ARTHUR BERNARDES DE
OLIVEIRA
tucabernardes@gmail.com
De Guarani, MG
XIV – O pai é o exemplo
Meu pai é um
homem impressionante.(1) Nascido em 1908, filho de José Basílio e de
D. Rita. Não conheci a vovó Ritinha e do meu avô só tenho uma recordação
bastante desagradável. A dos seus últimos momentos de vida, estirado numa cama,
nos estertores dos últimos suspiros. Aquele homem magro, cadavérico, com a
língua enroscada, assistindo, sem nenhuma possibilidade de luta, à chegada do
fim.
Inteligência
aguda, nos cursos que fez, quase todos particulares, e com o esforço próprio,
foi o primeiro da sala. Pobre, tendo como mãe uma mulher um pouco debilitada
mentalmente, sofreu como cachorro, na infância, na mocidade e nos primeiros
anos de casado.
Estudou por
correspondência e concluiu um curso de Contabilidade, tendo defendido alguns
pedaços de pão, suplementando durante a noite o pouco ganho do dia.
Parece-me que
as dificuldades o levaram a uma vida um pouco desregrada nos seus primeiros
anos, até que a presença de Abel Gomes mudou o rumo de sua vida. Ingressando no
Espiritismo, desenvolveu enormemente a sua cultura, através da literatura
espírita, sem favor nenhum das melhores que o mundo conhece. Melhores e maiores.
Fundou o
jornal “Arauto da Fé”, em companhia do Mário Vitoriano e Amadeu Santos, e
conseguiu, creio que por correspondência, uma carteira de jornalista.
Durante
muitos anos foi assim uma espécie de a grande cabeça da cidade. Escrevia quase
que sozinho dois jornais: “Arauto da Fé”, publicação espírita, e “A Tribuna”,
publicação da Prefeitura Municipal de Astolfo Dutra.
No
Espiritismo, cedo começou a sua faina de pregador, transformando-se num dos
maiores oradores espíritas que eu conheço.
Dono de uma
facilidade de expressão admirável e possuidor de um estilo claro e correto,
produziu páginas admiráveis. Polemista, dele se tornou célebre a participação
contra o Professor José Schiavo, da cidade de Ponte Nova, a respeito de
problemas e assuntos religiosos.
Tem viajado
por inúmeros estados e em toda a parte por onde passa deixa uma legião de
amigos e de admiradores sinceros.
Não conheço
ninguém com tanta capacidade de fazer novos amigos. É um homem bastante
experimentado e de tudo conhece um pouco. Embora haja assuntos dos quais ele
conheça muito.
Difícil
escrever sobre ele. Dono de um coração admirável, não distingue pessoas. Pobres
e ricos à sua presença sentem-se absolutamente à vontade.
Dono de uma
prosa cativante, com ele se passa horas e mais horas, sem que o relógio nos
desperte.
Sua grande
virtude é não medir dificuldades para ajudar seus semelhantes. Patrão
excelente, todos os seus viajantes tornaram-se mais ricos do que ele.
Dinâmico, sua
vida toda tem sido encaminhada no sentido de construir. Tem o hábito da
construção. Não fica sossegado, se não estiver edificando alguma coisa.
Politicamente
divergimos quase sempre. Quando na Revolução de 1932 esteve na iminência de ser
preso, parece que o seu espírito se inclinou para o terreno da oposição. E como
oposicionista ferrenho, tem acentuadas simpatias pela UDN. Ora, como eu sou
fundamentalmente avesso ao sistema político-partidário udenista, é natural que
os nossos pontos de vista não se encontrem, o que, sinceramente, lamento.
Eu entendo
que, embora mais moço, esteja em melhor situação para analisar determinados
problemas do que ele. Sobretudo porque em meu espírito ainda não chegou aquela
marca da perseguição que ele conheceu, duramente, de perto, e que culminou por
lhe dar uma visão muito pessoal das coisas, subordinando-se a uma filosofia que
eu não consigo aceitar.
É natural que
ele me suponha enganado, não só pela consciência que tem da própria
inteligência, indiscutível aliás, como pelo número de anos que leva de vantagem
sobre o filho.
É o tipo do
homem justo. Sua justiça só sofre distorções, quando em debate certos fatos
políticos, e aí consolido milha posição, porque sou justo em todas as
situações, inclusive na política.
Como pai,
talvez motivado pela dureza de sua vida e de seus problemas iniciais, nunca
permitiu que nos aproximássemos muito dele, razão por que havia, e até hoje
ainda há, um certo temor dos filhos no debate de algumas ideias na sua
presença. Por isso mesmo, entregava à esposa a tarefa de nos encaminhar mais de
perto. É evidente que dele temos recebido sempre as mais preciosas orientações,
mas entendo que levamos vantagem, quando confrontamos a influência dele e de
minha mãe.
É claro que
ele não se sente diminuído com isso. Fã numero um da esposa, sabe o tipo de
mulher e de santa, a quem ele transferiu, em grande parte, a tarefa da educação
dos filhos.
Nós, em casa,
nos nossos momentos de desânimo, algumas vezes, o culpávamos, achando-o melhor
para os estranhos do que para nós. No fundo, estávamos enganados, porque ele em outra coisa não pensa senão na
felicidade dos filhos.
Como avô,
talvez porque o tenha sido muito cedo, não é dos mais amorosos. Mas faz lá de
vez em quando a sua média com os netos. Todos nós o adoramos. Mesmo quando o
censuramos muito, naquilo em que não nos atende, fazemo-lo por amor.
Bastante
acomodado, raramente escreve aos filhos. Mas, quando o faz, apaga de uma só vez
todos os aborrecimentos provocados pelo silêncio tão longo.
Enfim, é
preciso uma boa análise para que o entendamos melhor.
Extremamente
caridoso, construiu, com outros irmãos, a Fundação Espírita Abel Gomes, para
abrigar menores desamparados. Vive para aquela casa. Todos os seus sonhos se
orientam para a sua Fundação e tudo o que faz é visando ao desenvolvimento
maior daquela casa, com maior conforto e melhor educação para as meninas que lá
se abrigam.
Pai de onze
filhos, muito cedo ficou sozinho. Casou todas as filhas, e três dos cinco
filhos.
Em matéria de
planos, foi dele que herdou o Amaury. Faz planos fabulosos, mas logo após
acomoda-se, e os abandona, por comodismo, para ficar em paz.
Solicitado
por toda parte, como orador espírita, quase sempre arranja uma “dor de cabeça”
para afastá-lo do ônibus.
É das pessoas
que conheço a que mais admiro e a quem mais afeição eu dedico. Confidente de
muitos anos, e companheiro de todas as horas, fizemos jornadas memoráveis e
debatemos ideias e problemas importantíssimos.
Sei que a
minha saída representou em sua vida uma lacuna, Tão grande quanto a que a sua
ausência provocou no meu caminho.
Alegre,
jovial, prazenteiro, junto dele não se conhece tristeza. Amigo de seus amigos,
muitos apertos sérios tem enfrentado em sua vida, por não saber deixar de
atender a quem o procura.
Correto em
seus negócios, honesto até a sublimação, é um homem completo. Culto e inteligente,
bom e amigo, dinâmico e feliz.
É assim o meu
pai, como lhe disse, um homem impressionante. Que está construindo uma obra que
há de dignificar o seu futuro e abençoar o seu passado.
XV – O escândalo e a fé
Mas, como eu
lá ia dizendo, quando chegamos à Fundação, para a reunião matinal, o meu
cunhadíssimo Wálter veio ao nosso encontro. E foi com essas palavras que lhe
apresentei a Elizabeth.
– Wálter,
apresento-lhe aqui a minha futura esposa.
Wálter,
sorridente, com aquele jeitão de quem está sempre brincando, engrossou a voz:
– Olha
lá, cunhado, vê lá o que está fazendo.
E perguntou a
ela se ela achava que daria certo, dizendo, antes da resposta, que eu era o
tipo consumado de “embrulhão”, mas um bom sujeito.
Elizabeth
respondeu timidamente:
– Vamos ver,
não é. Vamos tentar. Se der certo, bem. Se não, que fazer?
Estava
quebrada a barreira inicial. A timidez da primeira hora passara com uma
velocidade que estava fora de todos os meus cálculos. Dali para frente, a
grande caminhada.
Confesso que
nada ouvi daquele reabastecimento. Estava eu restabelecido com outra espécie de
vigor, que não é apenas “o” espiritual, mas que é profundamente espiritual.
É provável
até que eu tenha falado alguma coisa sobre o ponto, pois estava atravessando a
fase do entusiasmo, aquela em que por qualquer coisa estamos nos levantando e
deitando a nossa falação.
Disso não me
lembro bem. Só me lembro que naquela manhã só tinha olhos para vê-la. E o pior,
sinceramente o digo, é que a via com um pouco de audácia. Olhando-a, procurava despi-la,
para descobrir por trás dos panos aquele corpo que me aparecera na véspera,
inteiramente nu.
Eu era todo
olhos. Olhos maus, impudentes, mas sinceros. Isso sempre fui. Costumava dizer,
ao definir-me, que era sincero até nos momentos de insinceridade.
Um dia parei
para analisar essa frase, e verifiquei que ela não tinha nenhum sentido. Mas me
agradou, porque me pareceu definir bem a sinceridade que eu procuro imprimir em
todas as minhas ações. Cheguei a gostar
dela. E não a risquei jamais das minhas elucubrações.
Dos meus
trezentos vícios e das minhas duas virtudes, posso dizer, com certa ênfase que
sou feliz dentro da minha sinceridade.
Tenho
observado nos meus anos de vida e nas andanças que tenho feito que a
sinceridade é uma das aves mais raras no convívio dos homens. Vejo que há,
entre as criaturas, uma verdadeira obsessão pela insinceridade, como se ela
fosse a própria essência da vida.
Em parte
entendo essa maneira de pensar. Para vencer na vida, a insinceridade é o
caminho mais curto. Na política, então, chega a ser uma virtude. Sobretudo
nessa política que no Brasil, segundo Rui Barbosa, virou politicalha.
Foi por vê-la
tão difícil que me tornei amigo dela. É claro que no princípio tive que passar
por seriíssimas ginásticas mentais. Depois fui me acostumando. De modo que hoje
ela funciona com uma naturalidade impressionante em minha vida.
Mas, para
exemplificar como a sinceridade é difícil, vou citar um exemplo.
Antônio
Siqueira de Carvalho é uma das mais adoráveis criaturas que tenho conhecido.
Bom como a água, simples como as pombas, encantador como as flores, puro como o
sol. Pois bem, lendo as primeiras páginas dessa conversa, apressou-se a me
aconselhar uma perífrase, Justamente para substituir o que eu disse, quando vi
a Elizabeth pela primeira vez. Lá está, com palavras textuais: “Confesso que
não a achei bonita”. Profundo psicólogo e marido exemplar, temia ele que
aquelas palavras, ditas assim de maneira tão sincera, pudessem não digo
desgostar, mas amarelecer o sorriso de minha esposa ao dar-se com elas.
Retruquei com
todo o respeito que me merece essa admirável figura de homem e de artista:
– Substituir,
não substituo. Ou eu conto o que aconteceu ou não conto. O que não posso fazer
é fugir à sinceridade que me norteia a vida.
É por isso
que não me acanho ao reproduzir agora as impressões daquela manhã feliz.
Sei que
muitos espíritas, principalmente os mais velhos, ficarão escandalizados, ou
melhor, ficariam escandalizados se fossem ouvir essas confidências.
Diriam,
doutoralmente:
– Isso é um
absurdo! Uma profanação! Uma afronta aos amigos do espaço!
E
apresentariam o remédio:
– Fizesse uma
prece, para afugentar os maus pensamentos. Pedisse passes magnéticos aos
protetores e tudo estaria resolvido.
Mas eu lhes
retrucaria:
– E quem
disse que eram maus os pensamentos? A maldade está nas coisas, ou está em nós?
E ademais nós só buscamos a prece para afugentar de nós o que nos desagrada. E
aqueles pensamentos me agradavam mais do que tudo. E eu era feliz com eles.
Desculpem-me
o escândalo que eu possa, com essas palavras, provocar.
Mas
lembrem-se de que estava diante da mulher que há muitos anos vinha procurando.
Afigurava-se-me aquele encontro como o reencontro comigo mesmo. Era o ressurgir
de uma emoção, já quase morta. Pelo amor de Deus, compreendam isso!
Eu achara
finalmente o tesouro por que procurava ansiosamente. Então, eu que chego aos
vinte e cinco anos, numa procura insistente e sempre inútil, acumulando
decepções sobre decepções; alimentando insatisfações continuadas, enredando-me
nos mais fragorosos e sucessivos fracassos; chegando mesmo a perder o sentido
da vida, em face de uma procura tão mal sucedida; agora que a encontro, posso
dar-me ao capricho de afugentar de mim aqueles pensamentos, que já estavam mortos? Para lá. Espera aí!
Ademais o
pensamento de que se gosta é incontrolável. Na vida só há uma liberdade
realmente positiva. Aquela que nos permite pensar.
Mas a reunião
terminou e fomos seguindo os nossos destinos. Ela para o repouso da tarde. Eu
para os talões burocráticos da fazenda estadual.
(1) No
dia em que este livro foi concluído, Arthur contava 33 anos e Astolfo Olegário
de Oliveira, seu pai, apenas 56.
Nota:
O texto acima
faz parte do livro intitulado “A história que eu sei contar”, escrito por
Arthur Bernardes de Oliveira e concluído no dia 28 de julho de 1964. O livro
compõe-se de 20 capítulos e está sendo publicado aqui ao longo de dez semanas,
sempre aos sábados. A primeira parte foi publicada neste blog no dia 28 de
julho de 2013.
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