sábado, 5 de outubro de 2013

A história que eu sei contar

ARTHUR BERNARDES DE OLIVEIRA
tucabernardes@gmail.com
De Guarani, MG


APÊNDICE


Minha mãe

Minha mãe morreu com quarenta e um anos de idade. Hoje eu tenho oitenta e dois (o dobro dela) e fico na dúvida de quando chegar lá em cima se vou chamá-la minha mãe, minha filha ou minha neta. Ou se vou voltar a ser criança para pedir-lhe a bênção, beijar-lhe as mãos ou deitar-lhe no colo.
Recebeu no ventre para a majestosa viagem da reencarnação nada menos que doze espíritos, sendo que o último apenas por oito meses de gestação, interrompida com a sua morte e não permitindo que ele assistisse ao esplendor da vida.
Dr. Grossi, médico de família, já havia advertido: – “Anita, você não pode ter mais filhos. Sua idade e saúde não suportarão outra gravidez.” (Minha mãe já passara por três derrames cerebrais, de onde voltara após luta memorável.) – “Ora, doutor” – respondia ela – “eu estou aqui a serviço do Pai e não posso recusar, em hipótese nenhuma, os filhos que Ele quiser me mandar.”
Claro que ela não morreu por causa da gravidez. Terminara sua tarefa. (E que tarefa!) Tinha que voltar.
Uma das boas lembranças que ficaram na minha memória é o que se deu na sala de costura da velha casa da Rua Manoel Hipólito, em Astolfo Dutra. Eu estava lendo em voz alta, porque eu gostava (gostava, não, gosto) do ritmo e das inversões do fantástico poema de Luís Vaz de Camões, Os Lusíadas, quando minha mãe, que estava à máquina na sua função de costureira, parou e ficou a ouvir. Minha mãe não era mulher de letras, mas muito bem articulada e inteligente era capaz de ouvir e de entender as coisas. Até as estrelas, como diria Bilac.
E ficávamos horas repetindo os versos que ainda estão na memória. “As armas e os barões assinalados, se a tanto me ajudar o engenho e a arte, cantando, espalharei por toda parte...” Um parêntese. Nesses versos há interessante curiosidade da língua portuguesa. É o verbo no singular para um sujeito aparentemente composto (Se a tanto me ajudar (e não ajudarem) o engenho e a arte). Quando o sujeito composto é constituído de palavras que indicam gradação ou sinonímia, ou parcela uma da outra, o predicado fica no singular. Mas... continuando. O canto nono é um primor de poema de suave sensualidade e erotismo. Tal como o Cântico dos Cânticos, um dos livros da Bíblia, sua leitura era proibida pelos pais às filhas casadoiras.
De vez em quando ela pedia: – Arthur, leia um pouco os versos de Camões. E a gente ficava bom tempo encantando-se com o talento do genial português.
Ah, que saudade da minha mãe, sobretudo agora, quando os anos já pesam tanto e as forças que ainda restam são tão poucas!

Meu pai

Meu pai era extremamente severo conosco. Não elogiava; não aplaudia; achava que a gente estava sempre dando menos do que podia dar. Pelo menos, perto da gente. Longe, não. Longe ele sempre falava bem dos filhos; elogiava alguma virtude que a gente pudesse ter; algum desempenho nas manifestações das artes que a gente sempre cultivava para apresentar nas reuniões de nossa  juventude.
Era como um rei ou uma rainha. Ai da gente se tentasse dirigir-lhe a palavra. Só quando ele puxasse conversa ou perguntasse alguma coisa.
Não me lembro que foi que eu e meu irmão mais velho, Amaury, fizemos para tomar dele uma surra com um pau de barbante nas costas. Antigamente (eu não sei se ainda há essa forma de apresentação desse tipo de barbante a que eu quero me referir), mas antigamente esse barbante mais grosso, utilizado no comércio de fumo em corda, era acondicionado em forma de ... como direi?... de trançado, do comprimento de mais ou menos uns 60 centímetros e formava uma espécie de corda grossa, pesada, que batendo no lombo da gente deixava marcas profundas, até cortes mesmo. Ele era assim.
Meus dois irmãos mais velhos, a Marília e o Amaury, brilhavam na escola. Estavam no 1º e 2º anos do antigo curso primário (hoje esse curso é chamado de ensino fundamental). Só tiravam, nas provas de desempenho, dez com distinção e louvor.  Era mais que dez. Mas como na avaliação eles só utilizavam valores até dez, para dizer que aquela prova valia mais que dez, eles inventaram essa forma de dizer isso, acrescentando ao número dez essa expressão “distinção e louvor!” com uma exclamação enorme para chamar mais atenção ainda. Meu pai espumava de tanta alegria. Todos, na pequena cidade de Astolfo Dutra... (antigamente minha cidade, como distrito de Cataguases, chamava-se Porto de Santo Antônio. Vejam que coisa mais bonita: Porto de Santo Antônio. Porto, lugar de emoções. De quem parte, emoções de tristeza, de saudade, de dor. De quem chega, emoções de alegria, de reencontro, de renovação... E ainda mais: de Santo Antônio, o santo das casadoiras.) Quando virou cidade, resolveram mudar e colocaram um nome que nada tem a ver com a cidade:  Astolfo Dutra. Astolfo Dutra foi um homem muito importante. Maior até que a nossa cidade e seus habitantes. Mas nada tinha a ver com o nosso Porto de Santo Antônio.
Pois bem, aí cheguei eu.  Foi um fracasso. Tomei pau no terceiro ano. Uma tragédia. Fiquei marcado como a exceção inevitável. Não há um provérbio que diz que “toda regra tem exceção”? Pois bem! Eu fui a exceção dos filhos do Astolfo. Ganhei logo novo status e nova alcunha: o burro da família. Nisso que aconteceu, meu pai não quis investir comigo nos estudos. Amaury foi ser interno no Colégio de Cataguases, onde continuou brilhando como sempre; eu fui ficando por cá fazendo os mandados da casa. Minha obrigação mais importante era ir ao correio buscar a correspondência de meu pai que chegasse no trem das sete. Eu podia estar no centro assistindo a uma reunião importante. O trem fazia barulho na linha  por detrás da nossa rua, meu pai olhava para mim, indiscretamente, todo mundo via, e eu tinha que levantar rápido e correr para o  correio aguardar que Dona Guiomar distribuísse a correspondência chegada para os escaninhos de cada portuense que comumente recebia maior volume de  correspondência para, depois, abrir a porta e começar a entregar às pessoas presentes aquilo que houvesse chegado. De posse daquele maço de cartas, cartões, revistas, jornais, voltava eu orgulhoso para entregar tudo aquilo a meu pai.
Tempos depois, acho que, com a consciência pesando, meu pai chegou em casa, em cima quase do exame exigido para a matrícula no primeiro ano do ginásio (hoje é uma parte do tal curso fundamental) e me disse de supetão: – Olha, vou dar a você uma chance. Vai fazer a prova do exame de admissão e se passar eu te mando pro ginásio.  Se não passar a manivela está te esperando para o empacotamento do fumo. (Meu pai era fumeiro: vendia fumo para os estados de São Paulo, Mato Grosso, Paraná etc. Naquela altura já tinha um punhado de viajantes trabalhando pra ele.)
Parei com tudo. Minha mãe me liberou de todas as obrigações e eu me debrucei sobre um livro com toda a matéria exigida na prova e com muita sorte consegui ser aprovado. Que sufoco! Mas valeu a pena. Pude então começar, já velho para a primeira série, minha trajetória estudantil. Eu estava entrando no ginásio, com quatorze anos, quando todos os meninos da minha idade estavam já saindo com o diploma na mão.
Meu pai era um homem extraordinário. Um dos maiores oradores da Zona da Mata mineira.  Autodidata, foi pioneiro, juntamente com Amadeu Santos e Mário Vitoriano, na divulgação da doutrina espírita em nossa terra.
Hoje, Astolfo Dutra é a mais espírita cidade de nosso País. Fruto, sem dúvida, da trajetória desses três pioneiros de que ninguém se esquece na cidade.


Nota:

O livro “A história que eu sei contar”, escrito por Arthur Bernardes de Oliveira em 1964, foi publicado aqui ao longo de dez semanas. A primeira parte foi publicada no dia 28 de julho; a última, no dia 28 de setembro de 2013.
Os textos que compõem o Apêndice – acima transcritos – foram escritos no início de agosto deste ano, ou seja, 49 anos depois de redigido o livro, e focalizam Anita Borela de Oliveira e Astolfo Olegário de Oliveira, pais de Arthur e também meus pais.






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