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domingo, 5 de maio de 2024

 



Herculano Pires e a natureza religiosa do Espiritismo

 

ASTOLFO O. DE OLIVEIRA FILHO

aoofilho@gmail.com

 

A discussão sobre a natureza religiosa do Espiritismo parece infindável, apesar de todos conhecermos o que sobre o assunto já foi escrito ou dito por vultos espíritas respeitados, como Chico Xavier, Divaldo Franco, Dr. Bezerra de Menezes, Emmanuel, Joanna de Ângelis, entre muitos outros.

Como a polêmica em tal caso se cinge aos autores encarnados, alguns perguntam: - E o professor Herculano Pires? Que escreveu a respeito?

A pergunta advém do fato que é bastante comum vermos no Brasil o nome do professor Herculano associado a eventos promovidos por confrades que disseminam o pensamento laico, segundo o qual o Espiritismo é uma ciência, não uma religião.

Herculano Pires também pensava assim?  

Claro que não. O conhecido e respeitado escritor jamais comungou semelhante ideia. O que ele escreveu sobre a natureza religiosa do Espiritismo é bastante claro e bem conhecido. O leitor pode conferir isso lendo a tradução d´O Livro dos Espíritos que ele fez, a pedido da LAKE, por ocasião das comemorações do centenário da mencionada obra, ideias essas reiteradas por ele quando da publicação pela EDICEL do livro O Tesouro dos Espíritas, de Miguel Vives y Vives.

Escreveu Herculano Pires:

 

“A religião espírita se traduz em espírito e verdade. O que interessa a Deus não é a precária exterioridade dos ritos e do culto convencional, quase sempre vazio: é o pensamento e o sentimento do homem. A adoração da divindade é uma lei natural, tanto quanto a lei de gravidade. O homem gravita para Deus como a pedra gravita para a Terra e esta para o Sol. Mas as manifestações exteriores da adoração não são necessárias.

No item 653 vemos a clara resposta dos Espíritos a respeito: ’A verdadeira adoração é a do coração. Em todas as vossas ações, pensai sempre que o Senhor vos observa’. A vida contemplativa é condenada, porque inútil, assim também a monacal, pois Deus não quer o cultivo egoísta do sentimento religioso, mas a prática da caridade, a experiência viva e constante do amor, através das relações humanas.

O Livro dos Espíritos não deixa de lado o problema do culto religioso, que necessita manifestar a sua religiosidade: essa manifestação se verifica nas formas naturais de adoração, uma das quais é a prece. Pela prece o homem pensa em Deus, aproxima-se dele, põe-se em comunicação com ele. É o que vemos a partir do item 658. Pela prece, o homem pode evoluir mais depressa, elevar-se mais rapidamente sobre si mesmo. Mas a prece também não pode ser apenas formal. Por ela, podemos fazer três coisas: louvar, pedir e agradecer a Deus, mas desde que o façamos com o coração, e não apenas com os lábios.

Temos assim a religião espírita, que mais tarde se definirá de maneira mais objetiva ou direta em O Evangelho segundo o Espiritismo. Uma religião psíquica, como a chamou Conan Doyle, equivalente à ‘religião dinâmica’ de Bergson. No capítulo V da Conclusão Kardec afirma: ‘O Espiritismo é forte porque se apoia nas próprias bases da religião: Deus, a alma, as penas e recompensas futuras, e porque sobretudo mostra essas penas e recompensas como consequências naturais da vida terrena, oferecendo um quadro do futuro em que nada pode ser contestado pela mais exigente razão’. Enfim: religião positiva, baseada nas leis naturais, destituída de aparatos misteriosos e de teologia imaginosa.” (Introdução ao Livro dos Espíritos, redigida por J. Herculano Pires por ocasião da edição especial da LAKE, comemorativa do centenário d´O Livro dos Espíritos, em 18 de abril de 1957.)

 

Anos mais tarde, no livro O Tesouro dos Espíritas, por ele traduzido, Herculano Pires voltou ao tema. Eis então, de forma sintética, o que ele escreveu:

 

O Espiritismo é a Religião em espírito e verdade, de que Jesus falou à mulher samaritana. Mas há espíritas que não compreendem isso e negam a religião espírita. “É possível tirarmos do Espiritismo a fé em Deus e a lei da caridade?” (O Tesouro dos Espíritas, p. 174.)

Todo o problema, que tanta celeuma tem levantado entre alguns irmãos intelectuais, se resume na falta de compreensão do que seja religião. Os confrades antirreligiosos gastam tinta e papel em quantidade por quererem provar um absurdo. “Alegam que Kardec se recusou a chamar o Espiritismo de religião. Mas o próprio Kardec explicou por que o evitou – não se recusou, mas apenas evitou – chamar o Espiritismo de religião: não queria confundir uma doutrina de luz e liberdade com as organizações dogmáticas e fanáticas do mundo religioso.” (Obra citada, pp. 174 e 175.)

Todo homem de cultura hoje compreende que religião não é igreja, mas sentimento. Henri Bergson ensinou que há dois tipos de religião: a social, que é dogmática e estática, e a individual, que é livre e dinâmica. Assim pensava também Henrique Pestalozzi, para quem a religião verdadeira é a Moralidade. Vemos aí um dos motivos por que Kardec dizia que o Espiritismo tem consequências morais, em vez de referir-se a consequências religiosas. “Hoje em dia, o Codificador não teria dúvida em falar de religião, porque o conceito atual de religião é muito mais amplo.” (Obra citada, pp. 175 e 176.)

O Espiritismo tem três aspectos, como sabemos: o científico, no qual ele se apresenta como ciência de observação e investigação, tratando dos fenômenos espíritas; o filosófico, no qual procura interpretar os resultados da investigação científica e dar-nos uma visão nova do mundo; e o religioso, no qual nos ensina como aplicar, na vida prática, os princípios da filosofia espírita. “Queremos, acaso, ficar apenas nos princípios, sem aplicá-los?” (Obra citada, p. 176.)

 

Em face de tão claras observações, é difícil compreender os argumentos dos que pensam de forma diferente, mas, sem dúvida alguma, cabe-nos respeitar as opiniões contrárias e não permitir que sejam motivo de animosidade entre os próprios adeptos do Espiritismo.

 

 

 

 

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