ARTHUR BERNARDES DE OLIVEIRA
tucabernardes@gmail.com
De Guarani, MG
APÊNDICE
Minha mãe
Minha mãe morreu com quarenta e um anos de
idade. Hoje eu tenho oitenta e dois (o dobro dela) e fico na dúvida de quando
chegar lá em cima se vou chamá-la minha mãe, minha filha ou minha neta. Ou se
vou voltar a ser criança para pedir-lhe a bênção, beijar-lhe as mãos ou
deitar-lhe no colo.
Recebeu no ventre para a majestosa viagem da
reencarnação nada menos que doze espíritos, sendo que o último apenas por oito
meses de gestação, interrompida com a sua morte e não permitindo que ele
assistisse ao esplendor da vida.
Dr. Grossi, médico de família, já havia
advertido: – “Anita, você não pode ter mais filhos. Sua idade e saúde não
suportarão outra gravidez.” (Minha mãe já passara por três derrames cerebrais,
de onde voltara após luta memorável.) – “Ora, doutor” – respondia ela – “eu
estou aqui a serviço do Pai e não posso recusar, em hipótese nenhuma, os filhos
que Ele quiser me mandar.”
Claro que ela não morreu por causa da gravidez.
Terminara sua tarefa. (E que tarefa!) Tinha que voltar.
Uma das boas lembranças que ficaram na minha
memória é o que se deu na sala de costura da velha casa da Rua Manoel Hipólito,
em Astolfo Dutra. Eu
estava lendo em voz alta, porque eu gostava (gostava, não, gosto) do ritmo e
das inversões do fantástico poema de Luís Vaz de Camões, Os Lusíadas, quando
minha mãe, que estava à máquina na sua função de costureira, parou e ficou a
ouvir. Minha mãe não era mulher de letras, mas muito bem articulada e
inteligente era capaz de ouvir e de entender as coisas. Até as estrelas, como
diria Bilac.
E ficávamos horas repetindo os versos que ainda
estão na memória. “As armas e os barões assinalados, se a tanto me ajudar o
engenho e a arte, cantando, espalharei por toda parte...” Um parêntese. Nesses
versos há interessante curiosidade da língua portuguesa. É o verbo no singular
para um sujeito aparentemente composto (Se a tanto me ajudar (e não ajudarem) o
engenho e a arte). Quando o sujeito composto é constituído de palavras que
indicam gradação ou sinonímia, ou parcela uma da outra, o predicado fica no
singular. Mas... continuando. O canto nono é um primor de poema de suave
sensualidade e erotismo. Tal como o Cântico dos Cânticos, um dos livros da Bíblia,
sua leitura era proibida pelos pais às filhas casadoiras.
De vez em quando ela pedia: – Arthur, leia um
pouco os versos de Camões. E a gente ficava bom tempo encantando-se com o
talento do genial português.
Ah, que saudade da minha mãe, sobretudo agora,
quando os anos já pesam tanto e as forças que ainda restam são tão poucas!
Meu pai
Meu pai era extremamente severo conosco. Não
elogiava; não aplaudia; achava que a gente estava sempre dando menos do que
podia dar. Pelo menos, perto da gente. Longe, não. Longe ele sempre falava bem
dos filhos; elogiava alguma virtude que a gente pudesse ter; algum desempenho
nas manifestações das artes que a gente sempre cultivava para apresentar nas
reuniões de nossa juventude.
Era como um rei ou uma rainha. Ai da gente se
tentasse dirigir-lhe a palavra. Só quando ele puxasse conversa ou perguntasse
alguma coisa.
Não me lembro que foi que eu e meu irmão mais
velho, Amaury, fizemos para tomar dele uma surra com um pau de barbante nas
costas. Antigamente (eu não sei se ainda há essa forma de apresentação desse
tipo de barbante a que eu quero me referir), mas antigamente esse barbante mais
grosso, utilizado no comércio de fumo em corda, era acondicionado em forma de
... como direi?... de trançado, do comprimento de mais ou menos uns 60 centímetros e
formava uma espécie de corda grossa, pesada, que batendo no lombo da gente
deixava marcas profundas, até cortes mesmo. Ele era assim.
Meus dois irmãos mais velhos, a Marília e o
Amaury, brilhavam na escola. Estavam no 1º e 2º anos do antigo curso primário
(hoje esse curso é chamado de ensino fundamental). Só tiravam, nas provas de
desempenho, dez com distinção e louvor.
Era mais que dez. Mas como na avaliação eles só utilizavam valores até
dez, para dizer que aquela prova valia mais que dez, eles inventaram essa forma
de dizer isso, acrescentando ao número dez essa expressão “distinção e louvor!”
com uma exclamação enorme para chamar mais atenção ainda. Meu pai espumava de
tanta alegria. Todos, na pequena cidade de Astolfo Dutra... (antigamente minha
cidade, como distrito de Cataguases, chamava-se Porto de Santo Antônio. Vejam
que coisa mais bonita: Porto de Santo Antônio. Porto, lugar de emoções. De quem
parte, emoções de tristeza, de saudade, de dor. De quem chega, emoções de
alegria, de reencontro, de renovação... E ainda mais: de Santo Antônio, o santo
das casadoiras.) Quando virou cidade, resolveram mudar e colocaram um nome que
nada tem a ver com a cidade: Astolfo
Dutra. Astolfo Dutra foi um homem muito importante. Maior até que a nossa
cidade e seus habitantes. Mas nada tinha a ver com o nosso Porto de Santo
Antônio.
Pois bem, aí cheguei eu. Foi um fracasso. Tomei pau no terceiro ano.
Uma tragédia. Fiquei marcado como a exceção inevitável. Não há um provérbio que
diz que “toda regra tem exceção”? Pois bem! Eu fui a exceção dos filhos do
Astolfo. Ganhei logo novo status e nova alcunha: o burro da família. Nisso que
aconteceu, meu pai não quis investir comigo nos estudos. Amaury foi ser interno
no Colégio de Cataguases, onde continuou brilhando como sempre; eu fui ficando
por cá fazendo os mandados da casa. Minha obrigação mais importante era ir ao
correio buscar a correspondência de meu pai que chegasse no trem das sete. Eu
podia estar no centro assistindo a uma reunião importante. O trem fazia barulho
na linha por detrás da nossa rua, meu
pai olhava para mim, indiscretamente, todo mundo via, e eu tinha que levantar
rápido e correr para o correio aguardar
que Dona Guiomar distribuísse a correspondência chegada para os escaninhos de
cada portuense que comumente recebia maior volume de correspondência para, depois, abrir a porta e
começar a entregar às pessoas presentes aquilo que houvesse chegado. De posse
daquele maço de cartas, cartões, revistas, jornais, voltava eu orgulhoso para
entregar tudo aquilo a meu pai.
Tempos depois, acho que, com a consciência
pesando, meu pai chegou em casa, em cima quase do exame exigido para a
matrícula no primeiro ano do ginásio (hoje é uma parte do tal curso
fundamental) e me disse de supetão: – Olha, vou dar a você uma chance. Vai
fazer a prova do exame de admissão e se passar eu te mando pro ginásio. Se não passar a manivela está te esperando
para o empacotamento do fumo. (Meu pai era fumeiro: vendia fumo para os estados
de São Paulo, Mato Grosso, Paraná etc. Naquela altura já tinha um punhado de
viajantes trabalhando pra ele.)
Parei com tudo. Minha mãe me liberou de todas
as obrigações e eu me debrucei sobre um livro com toda a matéria exigida na prova
e com muita sorte consegui ser aprovado. Que sufoco! Mas valeu a pena. Pude
então começar, já velho para a primeira série, minha trajetória estudantil. Eu
estava entrando no ginásio, com quatorze anos, quando todos os meninos da minha
idade estavam já saindo com o diploma na mão.
Meu pai era um homem extraordinário. Um dos
maiores oradores da Zona da Mata mineira.
Autodidata, foi pioneiro, juntamente com Amadeu Santos e Mário
Vitoriano, na divulgação da doutrina espírita em nossa terra.
Hoje, Astolfo Dutra é a mais espírita cidade de
nosso País. Fruto, sem dúvida, da trajetória desses três pioneiros de que
ninguém se esquece na cidade.
Nota:
O livro “A história que eu sei contar”, escrito
por Arthur Bernardes de Oliveira em 1964, foi publicado aqui ao longo de dez
semanas. A primeira parte foi publicada no dia 28 de julho; a última, no dia 28
de setembro de 2013.
Os textos que compõem o Apêndice – acima
transcritos – foram escritos no início de agosto deste ano, ou seja, 49 anos
depois de redigido o livro, e focalizam Anita Borela de Oliveira e Astolfo
Olegário de Oliveira, pais de Arthur e também meus pais.
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