sábado, 17 de agosto de 2013

A história que eu sei contar

ARTHUR BERNARDES DE OLIVEIRA
tucabernardes@gmail.com
De Guarani, MG


VII – Na dança do fogo

A nossa Semana Espírita de 1955 começaria no dia 14 de julho, isto é, exatamente sete dias depois da cerveja quente de Guarani.
Já ouvira, pela Lila, que de Guarani viriam umas mocinhas ajudar na programação noturna. E que passariam conosco toda a semana. E que chegariam no domingo. E que entre elas estava  Elizabeth.
Pensei cá comigo: aqui acertaremos as contas.
Eu tinha contra mim sete dias de namoro. Mas tinha a meu favor sete dias de reuniões. O negócio era matar nos meus sete dias a influência dos outros sete.
E isso foi fácil.
No domingo inicial, dia 14, uma brincadeira no nosso clube. Lá estivemos e eu comecei o meu jogo. Na segunda já estávamos namorando.
É bem verdade que houve por parte de algumas venerandas irmãs uma intromissão um pouco perturbadora. Definiam-me como um embrulhão e, embora de mim gostassem, temiam pelo namoro.
De meu lado o poeta Sebastião Lasneau e sua esposa  D. Olívia.
E mais que todos a minha decidida vontade de construir uma vida.
Foram dias e noites de agradáveis recordações.
Lembra-me muito o Armando Falconi com a sua clarineta. No fundo do palco, ele fez a proposta:
– Se eu agradar, vocês serão felizes. Se eu tocar mal, o namoro de vocês não dará certo.
E tocou como nunca. Depois ele mesmo me confessou que pusera na execução toda a perícia e a alma do artista.
Supersticioso, temia que por imperícia dele morresse tão cedo uma afeição tão fortemente nascida.
Lamento não ter a minha memória fixado com nitidez todas aquelas horas – as nossas primeiras horas –,  as horas definitivas que serviriam para selar, definitivamente, o rumo dos nossos destinos.
É que para provar uma vez mais a validade da sabedoria popular nós só nos lembramos das horas em que sofremos. As boas horas, as horas felizes, quase não deixam marcas na nossa lembrança.

VIII – Nem homem, nem fera

Terminara a reunião da terça-feira. Devia ser dez horas da noite. Todos pegaram o caminho de casa.
Descemos juntos para o repouso final. Elizabeth estava hospedada na casa da Lila e nós tínhamos seguramente um quilômetro de caminhada.
Mãos unidas timidamente, ameaçados pelos olhares bisbilhoteiros de sempre, lá íamos descendo a rua, esquecidos de tudo.
Lembro-me de que eu era apenas silêncio. Nada dizia, porque só uma coisa pensava. Agarrá-la freneticamente e apertá-la estupidamente, apertá-la até que seu corpo  entrasse para dentro do meu e se misturassem as células e o sangue, e as almas.
Os passos surdos marcavam na poeira da estrada a agitação dos meus sentimentos.
Era aquele corpo o que, na agitação de minhas noites indormidas, eu idealizara para mim. Aqueles seios, aqueles olhos, aquela boca, aqueles cabelos, aquelas pernas que eu sonhara possuir um dia.
Até hoje não sei o que segurou meu impulso. Às vezes, assaltava-me um súbito desejo de agarrá-la e com ela fugir, correndo de todos, para, no silêncio de nossa solidão, afogarmo-nos um nos carinhos do outro e, beijando, morrer.
– Chegamos!
– Interessante, disse eu, nem tinha notado.
E realmente não tinha notado que já atravessáramos o fundão e tínhamos os pés na entrada da porta.
Eu era um possesso.
Ela, na ingenuidade de seus dezessete anos, nem parou para nos despedirmos. Deu boa-noite e sumiu pela casa adentro.
E eu, fervendo de desejos, me deixei arrastar até minha casa.
Foi a noite mais intranquila que já passei.
O sono não vinha. Porque em mim só havia uma presença, que a tudo afugentava. A daquele corpo, que eu quis beijar, apertar, triturar, amassar, e que não pude.
Rolei na cama até a madrugada. Uma legião de serpentes me enroscavam o corpo. E no ferver de meus olhos acesos, vi surgir desligando-se do teto e se pondo bem ao alcance de minhas mãos, um vulto de mulher. Firmei os olhos. Estava nua. Linda! Era ela. Avancei para agarrá-la. A visão sumiu. Abri bem os olhos.
Na sala o relógio bateu duas horas.
Sobressaltado, voltei a deitar-me e dormi.  (Continua.)

Nota:

O texto acima faz parte do livro intitulado “A história que eu sei contar”, escrito por Arthur Bernardes de Oliveira e concluído no dia 28 de julho de 1964. O livro compõe-se de 20 capítulos e será aqui publicado ao longo de dez semanas, sempre aos sábados. A primeira parte foi publicada neste blog no dia 28 de julho de 2013.



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