segunda-feira, 30 de setembro de 2013

As mais lindas canções que ouvi (55)

Amigo é pra essas coisas

Silvio Silva Júnior e Aldir Blanc


- Salve!
- Como é que vai?
- Amigo, há quanto tempo!
- Um ano ou mais...
- Posso sentar um pouco?
- Faça o favor
- A vida é um dilema
- Nem sempre vale a pena...
- Pô...
- O que é que há?
- Rosa acabou comigo
- Meu Deus, por quê?
- Nem Deus sabe o motivo
- Deus é bom
- Mas não foi bom pra mim
- Todo amor um dia chega ao fim
- Triste
- É sempre assim
- Eu desejava um trago
- Garçom, mais dois
- Não sei quando eu lhe pago
- Se vê depois
- Estou desempregado
- Você está mais velho
- É
- Vida ruim
- Você está bem disposto
- Também sofri
- Mas não se vê no rosto
- Pode ser...
- Você foi mais feliz
- Dei mais sorte com a Beatriz
- Pois é
- Tudo bem...
- Pra frente é que se anda
- Você se lembra dela?
- Não
- Lhe apresentei
- Minha memória é fogo!
- E o l´argent? (1)
- Defendo algum no jogo
- E amanhã?
- Que bom se eu morresse!
- Pra quê, rapaz?
- Talvez Rosa sofresse
- Vá atrás!
- Na morte a gente esquece
- Mas no amor a gente fica em paz
- Adeus
- Toma mais um
- Já amolei bastante
- De jeito algum!
- Muito obrigado, amigo
- Não tem de quê
- Por você ter me ouvido
- Amigo é pra essas coisas
- Tá...
- Tome um cabral (2)
- Sua amizade basta
- Pode faltar
- O apreço não tem preço, eu vivo ao Deus dará (bis)


(1) Argent é palavra francesa que significa dinheiro.
(2) Cabral: gíria que designava no Brasil uma cédula de mil cruzeiros antigos, com a efígie de Pedro Álvares Cabral.

Você pode ouvir a canção acima, na interpretação do MPB4, clicando em
Uma versão mais recente do mesmo grupo pode ser ouvida clicando-se em https://www.youtube.com/watch?v=HO7Dx4ziU_o
Outra interpretação inesquecível da canção acima devemos aos saudosos cantores Emílio Santiago e João Nogueira, com participação especial de Eduardo Henriques. Eis o link: https://www.youtube.com/watch?v=gsMeutWUTzA





domingo, 29 de setembro de 2013

O milagre que salvou a Inglaterra

Em um artigo sobre a Batalha da Inglaterra, George Patton afirma que somente um milagre salvaria a Inglaterra, que, diante de uma Europa quase inteiramente dominada, era o único país a resistir sozinho à poderosa máquina de guerra alemã.
Quando a Batalha se iniciou, os britânicos contavam com apenas 347 caças monopostos Hawker Hurricane, 199 Supermarine Spitfire, 69 caças noturnos Bristol Blenheim e 25 Boulton Paul Defiant, metade dos quais estava dispersa pelos aeródromos do sul da ilha.  
A Luftwaffe dispunha de 2.800 aviões, entre os quais se contavam 1.300 bombardeiros Heinkel He-111, Junkers Ju 88A e Dornier Do-17; 280 bombardeiros de mergulho Junkers Ju-87 Stukas, 790 caças; Messerschmitt Bf-109, 260 caças pesados Messerschmitt Bf-110 e 170 aviões de reconhecimento de vários tipos.
Os pilotos alemães, altamente motivados pelas sucessivas vitórias, aguardavam a ordem para destruir a RAF – a força aérea inglesa. A tática alemã era, diz Patton, correta: destruir primeiro a RAF para após iniciar a Operação Leão Marinho, com a invasão e a conquista da Inglaterra. Hitler sabia, então, que sem a derrota da RAF a Operação estaria fadada ao fracasso.
Operando com pequenos grupos e com alvos escolhidos, pontes, quartéis, aeródromos e indústrias, a Luftwaffe iniciou a campanha. Diante de tal quadro, o Marechal-do-Ar Sir Hugh Dowding ansiava por um milagre, um milagre que, de fato, no dia 24 de agosto de 1940 aconteceu, embora, como todos sabemos, milagres não existam.
O que ocorreu, em verdade, foi um erro – um erro fatal, nas palavras de Patton. Em face de uma retaliação determinada por Winston Churchill, que ordenou o bombardeio de Berlim, Hitler decidiu mudar de tática e, em vez de atacar as pontes, os aeródromos e as indústrias, os alemães passaram a bombardear Londres, com o que os aeródromos, as estações de radar e as indústrias puderam ser recuperados, permitindo desse modo o aumento na produção de aviões e o treinamento de novos pilotos.
O resultado, todos sabemos: a Batalha da Inglaterra foi vencida pelos ingleses, fato que levou Winston Churchill, após a confirmação da derrota alemã nos céus da Inglaterra, a proferir a celebre frase: “Nunca tantos deveram tanto a tão poucos”.

*

Tudo o que dissemos linhas acima objetivou tão-somente recordar o valor daquele que se notabilizou pela grande vitória, o Marechal-do-Ar Sir Hugh Dowding, considerado o Espírita número 1 da Inglaterra, que solicitou, em 30/7/1952, ao Parlamento inglês o reconhecimento do Espiritismo como religião naquele país. 
Espírita e estudioso dos fenômenos mediúnicos, sabe-se que o Marechal Dowding, a fim de verificar os pontos fracos das operações, dialogava com os aviadores mortos nos combates, nas sessões que realizava, em que uma das médiuns era sua própria esposa, Estelle Roberts, desencarnada em 1971. Seu prestigio após a excepcional vitória forneceu-lhe as credenciais para que sua petição fosse aceita pelo Parlamento inglês, um fato que, meio século depois, só podemos aplaudir.



sábado, 28 de setembro de 2013

Pérolas literárias (55)


Felicidade

Antônio Roberto Fernandes


Quando “eu era feliz e não sabia”,
– como diz o poeta, na canção –
aos meus desejos, sempre com ironia,
o meu destino respondia: Não.

E tudo o que eu sonhava, a cada dia,
sempre ficava além da minha mão.
Se era feliz quem tinha o que queria,
eu nunca pude ser feliz, então.

Hoje, afogado na realidade,
relembro a minha infância, com saudade,
não por ter sido um tempo em que eu sonhei,

mas porque, ainda envolto em fantasia,
eu não era feliz e não sabia,
como hoje não sou... mas hoje eu sei.


Antônio Roberto Fernandes, notável poeta fidelense (São Fidélis, RJ), é autor de três livros, todos esgotados: "Poesia, doce poesia"; "Substantivo Abstrato" e "Os pratos de Vovó", de onde extraímos o soneto acima.



A história que eu sei contar

ARTHUR BERNARDES DE OLIVEIRA
tucabernardes@gmail.com
De Guarani, MG


XVIII – O impulso e a flor

Creio que todos notaram que naquela terça-feira eu, ao entrar na coletoria, trazia uma cara diferente.
Não sei se lhe falei a respeito de uma observação que fizeram sobre o meu sorriso.
Há uma diferença fundamental entre o mano do meu coração – o Amaury – e mim. Dizia o Panza que, quando o Amaury ri, todos os dentes se mostram claros. Aqueles dentes branquinhos, sadios, admiráveis. E tem-se a impressão de que o Amaury não tem apenas 32 dentes, o que seria  normal, mas 64, tal o brilho que através do seu sorriso invade a nossa alma e encanta os nossos olhos. É um sorriso aberto, franco, espontâneo de quem não teme mostrar pela boca a alma linda que tem.
O meu sorriso, dizem, é um sorriso triste. Talvez motivado pela pouca tranquilidade que me inspiram os meus sentimentos. Sei lá. Talvez faça um dia uma pesquisa interior para verificar se há alguma verdade na observação e se as causas são as que eu suponho.
Mas eu entrei na repartição com um sorriso alegre.
Eu estava, naquele dia, como dono de um segredo, que quisera contar para todo o mundo.
Acho que, ao fim da tarde, cheguei a contá-lo ao Zezinho.
E foi com um prazer irresistível que ele me ouviu dizer que eu tinha me reencontrado com o meu destino.
Amigo bom e constante, conhecia de perto as minhas buscas infindáveis em torno de uma vida. E torcia, talvez como ninguém mais, para que eu formasse o meu lar e começasse a construir esse mundo de emoções que uma família feliz pode desfrutar.
As horas passaram rápidas como nunca. Pouco tempo depois já estava eu pronto a recomeçar com ela os planos que iniciáramos na boa manhã.
Às  sete e meia da noite, o salão estava completamente cheio. Gente em toda a parte, inclusive nas janelas.
Fomos para o fundo do palco aproveitar a insubstituível poltrona das nossas cenas.
E lá ficamos todas aquelas horas, esquecidos do mundo, mãos dadas e trêmulas, a contar os minutos que a noite nos dava.
Lá fora, no salão, um orador declamava. Era o poeta Sebastião Lasneau, com dicção sonora, enlevando a plateia, através de “O Espiritismo na Arte”.
Nem mesmo os seus lindos poemas conseguiram romper as minhas meditações e interromper a minha tranquila felicidade.
Depois, eu cheguei à conclusão de que o amor é o mais belo poema, razão por que as belezas que ele ia apresentando, profusamente, não podiam atingir as rimas que nós estávamos tecendo, no silêncio dos olhares que trocávamos.
Aquela mãozinha macia e suave, presa entre as minhas mãos, deixou-me no espírito uma marca inesquecível.
Hoje, casados há sete anos, às vezes me surpreendo, com saudades daquelas mãos. Procuro-as avidamente e lá estão elas, as mesmas, com a mesma suavidade de então, conservando intacto o mesmo calor de antes.
Nem os serviços do lar, nem os calos naturais das obrigações caseiras, conseguiram matar nelas o admirável encanto daquela noite.
Terminara a reunião e a caminhada de volta à casa se deu com o mesmo enlevo e as mesmas emoções.
Ainda nesta noite, eu continuava com os mesmos desejos da véspera. É certo que a suavidade das mãos e a naturalidade com que ela me deixou acariciá-las, tinha criado em mim um impulso repressivo.
E o desejo de abraçá-la, confesso, era mais forte que o impulso. Por outra coisa não esperava, senão que chegássemos à porta.
Suavemente a tinha eu censurado pela maneira abrupta com que se despedira de mim e entrara pela casa, na véspera.
Disse-lhe jeitosamente que os namorados costumam parar uns instantes antes da despedida final.
De modo que ao chegarmos à porta, entrados todos, ficamos os dois sozinhos cá fora. Aí foi que eu me desmontei.
Inocentemente ela me disse:
– Pronto, hoje eu esperei uns minutos para a nossa despedida. Como você quer, ou o que quer você para a despedida?
– Eu queria beijá-la!
E ela me deu a boca para beijar, com uma inocência que matou em mim, na hora, toda aquela vontade louca de apertá-la.
Encostei nos dela os lábios meus e estava terminada a nossa segunda noite.

XIX – Não vi nada mais!

A partir daquele instante eu fizera dela a minha noiva.
Havia, nessa época, uma profunda diferença mental entre mim e minha noiva. Não só pelos sete anos que nos separam, mas sobretudo pela alta soma de experiências que eu tinha adquirido nos meus vai-e-vens da vida.
Aos 23 anos, eu já era um homem maduro. Agora estava com 25. Se até os vinte e três a vida se encarregou de me amadurecer, dos 23 aos 25, meus esforços pessoais encarregaram-se do resto.
Entusiasmado pela literatura, li, nesses dois anos, mais do que em todo o resto, inclusive nos anos que se sucederam. Reputo a fase mais importante dos meus estudos. É a esse período que eu devo a pouca coisa que sei.
Então estávamos assim um diante do outro: o pecado em face da virtude, ou se quiserem o jardineiro encanecido ao lado da flor que desabrochava.
Tive que fazer um esforço enorme para trazê-la da ingenuidade do seu desabrochar até a altura em que me encontrava.
Aqui, antes de prosseguir, já vou responder a uma objeção.
Muitos são os que não creem mais na ingenuidade das moças. E alegam razões absolutamente pertinentes.
Livros, revistas amorosas, filmes, novelas radiofônicas e uma série de outras diversões mais ou menos dignas estariam matando nas flores o doce perfume da inocência.
De fato, não se pode censurar quem pensa assim, tais e tantos são os casos que nos surgem como exemplos.
Entretanto, há a considerar-se uma coisa muito importante. Se no entender, ou no compreender, a ingenuidade se trai, no agir, quase nunca isso ocorre.
Aquela anedota do netinho que falou para o irmãozinho menor, a propósito de uma fuga da avó: – “Coitada, a vovó não sabe que a mamãe está esperando nenê!” –  funciona, em parte.
O netinho sabe que a mamãe vai ganhar um nenê. Mas ele não sabe como fazer para ganhar o nenê. O que houve foi apenas o seguinte: deixou de acreditar na cegonha, e isso já é um progresso, mas não a eliminação total da inocência.
De modo que eu tive de me aproximar muito da idade e dos pensamentos de minha noiva. Era, embora difícil, mais fácil eu me chegar a ela, do que trazê-la até onde estava.
Apesar desse meu enorme esforço, até hoje ela me censura e reclama dizendo que eu não lhe deixei viver a despreocupada alegria de sua mocidade.
Mas a semana passou. Dizer, aqui, o que foram aqueles sete dias inesquecíveis, seria repetir as sempre renovadas diabruras de Cupido. E a repetição talvez me parecesse monótona para você.
Mas há uma passagem que eu não posso deixar de recordar, mesmo porque, no meu entender, ela funciona em defesa da tese que acima levantei. A da ingenuidade e da inocência que culminaram por modificar meus modos de agir e de pensar.
Elizabeth nunca tinha usado um vestido justo. Era a menina das anáguas. Inúmeras, infinitas anáguas, imensas anáguas para armar as saias rodadas que escondiam a admirável escultura de seu corpo.
Íamos dançar, me parece, que no sábado, véspera do fim. E eu lhe pedira que não pusesse anáguas. Não desejava que tantos panos e tantas roupas houvesse a separar nossos corpos. Ela prometeu e foi se vestir.
Quando voltou, a impressão que eu tinha é que não fora atendido no meu pedido. Disse-lhe isso. Ela afirmou que eu estava enganado. Conversa vai, conversa vem, pedi-lhe que me deixasse ver.
– Pois não, se duvida, pode ver.
E eu levantei mansamente a sua saia. Surgiram duas coxas imensas. Lindas como a natureza, perfeitas, grossas, torneadas, de um matiz róseo, mais belo do que a saúde.
Confesso que até hoje não fiquei sabendo se ela estava ou não estava de anágua.
Agarrei-a com tanta força e tamanho frenesi, que ela me disse assustada:
– Que é isso?!!!
– Nada. Vamos dançar.
Hoje, analisando bem a minha vida, às portas do meu trigésimo terceiro aniversário, vejo que assisti a espetáculos memoráveis. Viajando, bastante, tenho observado a natureza em suas mais variadas manifestações de beleza. Mas, confesso: da fonte bailarina de Poços de Caldas aos encantos indescritíveis da Guanabara, nada ficou tão bem guardado como definição de beleza quanto aquelas coxas que foram crescendo diante de meus olhos extasiados.

XX – Guarani e os fantasmas

A minha vida ficou dividida em duas partes: uma, o corpo, arrastado preguiçosamente pelas ruas, em Astolfo Dutra; outra, o espírito, leve como a pluma e ágil como o raio, na cidade de Guarani, trinta quilômetros além.
Do que foi essa divisão retratam bem as cartas que eu escrevi, quase diariamente.
Abelardo e Heloísa não se escreveram tanto, porque se amaram menos do que nós.
Foram cinquenta cartas, que o mestre e artista Carvalhinho as definiria, mais tarde, como cinquenta hinos de louvor ao amor. Estão todas guardadas, com o mesmo carinho de antes. Algumas, ou quase todas, ela as sabe de cor. Um dia você as poderá ler também. Creio que ela o permitiria com prazer.
Meu pai, por sugestão do Amaury, comprou uma baratinha Ford 31, visando às compras na safra.
Não sei se lhe disse que meu pai é atacadista de fumo. Atacadista de fumo é o comerciante que funciona como intermediário entre o produtor agrícola e o varejista que trabalha com o artigo.
Eu disse artigo por amor à técnica. Mas no dizer dos viajantes, fumo não é artigo, fumo é bosta.  Fuma não se vende: empurra-se.
Em minha terra todo mundo só mexe com fumo. Fumo em corda. Come-se fumo, respira-se fumo, a religião é o fumo. Foi o fumo que construiu a cidade e lhe trouxe conforto. Só o fumo poderia ter dado à cidade aquela fisionomia de abastança que impressiona os que lá chegam.
Tudo lá é fumo. A mamadeira é um palmo de fumo. O bico é uma perna de fumo. A cama é um rolo de fumo. A vida é um fardo de fumo.
Vivendo em torno disso, na época da colheita, ou melhor da safra, em si, que é quando as folhas já foram enroladas e “fiadas”, como por lá se diz, a cidade vira um hospício. Carros sobem e descem à procura de negócios. A concorrência desconhece limites. Quase tudo é permitido nesse tipo de comércio. Cotias, fugas, tapeações, segundo misturado com ponteiro; baixeiro misturado com segundo; soca, soquinha, socão. Só vendo de perto, para entender bem. Jipes e automóveis rasgam o município em todas as direções. Todos procurando formar o seu estoque e estabelecer a sua boa média.
De modo que para enfrentar bem a matroca, nada melhor do que um jipe ou um “ford” 29.
Foi por isso que se fez a tal compra.
Não sei quantas arrobas ela conseguiu descobrir. Sei que, infinitas vezes, ela me levou, às vezes sozinho, outras vezes com o Laviola ou com o Abilinho, até as portas da saudade.
Em Guarani, principalmente, mas também no seio de minha família, não deviam fazer bom juízo a meu respeito. Pelo seguinte: Lá chegando, eu e Elizabeth não nos separávamos um só instante. Convites vinham. Para um baile, ou para um aniversário, ou para alguma reunião. No mais das vezes para o cinema, na época dirigido, controlado e administrado pela nossa gente.
Eu não aceitava nada. Não queríamos outra coisa senão ficarmos sozinhos no canto da sala,um em frente do outro, mãos dadas, rostos unidos trocando-nos juras e carinhos. Às vezes o frio apertava e nós fechávamos a janela. Às vezes o frio não vinha e nós também fechávamos a janela. Aquela janela era a porta do mundo. Fechada, nós ficávamos sós como queríamos, dentro daquele mundo que era só nosso.
Quantos sustos pelo inesperado aparecimento da tia Elza. Outras vezes, era a velha Pipina que eu consegui, com arte e delicadeza, atrair para as minhas simpatias. Ela pisava de leve, com o seu gasto chinelo de pano e, embora o ouvido de pé, quando menos esperávamos lá estava aquele fantasma magro em frente de nós. Depois que eu a conquistei, nunca mais me assustou.
Mas houve também, por amor à lógica, o fantasma gordo: a Yara! Quantas horas perdemos de ternura, por termos ao nosso lado, aquela massa gorda a atormentar nossos sonhos. Acho que ela nunca desconfiou da inoportunidade de sua presença. Porque se repetia sempre, inevitavelmente. Até que um dia resolvemos mandá-la às favas.
Tia Teresa era um encanto de pessoa. Voz trêmula, olhos também trêmulos e bons, jamais deixou seu quarto para espantar os pombinhos. Dona Ladinha, a discrição em pessoa. Só depois de tossir, ou de ficar na sala uns dois minutos parada, é que olhava pra nós. Temia ela, coitada, ver um moço que ainda não conhecia tão bem, com os lábios colados nos lábios de sua filha. Faço justiça a essa discrição porque, como vim a saber depois, ela não aprovou com muita presteza o novo namoro da filha. Sonhara outro genro com quem tenha convivido mais tempo e por quem tivesse mais simpatia e admiração. Nunca a culpei por isso. Sei que como mulher previdente, acreditava que o mais certo é contarmos com o pássaro que está na mão do que com os dois que estão voando. Apesar de sua preferência, nunca deixou de nos tratar com muita atenção e gentileza. Eu percebia que não estava diante de uma sogra que houvesse sonhado comigo. A gente percebe isso facilmente, Mas rapidamente ela se transformou na nossa grande aliada, proporcionando-nos encontros, facilitando passeios, pondo enfim a sua colher de areia  no alicerce que se estava construindo.
Seu Ítalo era um homem distante. Temia-se em Astolfo Dutra que ele pudesse censurar a filha pela semana de namoro. O poeta Lasneau que aprovara nossa decisão tranquilizou-nos com a sua sabedoria:
– Podem deixar por minha conta. Elizabeth veio comigo e só eu sou o responsável por tudo que possa acontecer. Não se preocupem. Eu vou conversar com ele.
E deve ter conversado mesmo, porque, embora distante, sempre foi, na família Baesso, depois da filha, o que sempre esteve mais próximo de mim.
Eu tinha  a meu favor um handicap precioso: ser espírita e filho de Astolfo Olegário de Oliveira que ele conhecia  muito bem. Meu pai, pela correção de sua vida, e pelos memoráveis discursos que lá pronunciara, facilitara em muito a minha infiltração naquela família.

- Fim -

Nota:

Com o texto acima encerramos a publicação do livro “A história que eu sei contar”, escrito por Arthur Bernardes de Oliveira. O livro, composto por 20 capítulos, foi publicado neste blog ao longo de dez semanas. A primeira parte foi publicada no dia 28 de julho de 2013.
No próximo sábado, numa espécie de apêndice à obra em causa, publicaremos aqui dois textos escritos recentemente em que Arthur fala sobre seus pais Anita Borela de Oliveira e Astolfo Olegário de Oliveira.



sexta-feira, 27 de setembro de 2013

Que fazer diante das tentações?

Um amigo, depois de expor problemas relacionados com o que ele chama de tentações na área sexual, pergunta-nos: Como fazer para livrar-me dessa prática? Devo concentrar-me mais nos trabalhos?
Sugerimos-lhe, preliminarmente, a leitura do livro O Tesouro dos Espíritas, de Miguel Vives, traduzido por J. Herculano Pires, obra essa já focalizada na revista “O Consolador”, edições n. 159 a 174, nas quais o texto condensado desse livro foi publicado e estudado.
Nesse livro, Miguel Vives estuda o tema tentações e oferece-nos orientação segura de como podemos neutralizá-las.
Dois conselhos devemos ter em mente quando tratamos desse tema, seja quando a tentação advém apenas de uma inclinação infeliz própria, sem influência exterior nenhuma, seja quando a ela esteja associada influenciação proveniente dos maus Espíritos.
O primeiro conselho é não esquecermos a célebre recomendação feita por Jesus: “Vigiai e orai para não cairdes em tentação”. Se não a observarmos, não há dúvida, poderemos cair de novo nas mesmas redes em que já sucumbimos em ocasiões passadas.
O segundo conselho lemos na questão 469 de O Livro dos Espíritos, a primeira e principal obra que nos legou o Codificador do Espiritismo.
Eis o que diz a citada questão:
469. Por que meio podemos neutralizar a influência dos maus Espíritos?
“Praticando o bem e pondo em Deus toda a vossa confiança, repelireis a influência dos Espíritos inferiores e aniquilareis o império que desejem ter sobre vós.
Guardai-vos de atender às sugestões dos Espíritos que vos suscitam maus pensamentos, que sopram a discórdia entre vós outros e que vos insuflam as paixões más.
Desconfiai especialmente dos que vos exaltam o orgulho, pois que esses vos assaltam pelo lado fraco. Essa a razão por que Jesus, na oração dominical, vos ensinou a dizer: ‘Senhor! não nos deixes cair em tentação, mas livra-nos do mal’.”



quinta-feira, 26 de setembro de 2013

Pílulas gramaticais (70)

A obsessão é um dos assuntos mais frequentes nas conversações, palestras e escritos espíritas.
Em face disso, usa-se também bastante em nosso meio o verbo obsidiar, de que deriva a palavra obsidiado, particípio desse verbo.
Há, no entanto, quem prefira usar, relativamente ao assunto, o verbo obsedar, de que deriva a forma obsedado.
Em certa região de Minas Gerais, a palavra obsedado é bastante usada e parece para algumas pessoas ter um sentido mais forte. “Fulano está obsedado” seria, para elas, uma frase mais contundente do que “Fulano está obsidiado”.
A pergunta que se faz é: Qual a forma correta?
Ambas são corretas, mas, em respeito ao nosso idioma, não há dúvida de que deveríamos usar o verbo obsidiar e seus derivados obsidiado e obsidiada.
O motivo é simples: obsidiar veio-nos do latim obsidiare. Ora, o latim é a língua-mãe do idioma português.
Obsedar nos veio do francês obséder. Trata-se, pois, de um galicismo, que devemos repelir sempre que exista no vernáculo palavra de mesmo significado.
O uso comum do verbo obsedar e de seus derivados obsedado e obsedada em determinadas regiões em que o movimento espírita é mais antigo deve, provavelmente, estar relacionado com as primeiras traduções das obras de Kardec, as quais, como sabemos, foram escritas originalmente no idioma francês.
Registre-se que os dicionários reconhecem também a forma obsediar, uma variante de obsidiar, por influência, segundo alguns, da palavra obsessão. Mas, como dissemos, o ideal é que usemos a forma vernácula citada acima.

*

Devemos ter o cuidado de não confundirmos as palavras obsidiado, obsediado ou obsedado com a palavra obcecado, particípio do verbo obcecar.
Obcecado significa: que tem a inteligência obscurecida; contumaz no erro; teimoso, obstinado. 
Exemplos:
– João é obcecado no que faz. (João é obstinado...)
– O rapaz ficou obcecado desde que viu aquela mulher. (O rapaz ficou confuso...)



quarta-feira, 25 de setembro de 2013

A dúvida a respeito da própria morte é comum aos recém-falecidos

Demos continuidade, ontem à noite, no Centro Espírita Nosso Lar, de Londrina, ao estudo sequencial da Revue Spirite de 1858, periódico mensal fundado e redigido por Allan Kardec, o Codificador do Espiritismo. O estudo realiza-se semanalmente, em dois horários: na terça-feira (18h30) e na quinta-feira (14h30).

Eis as quatro questões propostas para debate na reunião de ontem:

1. Existem metades eternas?
2. Quando foi fundada a Sociedade Parisiense de Estudos Espíritas?
3. Como é que os Espíritos fazem os objetos materiais mover-se?
4. A dúvida a respeito da própria morte é comum aos recém-falecidos?

*

Após ligeiro debate em torno das questões acima, foi lido e estudado o texto-base, sendo apresentadas ao final as respostas dadas às perguntas propostas.

Ei-las:

1. Existem metades eternas?

Um assinante suscitou essa questão. Abelardo e Heloísa, evocados, explicaram que a ideia é errônea, mas confirmaram o fato de que as almas afins se buscam, devido à simpatia e à semelhança de gostos e ideais. (Revue Spirite de 1858, pp. 140 e 141.)

2. Quando foi fundada a Sociedade Parisiense de Estudos Espíritas?

Em 1º de abril de 1858, conforme notícia veiculada pela própria Revue. (Revue Spirite de 1858, p. 153.)

3. Como é que os Espíritos fazem os objetos materiais mover-se?

Segundo São Luís, os Espíritos fazem os objetos materiais mover-se dando-lhes uma vida factícia: quando a mesa se ergue não é o Espírito que a levanta; é a mesa animada que obedece ao Espírito inteligente.
Kardec pensava de modo diferente, mas mudou de opinião com a explicação dada por São Luís. Assim, diz ele, quando um objeto é posto em movimento, arrebatado ou lançado no ar, não é o Espírito que o pega, empurra ou levanta: ele o satura com o seu fluido, pela combinação com o fluido do médium, e, desse modo, momentaneamente vivificado, o objeto age como se fosse um ser vivo. (Revue Spirite de 1858, pp. 155 a 158.)

4. A dúvida a respeito da própria morte é comum aos recém-falecidos?

Sim. A dúvida da morte é muito comum nos indivíduos recentemente falecidos, principalmente quando em vida não elevaram a alma acima da matéria. (Revue Spirite de 1858, p. 174.) 

*

Na próxima quarta-feira publicaremos neste blog o resumo do estudo realizado, para que o leitor, desde que o queira, possa acompanhar o desenvolvimento de nossas reuniões.



terça-feira, 24 de setembro de 2013

O melhor dia

CÍNTHIA CORTEGOSO
cinthiacortegoso@hotmail.com
De Londrina-PR

Agora é o tempo ideal. Quanta melhoria nos é necessária para a realização dos desejos presos no peito por falta ainda de desprendimento, de comprometimento com a vida:
– Um dia farei! – normalmente se ouve e se diz essa oração.
No entanto, faz-se imprescindível a compreensão de que a melhor oportunidade é hoje; é o tempo no qual há as orientações mais capazes para se transformarem em realidade.
O tempo trabalha sem interrupção. Ele continua com a disciplina perfeita para se alcançar um futuro harmonizado criado por um presente em equilíbrio. Enquanto alguém se lamenta por ainda não ter conquistado algo, a vida o saúda por mais um desperdício de tempo.
Se hoje deseja aprender um novo conteúdo, então aprenda; se quer cumprimentar o vizinho que ainda não o fez, cumprimente-o; se no banco da praça, perto de casa, quer sentar-se, sente-se e faça a oração diária para, antes de tudo, agradecer e em seguida pedir principalmente força para um caminho mais bem ajustado e proveitoso.
O livre-arbítrio encaminha o coração feliz ou não adiante na estrada; cada um decide por si, cada alma ou espírito também por cada um. Decisão e tempo são fatores de ordem preciosa na reencarnação que se repete quantas sucessivas vezes até o brilho ser bem mais amplo e o corpo físico, levíssimo, quase inexistente.
Vamos, vamos! Após a leitura, há muitos afazeres a serem retomados; há a palavra amorosa a ser proferida para o pai, a mãe, o filho; há o olhar carinhoso a ser lançado aos irmãos necessitados; há tantos ensaios para se tornarem realidade. O progresso está ao lado aguardando decisão.
Hoje é o melhor tempo. E a energia para realizar os nobres atos está em todo lugar: no ar, nas pessoas, na mariposa... essa energia é sinônimo de vida, vida para ser vivida com a sua plena essência maior.

Visite o blog Conto, crônica, poesia… minha literatura: http://contoecronica.wordpress.com/


segunda-feira, 23 de setembro de 2013

As mais lindas canções que ouvi (54)



Tocando em frente

Almir Sater e Renato Teixeira


Ando devagar porque já tive pressa
E levo esse sorriso porque já chorei demais
Hoje me sinto mais forte
Mais feliz
Quem sabe
Eu só levo a certeza de que muito pouco eu sei
E nada sei
Conhecer as manhas e as manhãs
O sabor das massas
E das maçãs
É preciso amor pra poder pulsar
É preciso paz pra poder seguir
É preciso chuva para florir
Sinto que seguir a vida seja simplesmente
Conhecer a marcha
E ir tocando em frente
Como um velho boiadeiro levando a boiada
Eu vou tocando os dias pela longa estrada
Eu vou
Estrada eu sou
Conhecer as manhas e as manhãs
O sabor das massas
E das maçãs
É preciso amor pra poder pulsar
É preciso paz pra poder seguir
É preciso chuva para florir
Todo mundo ama um dia
Todo mundo chora
Um dia a gente chega
Um outro vai embora
Cada um de nós compõe a sua própria história
E cada ser em si carrega o dom de ser capaz
De ser feliz...
Conhecer as manhas e as manhãs
O sabor das massas
E das maçãs
É preciso amor pra poder pulsar
É preciso paz pra poder seguir
É preciso chuva para florir
Sinto que seguir a vida seja simplesmente
Conhecer a marcha
E ir tocando em frente
Cada um de nós compõe a sua própria história
E cada ser em si carrega o dom de ser capaz
De ser feliz...


Você ouvirá esta canção na interpretação de Hebe Camargo e Paula Fernandes clicando em  https://www.youtube.com/watch?v=8kfULy2xQnQ  E poderá também ouvi-la na voz de seus próprios autores. Eis os links: Almir Sater - https://www.youtube.com/watch?v=SWtjTkixv5M / Renato Teixeira - https://www.youtube.com/watch?v=0LiBWPjYby8


domingo, 22 de setembro de 2013

Allan Kardec e as redes sociais

O confrade Wellington Balbo, assíduo colaborador da revista “O Consolador”, examinou em um de seus artigos publicados na citada revista um tema interessante suscitado por uma pergunta que sua filha lhe fez: – Pai, se Kardec vivesse nos tempos de hoje, ele teria Facebook ou Orkut?
Claro que ninguém pode responder a tal pergunta, e isso se deu com nosso amigo, que assim respondeu à filha: – Não posso afirmar, filha; afinal, ele não vive nos dias de hoje. Porém,  acredito que o Codificador utilizaria as mídias sociais para divulgar o Espiritismo.
O confrade foi muito feliz em sua resposta, pois é evidente que Allan Kardec, se estivesse entre nós, valer-se-ia de todas as formas lícitas para divulgar a doutrina espírita.
Veja o leitor este texto do Codificador do Espiritismo publicado na edição de setembro de 1858 da Revista Espírita:
“Dizendo que o Espiritismo se propagou sem o apoio da imprensa, entendemos falar da imprensa em geral, que se dirige a todo o mundo, daquela cuja voz fere milhões de ouvidos cada dia, que penetra nos refúgios mais obscuros; daquela com a qual o anacoreta, no fundo do seu deserto, pode estar ao corrente do que se passa, tanto quanto o citadino; enfim, daquela que semeia as ideias a mãos cheias.
Qual o jornal espírita que pode se gabar de assim fazer ressoar os ecos do mundo? Ele fala às pessoas convencidas; não chama a atenção dos indiferentes. Estamos, pois, com a verdade dizendo que o Espiritismo esteve entregue às suas próprias forças; se por ele mesmo se fez assim tão grande, que será quando puder dispor da poderosa alavanca da publicidade! À espera desse momento, planta por toda parte estacas; por toda a parte seus ramos encontrarão ponto de apoio; por toda parte, enfim, encontrará vozes cuja autoridade imporá silêncio aos seus detratores.”
O texto acima integra o artigo intitulado “Propagação do Espiritismo” e, apesar de haverem passado desde então 155 anos, expressa a mais pura realidade, porque os periódicos espíritas falam apenas aos espíritas ou simpatizantes do Espiritismo. Trata-se de uma limitação decorrente de sua circulação: os não-espíritas simplesmente não têm acesso aos nossos periódicos.
Diferentemente ocorre com os grandes jornais, as emissoras de rádio e as redes de televisão, que atingem grande parte da população, se não a população inteira. Mas sua utilização por parte das instituições espíritas tem um custo bastante elevado que, salvo raríssimas exceções, está fora de suas possibilidades.
Quanto às redes sociais, sabe-se que são elas, hoje, as únicas que podem penetrar nos refúgios mais obscuros – a que se referiu Kardec – e chegar tanto a quem mora na cidade como aos que moram no campo ou no deserto. E tudo isso a custo ínfimo ou zero.
Confrades nossos que já se valem das redes sociais – YouTube, Facebook, Orkut e meios similares – para divulgarem as ideias espíritas, podem dar o testemunho de que é possível, sim, ampliar a divulgação da doutrina espírita sem necessidade de grandes recursos financeiros, uma medida que Kardec, sem dúvida nenhuma, também adotaria.





sábado, 21 de setembro de 2013

A história que eu sei contar

ARTHUR BERNARDES DE OLIVEIRA
tucabernardes@gmail.com
De Guarani, MG


XVI – O emprego e o Estado

Eu lhe disse que trabalhava no Estado? Trabalhava. Tinham cavado, politicamente, para mim, um cargo público. Naturalmente tinham pensado lá com os seus botões:
– Esse camarada só vai pra frente se lhe dermos um emprego público.
Ainda não pude me ater a essa filosofia do “vai pra frente” que tão comumente se ouve. Confesso que de qualquer maneira eu tinha que ir pra frente, já que a vida não para. Não sei se iria bem ou mal. Mas iria. Inevitavelmente iria para a frente.
Dizem os Nélsons Rodrigues deste país que só há uma verdade eterna: “É que ao dia de hoje sucederá, inevitavelmente, o dia de amanhã”.
Às vezes nós não o apanhamos na vida. Mas ele sempre nos apanha.
Mas arranjaram-me um emprego. Coisas de política mineira. Eu era um eleitor. E o pessoal em quem eu votava resolveu me presentear. Fui ser “auxiliar técnico de arrecadação”. Pomposo nome, não acha? Coisas de Minas Gerais.
Até hoje não entendi bem por que “auxiliar” e “auxiliar técnico”. Da arrecadação estava claro. Nós arrecadávamos os tributos do Estado. Em contraprestação o Estado nos pagava também um tributo. Minguado, sempre curto, mas dava pro pão.
Mas auxiliar de quê? Ou de quem? Nós não auxiliávamos nada. Quem auxilia, auxilia a alguém! Nós é que fazíamos o serviço sozinhos. Como auxiliar?
E o técnico? A técnica pressupõe um preparo, um adestramento, um estágio, um estudo, uma adaptação.
Comigo não houve nada disso. Pegaram-me pelo laço e me jogaram lá dentro.
Depois eu vi que o negócio era mais ou menos assim mesmo. Que os menos capazes é que eram os favorecidos, desde que a política dominante os indicasse.
Vi isso, não em contato com os meus colegas, que são os mais eficientes nos respectivos cargos. Vi, depois que estava lá dentro, através de observações efetivas.
Meus colegas, repito, eram excelentes. Honestos, trabalhadores, cumpridores de seus deveres. Todos muito bons e muito compenetrados de suas obrigações.
Junto deles passei os bons anos de minha vida.
O chefe era o Paulo Linhares. Coletor. Muitos anos a serviço do Estado, tendo entrado para a administração fazendária muito cedo, cedo também chegou ao padrão Z, o último da carreira.
O chefe era um moço simpático, louro, alegre e bastante cordato. Tinha um defeito de dicção que nos botava um pouco perturbados no início de nossa carreira. Depois, com o tempo, fomo-nos acostumando, e adivinhávamos de pronto a ordem que ele emitia. Ele resmungava no fundo, e o papel, de imediato, era posto em sua mesa.
Tinha um vício. Não era muito expedito no assinar os talões. De modo que era comum acumularem-se papéis sobre a sua mesa, de tal modo que a Nina a apelidou de “secção-do-encalhe”. Quanto tempo perdíamos à espera de que o Sr. Lery, nome que depois lhe pusemos, porque ele fez uma porta de duzentos quilos cair em cima de um visitante, chamado Sr. Lery, e que lá fora, incumbido de uma revisão nos valores imobiliários rurais. Contribuintes se avolumando na sala de espera, o calor apertando cada vez mais, e os talões dormindo serenamente na secção do encalhe.
A Nina de que lhe falei há pouco era o encanto da repartição. Admirável figura de mulher que todos nós amávamos com o respeito e a veneração que se devem a uma santa.
Jamais a vimos triste ou desanimada. Nos quase nove anos de convivência diária, vi-a sempre com o mesmo sorriso de compreensão e de amizade. Mesmo depois de casada, com o colega Ulisses Linhares, enfrentando agora as dificuldades de mãe e de dona de casa, foi sempre a mesma. Afável, meiga, atenciosa, sorridente, eficiente, tranquila.
Dificilmente encontrarei em minha nova carreira uma mulher tão completa, e tão perfeita em tudo que faz. Com ela aprendi a admirável lição de servir a todos com o sorriso nos lábios.
O subchefe, isto é, o Escrivão, é a veneranda figura do Sr. José Simonini, que Viçosa exportou para Astolfo Dutra. Homem absolutamente tranquilo. Ao vê-lo poder-se-ia dizer: “Está aí um homem com a vida que pediu a Deus”. Católico fervoroso, jamais teve para com os dois espíritas que baixaram na sua repartição a menor palavra de censura ou de desapreço.
Espírito jovem, tinha sempre uma anedota para amenizar o cansaço dos números, nas horas das nossas obrigações.
Sua letra era um desenho. E o caixa geral da repartição lá está guardado como uma relíquia muito bem guardada.
Vivia para a repartição. De manhã à tarde, seu habitat preferido era lá. Às vezes nos perguntávamos, bisbilhoteiros de sempre: O que será que o Sr. Simonini vem fazer aqui, toda manhã? Há tanto serviço assim?
Provavelmente lá iria desenhar no seu Caixa Geral, caixa que eu andei enfeiando com o balancete de dois meses.
Seu amor predileto era o que ele chamava de “a  preciosa”. A preciosa era a fita da máquina em que estavam relacionados todos os valores da despesa e receita ocorridas no mês. A preciosa, segundo ele, era a bússola do Balancete. Se ela jogasse, tudo estava certo. Se algum erro, porventura, houvesse, a preciosa inevitavelmente acusaria.
Depois eu acabei desmoralizando a preciosa adotando um processo mais rápido. A princípio ele não gostou da ideia. Diabo, vinha eu com minhas inovações matar-lhe um amor tão antigo. Depois, acabou concordando e ficou sepultada para sempre a sua divina “preciosa”.
De Simonini trouxe, além de outras, uma feliz recordação. Eu que esperava dar-lhe alguma coisa, pela atenção com que sempre me distinguiu em todos os meus dias, fui surpreendido com um necessário presente: deu-me um terno, cortado e costurado, por ele próprio, com toda a arte e perícia. Antes do emprego público ele se notabilizara em sua terra como um excelente alfaiate.
Coitado, viu que eu não tinha lá boas roupas e, apressou-se, comprando do mascate Zezinho um lindo corte de casimira inglesa que  transformou num belíssimo e moderno terno. Parece que ele estava adivinhando que pouco tempo depois nos separaríamos para sempre.
Esse mascate de que falei há pouco é o outro auxiliar da repartição, o ilustre cidadão José Espíndola Filho, brasileiro, vacinado, casado e pai de seis filhos.
Nós o chamávamos  nosso “Consultor Jurídico”. Muito eficiente na sua função, tinha um hobby: ler, religiosamente, as revistas “O Fisco em Minas”, para estar em dia com a legislação fazendária.
Creio que esse amor à legislação nasceu, em Cataguases, em contato com o Coletor Estadual, Sr. Humberto Henriques, numas aulas que lhe andou ministrando, com vistas ao concurso que teríamos de fazer em busca da estabilidade. Das aulas do Sr. Humberto para cá, o homem se doutorou e, quando ele fala, todos nós murchamos as orelhas.
É um cabra que está sempre nervoso. Está, não. Parece estar, porque, no fundo, é um coração de passarinho. Pintávamos o sete com ele, e a todas as nossas brincadeiras respondia com um sorriso satisfeito.
É um camarada bravo. Com ele não se pode abusar, porque é malcriado como o Iracytho, embora nele predomine o sentimento dominante do amor às boas causas e à caridade. Nunca se esqueceu de entregar-me, mensalmente, a contribuição que ele próprio se fixou, em favor do nosso asilo de órfãs.
De vez em quando ia a São Paulo, para onde foi obrigado a transferir a família, com vistas à educação de seus filhos, e de lá voltava com uma mala nas costas, cheia de bugigangas. Da calça de mulher ao brinco, tudo se achava lá dentro. E eu  morria de rir, vendo o Zezinho, com aquelas peças íntimas para vender.
O outro auxiliar era o Sr. Mário Vitoriano, excelente orador e grande violonista, que com sua voz sempre alta dava à repartição uma aparência de hospício. Não perdoava ao Paulo, com quem discutia sempre a propósito dos lucros das terras do Jacaré. O Paulo argumentava, fazia cálculos, escrevia números, mas o Mário, imperturbável, o encostava à parede. Muito brincalhão, memoráveis debates tivemos a oportunidade de ver, mas o de que mais me lembro foi de uma questão levantada, por ele, a respeito de um filho louro de uma mocinha morena que tinha trabalhado na casa do Paulo e que casara com um moço também moreno.
Não sei se já se encontrou uma explicação mais viável para o caso. Mas dessa discussão rimo-nos a valer.
Esses foram os companheiros que me receberam naquele dia de trabalho, após o célebre reabastecimento espiritual. Com eles convivi, de perto, quase nove anos e de nenhum, durante todo esse tempo, tive a menor razão de queixa.
É provável que para eles eu não tenha sido tão bom quanto o foram para mim. O certo é que de todos me lembro com saudade, deles guardando as melhores recordações.
Depois surgiu o Arnaldo, garoto contratado pelo Simonini, nas férias do Paulo, e cuja permanência, como contínuo, foi confirmada pelo titular da chefia.
E bem depois, já ao apagar das minhas luzes, junto deles, lá chegou o Roberto Garoni, em período de estágio, enquanto aguardava uma nomeação prometida .
Naquele porão da casa do Sr. Alberto Pereira Menezes, junto de gente tão amiga, vi passar um pedaço muito importante de minha vida. E só uma coisa me tiraria de lá. Uma coisa presa à origem de meu ingresso e que me tolhia, demasiadamente, a liberdade.
Nasci para ser livre. Todos os homens nascem para ser livres. Não há bem maior que a liberdade, principalmente a liberdade de pensar. E foi por buscá-la que troquei uma carreira por outra.

XVII – Nasci pra ser livre!

Eu já explico.
Foi uma manobra política que me deu aquele emprego. E eu fiquei inevitavelmente preso, grato que sou, aos que me distinguiram com a nomeação.
Penso, com Rui Barbosa, que só não muda o homem que não evolui. E quanto mais o homem muda, maior é o sinal de que ele procura acertar.
Tenho dito diversas vezes que o importante, em nossa vida, não é acertarmos sempre, mas errar menos,  procurando sempre agir melhor.
Um homem que estaciona é um cérebro que se enferruja. Um homem, cristalizado dentro de determinados princípios, é uma massa sem cor e sem vida. O homem, para dignificar a sua posição, tem que ser dinâmico. Dinamismo significa evolução. Principalmente dinamismo nas ideias.
Tudo muda na vida. Se as árvores permanecessem imutáveis jamais chegariam à divina explosão dos frutos. É por mudar que a mocinha de hoje se faz mãe amanhã. É mudando, e mudando sempre, que se passa da infância para a juventude, para a maturidade, para a velhice e se atinge a eternidade.
A mudança é tão fundamental em nossa vida que Alexis Carrel afirmara que nenhum homem é o mesmo em dois segundos sucessivos. Tudo se transforma em nós. As células se substituem, os tecidos se modificam, os átomos se renovam, porque vida é sinônimo de renovação e de mudança.
Há quem diga que devemos mudar nem que seja para pior. Não vou  a tanto, embora compreenda e aceite o ponto-de-vista. O que digo é que devemos sempre mudar, claro que para o melhor, ou para aquilo que supomos o melhor.
Na minha posição de servidor público, lá posto da maneira que fui, eu era um homem amargurado, triste, abatido. Injustiças e mais injustiças desfilavam-se ante meus olhos, sem que eu pudesse, ao menos, levantar o clamor da desaprovação.
Mesmo o concurso, a que depois me submeti e que me deu a estabilidade funcional, não conseguiu apagar em mim aquelas reações desagradáveis; e meu irresistível desejo de mudar chocava-se sempre com o meu  sentimento de gratidão.
Meu mal era irreversível. Eu me consumia, a cada novo dia, no mais lamentável de todos os tédios. Vi-me afastar de meu pai e de meus irmãos e seguir um caminho que eu sentia não ser o melhor, para, através do voto, pagar aquela dívida que me consumia.
Eu estava sufocado. Parece-me que só duas pessoas sabiam dessa angústia. Duas não, três: minha mulher, o Jarbinhas Scher e o Zezinho.
Eis senão quando surge no horizonte do DASP um concurso para escrivão federal. Cá disse comigo mesmo: “Nesta eu me embarco e adeus Astolfo Dutra. Vou readquirir lá fora a liberdade que  perdi aqui dentro”.
Para trás fiquem meus amores e minhas amizades. As árvores em que tantas vezes subi nas minhas brincadeiras juvenis, as águas em que tantas vezes me banhei, as ruas em que ficaram, palmo a palmo, as minhas emoções mais fortes, os olhares que me fitaram com tanta simpatia nos dias de festas, as casas em que eu aprendi a ver um prolongamento da minha, tudo isso que representa o baú das minhas mais caras recordações, vale menos do que a liberdade que eu procuro.
Nasci para ser livre. Todos os homens nasceram para ser livres. Quero a liberdade dos pássaros para conhecer outros céus e amar outras estrelas e apertar nas minhas mãos as mãos de outros seres, mas sobretudo para ser eu, sozinho, o verdadeiro dono de mim mesmo. Sei que durante muito tempo fui “o filho do Astolfo” de que, na realidade, me orgulho. Só muito tempo depois acabei sendo reconhecido como eu mesmo, Arthur Bernardes construindo sua história. A gente sabe quão importante é a influência dos pais nos caminhos do filho. Vezes há que essa influência é tão forte que o filho dela não se liberta, atravessando uma existência inteira sem marcar sua passagem  na Terra.

Nota:

O texto acima faz parte do livro intitulado “A história que eu sei contar”, escrito por Arthur Bernardes de Oliveira e concluído no dia 28 de julho de 1964. O livro compõe-se de 20 capítulos e está sendo publicado aqui ao longo de dez semanas, sempre aos sábados. A primeira parte foi publicada neste blog no dia 28 de julho de 2013.