiosos de todos os matizes. Detestava os padres católicos, criticava as organizações protestantes e categorizava os espíritas no rol dos loucos. Aceitava Jesus a seu modo, não segundo o próprio Jesus. As facilidades econômicas transitórias adiavam-lhe as lições benfeitoras do concurso fraterno, no campo da vida.

E cada vez mais se convencia de que as melhores diretrizes eram as dele mesmo. Afastamento individual para evitar complicações e desgostos. Admitia, sem rebuços, que assim efetuaria preparação adequada para a existência depois do sepulcro.

Em vista disso, a desencarnação de homem tão cauteloso em preservar-se passaria por viagem sem escalas com o destino à Corte Celeste.

Dava aos familiares dinheiro suficiente para aventuras e fantasias, a fim de não ser incomodado por eles; distribuía esmolas vultosas, para que os problemas de caridade não lhe visitassem o lar; afastava-se do mundo para não pecar.

Não seria Joaquim Sucupira, perguntavam amigos íntimos, o tipo religioso perfeito?

Distante de todas as complicações da experiência humana, pela força da fortuna sólida que herdara dos parentes, seria impossível que não conquistasse o paraíso. Contudo, a responsabilidade que o defrontava agora não correspondia à expectativa geral. Joaquim Sucupira, desencarnado, ingressava numa esfera de ação, dentro da qual parecia não ser percebido pelos grandes servidores celestiais. Via-os em movimentação brilhante, nos campos e nas cidades. Segredavam ordens divinas aos ouvidos de todas as pessoas em serviço digno. Chegara a ver um anjo singularmente abraçado a uma velha cozinheira analfabeta.

Em se aproximando, todavia, dos Mensageiros do Céu, não era por eles atendido. Conseguia andar, ver, ouvir, pensar. No entanto, desventurado Joaquim!!! As mãos e os braços mantinham-se inertes, semelhavam-se a antenas de mármore, irremediavelmente ligadas ao corpo espiritual. Se intentava matar a sede ou a fome, obrigava-se a cair de bruços porque não dispunha de mãos amigas que o ajudassem.

Muito tempo suportara semelhante infortúnio, multiplicando apelos e lágrimas, quando foi conduzido por entidade caridosa a pequeno tribunal de socorro, que funcionava de tempos em tempos, nas regiões inferiores onde vivia compungido.

O benfeitor que desempenhava ali funções de juiz, reunida a assembleia de Espíritos penitentes, declarou não contar com muito tempo, em face das obrigações que o prendiam nos círculos mais altos e que viera até ali somente para liquidar casos mais dolorosos e urgentes.

Devotados companheiros do bem selecionaram a meia dúzia de sofredores que poderiam ser ouvidos, dentre os quais, por último, figurou Joaquim Sucupira, a exibir os braços petrificados.

Chorou, rogou, lamuriou-se. Quando pareceu disposto a fazer o relatório geral e circunstanciado da existência finda, o julgador obtemperou:

- Não, meu amigo, não trate de sua biografia. O tempo é curto. Vamos ao que interessa.      

Examinou-o detidamente e observou, passados alguns instantes:

- Joaquim, você era casado?       

- Sim.       

- Zelava a residência?       

- Minha mulher cuidava de tudo.       

- Foi pai?       

- Sim.       

- Cuidava dos filhos em pequeninos?       

- Tínhamos suficiente número de criadas e amas.       

- E quando jovens?       

- Eram naturalmente entregues aos professores.       

- Exerceu alguma profissão útil?       

- Não tinha necessidade de trabalhar para ganhar o pão.   

- Nunca sofreu dor de cabeça pelos amigos?

- Sempre fugi, receoso das amizades. Não queria prejudicar, nem ser prejudicado.

O julgador interrompeu-se, refletiu longamente e prosseguiu:

- Você adotou alguma religião?

- Sim, eu era cristão - esclareceu Joaquim Sucupira.

- Ajudava os católicos?

- Não. Detestava os sacerdotes.

- Cooperava com as Igrejas reformadas?

- De modo algum. São excessivamente intolerantes.

- Acompanhava os espíritas?

- Não. Temia-lhes a presença.

- Amparou os doentes em nome do Cristo?

- A Terra tem numerosos enfermeiros.

- Auxiliou criancinhas abandonadas?

- Há creches por toda parte.

- Escreveu alguma página consoladora?

- Para quê? O mundo está cheio de livros e escritores.

- Utilizava o martelo ou o pincel?

- Absolutamente.

- Socorreu animais desprotegidos?

- Não.

- Agradava-lhe cultivar a terra?

- Nunca.

- Plantou árvores benfeitoras?

- Também não.

- Dedicou-se ao serviço de condução das águas, protegendo paisagens empobrecidas?

Joaquim Sucupira fez um gesto de desdém e informou:

- Jamais pensei nisto.

O instrutor indagou-lhe sobre todas as atividades dignas conhecidas no Planeta.

Ao fim do interrogatório, opinou sem delongas:

- Seu caso explica-se: - Você tem as mãos enferrujadas.

Ante a careta de Joaquim Sucupira amargurado, esclareceu:

- É o talento não usado, meu amigo. Seu remédio é regressar à lição. Repita o curso terrestre.

Joaquim Sucupira, confundido, desejava mais amplas elucidações.

O juiz, porém, sem tempo de ouvi-lo, entregou-o aos cuidados de outro companheiro.

Rogério, carioca desencarnado, recebeu-o de semblante amável e feliz, após escutar-lhe as compridas lamentações, convidou, pacientemente:

- Vamos, Joaquim Sucupira. Você entrará na fila em breves dias.

- Fila? - interrogou Joaquim Sucupira, boquiaberto.

- Sim - acrescentou o alegre ajudante -, na fila da reencarnação.

E, puxando Joaquim Sucupira pelos ombros, disse-lhe:

- O que você precisa, Joaquim Sucupira, é de movimento...

 

Do livro Luz Acima, obra psicografada pelo médium Francisco Cândido Xavier.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

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