Irmão X
17 -
Acordei hoje sobressaltado. Sonhei estar abraçando meu pai, morto há vinte
anos. Não era precisamente um sonho. Era uma perfeita visão, dentro do quarto,
mas compreendo a elucidação, pois comi lombo de porco à ceia, com boa rega de
vinho verde. Ao almoço, contei o sucedido a minha mulher que acredita numa
comunicação espiritual. Ora, ora! Crendices! Etelvina, apesar de boa esposa, é
mulher de cabeça fraca. Na parte da tarde, consegui armazenar mais duzentos
sacos de arroz, completando o total de mil e quinhentos.
18 -
Etelvina amanheceu nervosa, chorando. Disse haver sonhado também com meu pai, a
rogar-me serviço à beneficência. Dizia que o velho chegara a indicar o cofre,
repetindo o meu nome em voz alta. Baboseiras de minha mulher. Ela não bebe e
come pouco, mas é impressionável. Bastou que eu falasse de sonho à mesa para
que igualmente se iludisse, a respeito de comunicações. Consegui adquirir mais
trezentos sacos de feijão imunizado.
19 - Nova
choradeira de minha mulher. Declarou ter visto meu pai morto (oh! estupidez
humana!) e pediu-me levá-la a um Centro Espírita. Neguei. Se as coisas
continuarem dessa forma, devo levá-la a um psiquiatra. Dei um pulo a Caxias e
obtive a promessa de mais cento e oitenta sacos de arroz. Ótimo preço.
20 - Uma
comissão de pessoas religiosas veio hoje a minha casa insinuando a concessão de
um dos meus lotes na cidade para o levantamento de uma casa destinada ao amparo
de crianças vadias. Achei muita graça. Se querem posses que vão trabalhar.
Virei-me quanto pude e comprei mais duzentos e vinte sacos de arroz, somando o
total de mil e novecentos nos meus quatro galpões. Dentro de um a dois meses, a
alta será compensadora. Pretendo adquirir mais imóveis.
21 -
Passei o dia em Niterói, articulando com amigos a compra de quinhentos sacos de
arroz paulista, do melhor. Margem excelente. O artigo chegará em caminhões.
22 -
Etelvina passou o dia chorando. Disse ter visto meu pai a recomendar-me auxílio
para as crianças necessitadas. Não compreendo. Meu pai morreu há muito tempo.
Minha mulher quer ir a um Centro Espírita. Que vá sozinha. Não creio em
bobagem. Ouvi vários atacadistas. O arroz subirá assustadoramente, depois da
safra.
23 -
Bolas! Etelvina veio do Centro Espírita com um papelucho escrito, dizendo ser
comunicação de meu pai. A assinatura é a do velho. Pede para que eu assente a
cabeça, a fim de cultivar a saúde. Fala em caridade, repouso, meditação! Ora
essa! Sou um homem conhecido. Esses espíritas devem ser grandes velhacos.
Proibi Etelvina de qualquer novo entendimento com esses mandriões. Amanhã,
imitarão a letra de meu pai para arrancar-me o dinheiro. Tudo isso deve ser
chantagem religiosa. Mensagem! O conto da mensagem, isso é o que é. Não sou tão
lorpa. Recebemos quatrocentos sacos de arroz paulista. Verdadeira pechincha.
Tudo indica bons lucros.
24 -
Armazenei mais seiscentos sacos de feijão. Estoque excelente. Vantagens
imediatas.
25 -
Etelvina no mesmo choro em casa, declarando estar vendo meu pai constantemente.
Isso é de enlouquecer. Os negócios me tomam tempo, sem que eu possa conduzi-la
a tratamento. Os empregados querem aumento. Era o que faltava. Não dou um
vintém. Rua para quem reclamar. Comprei mais seiscentos sacos de arroz brunido
para saída breve. Espero cinco milhões em maio próximo.
26 -
Chegada de mil e oitocentos sacos de arroz paulista. Acompanhei a descarga
pessoalmente. Suei como estivador. Lucro certo.
27 - Uma
senhora espírita com dez crianças veio procurar-me no armazém com uma lista de
auxílio. Não assinei. Vi tudo. Etelvina no Centro atraiu a exploração. A
senhora acabou solicitando um saco de arroz, mas aconselhei-a a levar os
meninos para a Baixada e plantar. Caridade é manto de vagabundos. Comprei mais
oitocentos sacos de feijão de Minas.
28 -
Minha mulher piora, dia a dia. Contei ao meu gerente o que se passa e ele me
falou que é mediunidade. Até ele! Não sei se um homem de bem, falando nisso, dá
para rir ou pensar. Consegui mais quinhentos sacos de arroz.
29 -
Passei o dia comprando mais feijão. A praça começa os primeiros sinais de alta.
30 -
Etelvina quis conversar hoje em novas lições de meu pai e mandei que calasse a
boca. Não quero comunicações, não quero notícia de mortos. Vou interná-la
amanhã numa clínica de repouso, em Santa Tereza. Quero sossego. Meus
representantes estão autorizados a começar as vendas depois de amanhã.
Estaremos até a noite nos armazéns, recolhendo novas remessas do arroz que
chegará de São Paulo. Uma frota de quarenta caminhões. Até vinte de maio
próximo, espero o lucro de cinco a seis milhões para começar, em base mínima.
Estas
eram as últimas notas do abastado negociante Pedro João de Toledo quando lhe
vimos enfim no lar o corpo maduro e hirto, que tombara repentinamente na rua,
depois de algumas horas em trânsito agitado para averiguações no necrotério.
Do
livro Histórias e Anotações, obra psicografada pelo médium
Francisco Cândido Xavier.
To read in English, click here: ENGLISH |
Nenhum comentário:
Postar um comentário