terça-feira, 11 de abril de 2017

Contos e crônicas


O menino e o horizonte

CÍNTHIA CORTEGOSO
cinthiacortegoso@gmail.com
De Londrina-PR

Pode ser que o domingo seja dia de passeio somente no planeta Terra, pode ser que seja dia de passeio nos outros planetas também.
Como domingo, ainda na Terra, é dia de muitas brincadeiras, comida mais elaborada, sobremesa mais gostosa, é também dia de montar casinha para as meninas e jogar futebol na pracinha para os meninos.
E foi exatamente o que aconteceu.
Por volta das três da tarde, Gabriel foi em direção à pracinha onde se encontraria com os outros meninos, os amigos de futebol. De longe, já viu a bola voar pelo céu; o aquecimento começara. A trupe era de oito a dez meninos com idade entre dez e doze anos.
Eram meninos simples. Suas famílias não tinham muitos recursos financeiros, mas tinham muita disposição para o trabalho e para o ensino dos bons costumes para os seus filhos. Todos estudavam na pequena escola do bairro que, por não ser muito grande, podia ser bem cuidada.
Mas era domingo, era dia de brincar e início das férias. Somente na volta às aulas eles se lembrariam da escola bem cuidada do bairro.
E a trupe estava muito animada, cheia de alegria e muita graça, mas depois do aquecimento, a condição era outra, ou seja, muita concentração para o jogo de futebol. Naquela tarde, havia apenas nove meninos. Faltava um para formar dois times de cinco e sobrava um para dois times de quatro. Nenhum queria ficar de fora. Grande dilema.
O tempo passava, até que um menino veio se aproximando da pracinha e chegou aonde os outros estavam.
Imediatamente uma pergunta surgiu:
‒ Quer jogar?
Um pouco desprevenido, mas o menino respondeu:
‒ Sim, eu quero.
‒ Pronto. Tudo resolvido – Gabriel, o capitão do time azul, falou.
Também havia o time laranja, cujo capitão era Fernandinho.
Pronto. Dez meninos. Cinco para cada lado.
‒ Qual é o seu nome? ‒ Gabriel perguntou ao desconhecido garoto.
Os meninos estavam por perto, pois também queriam conhecê-lo e saber o seu nome. Curiosidade: característica imprescindível do ser humano.
O menino demorou um pouco para responder, parecia pensar antes ou, então, não ter compreendido. Mas, enfim, falou:
‒ É... Amadeo.
Os meninos nada comentaram, mas a indagação dos olhares era a de que ainda nunca tinham ouvido esse nome. O que importava era o número igual de jogadores para os lados e se ele, Amadeo, fosse bom de bola, poderia até tornar-se um do time e, o melhor, tornar-se amigo da trupe.
O novo participante ficou no time de Gabriel, time azul. Não havia árbitro, quem advertia as jogadas mais perigosas ou inadequadas, eram as gargantas do time adversário. Uma gritaria só, então, sabia-se que algo havia sido irregular.
O jogo começou.
Como goleiros, eram os meninos não tão espertos para a corrida e nem muito magrinhos, mas com concentração e agilidade para esticar os braços.
Todo início de jogo é uma correria só; todos estão entusiasmados e descansados.
Amadeo ainda não havia se destacado em nenhuma jogada, só fizera mesmo o trivial. Os garotos do time azul não estavam tão contentes com o novo companheiro; eles esperavam jogadas mais incríveis, gols a mais e uma vitória inesquecível com a ajuda de Amadeo. É, não estavam muito contentes, não.
Até que, de repente, ele, o novo companheiro, fez uma jogada extraordinária, pareceu flutuar sobre a bola e, em vez de ir para o lado mais esperado, fez um drible muito diferente de tudo o que os outros já tinham visto pela televisão.                                    
A comemoração azul foi intensa, quantos abraços, risadas e o grito uníssono. “A... ma... deo...” repetidas vezes.
Quanto ao time vermelho, ficou de boca aberta com o incrível drible.
E Amadeo recebera muitos abraços, toques na cabeça e tamanha vibração. E os meninos compartilhavam o momento como se há muito se conhecessem, com naturalidade e carinho.
Até quando se via o brilho do sol, também poderia ver-se a brincadeira na pracinha, mas do finalzinho da tarde para o início da noite é questão de alguns segundos e de repente a noite está formada. Mas antes de isso acontecer, para evitar as broncas de mãe, os meninos foram logo se despedindo e cada um buscou o caminho de casa. Na verdade, um deles, não. Amadeo não tinha casa para voltar. E os outros, tão preocupados em não levarem bronca nem se deram conta do novo colega.
Amadeo foi distanciando-se pela rua escura; quem olhasse de longe poderia perceber um contorno iluminado suave em seu corpo. Talvez não mais voltaria àquela cidade, muitas outras o aguardavam e seguiu para um certo tipo de luz que o esperava.
Chegou e em instantes tudo desapareceu pelo horizonte. Mas olhos sempre existirão a observar.
E os olhos de Gabriel assistiram a todo esse momento de Amadeo, da simples janela de seu quarto. Esses olhos observaram o sumiço do brilho no infinito céu. No entanto, quem fora observado também podia sentir de onde vinha a observação e Amadeo, com uma roupa diferente, não mais vestido de aspirante a jogador infantojuvenil de futebol, visualizou mentalmente a imagem do capitão do time azul, olhando pela janela. Mas o menino precisava continuar seu destino.
Uma viagem sem nome, roteiro, nem objetivo ainda e inexplicável para o menino Gabriel que ficou mais uns instantes olhando pela janela até perder o foco da pequena luz entre os tímidos brilhos nascentes das estrelas no fundo azul-escuro do céu.
Com todas as perguntas e a curiosidade latejante, mesmo assim, não havia muito o que fazer. Como Gabriel poderia explicar? Pensaria em um caminho ou esqueceria tudo aquilo, se bem que em alguns segundos nem ele próprio saberia afirmar a verdade plena da ocorrência. Encostou a janela.
O novo amanhecer não fora como os antigos, ou melhor, os comuns amanheceres antes do anterior anoitecer. O sentimento do capitão do time azul era drasticamente incomum; o menino sentia como se algo fora roubado de si, estava ali mas incompleto... não sabia o que havia ocorrido, nunca sentira essa sensação.
Tentou começar um novo dia como os comuns que já havia vivido; no entanto, como viver se algo lhe falta para estar vivo e, ainda, não compreender sequer um pequeno início do que poderia estar acontecendo.
As férias mal haviam começado e toda euforia e entusiasmo pareciam ter ido embora com a luz do dia anterior... Como entender?
A mãe logo percebeu a mudança.
‒ Tudo bem, Gabriel? Parece que está em outro mundo hoje! O que aconteceu? ‒ a mãe, preparando o ralo café da manhã para o filho, perguntou.
‒ Hã...? Também não sei, mãe. Estou desanimado... sem vontade de brincar...
O menino, sentado, falou escorando a cabeça na mão direita, cujo braço, escorado, estava na mesa rústica de madeira. O pai já tinha ido trabalhar, estavam apenas mãe e filho... e também o cachorro vira-latas chamado Sabugo que observava o andamento da conversa da varandinha da cozinha.
A mãe observou o filho, todos os detalhes, pois mãe é expert em filho. Fez algumas perguntas e pôde constatar que estava triste, talvez nunca vira o filho com tamanha tristeza. Então, continuou com algumas perguntas até o filho, que muito confiava em sua mãe, contar-lhe todo o ocorrido do dia anterior.
O início da brincadeira com o futebol, o novo menino a participar, a hora de voltar, até aqui realização normal. Quando o filho contou sobre o menino Amadeo e a luz, ela compreendeu, inexplicavelmente, o profundo sentimento... toda a sensação que o filho estava sentindo. E pensava como algo poderia ser tão intenso e tão sem explicação. E como poderia ajudar o pequeno e a quem poderia recorrer? Enquanto isso a tristeza assolava o menino.
A sensação que, com muita dificuldade, recebeu uma nominação foi a palavra saudade proferida pela voz fraca de Gabriel.
‒ Saudade... saudade – ele falou duas vezes
‒ O que, meu filho? ‒ a mãe logo perguntou e sentou-se à mesa.
‒ Saudade...
‒ De quem? Do quê? ‒ ela novamente logo perguntou.
‒ Penso em Amadeo e em seguida vejo um campo lindo molhado de chuva e sinto um vento muito frio... mamãe, será que estou ficando louco?
‒ Filho meu, não pense assim! Eu não tenho muito estudo, mas ouvi falar que existem outros lugares com vida... outras maneiras de viver ‒ a mãe tentou explicar.
‒ Não entendi, mãe ‒ o filho respondeu.
‒ Também não sei explicar muito, mas li alguns livros sobre a continuação da vida em outras formas.
‒ Entendi menos ainda, mãe.
‒ Certo dia, abri um livro explicando que em muitos outros lugares também vive alguém. Como em outros planetas, planos, mas não sei bem explicar. Não somos sós. E que alguns podem nos visitar por possuírem pouco mais evolução... não sei bem, filho ‒ a mãe se esforçou, porém, não foi capaz de esclarecer muito.
Os olhos do menino olharam os da mãe; um discreto sorriso sem graça apareceu no rosto do filho. Há momentos e fatos cujas explicações não são capazes de esclarecerem, mas a atenção e o carinho podem muito ajudar. E foi o que aconteceu. Com esforço, Gabriel comeu um pouquinho para ver a alegria, pelo menos, nos olhos da mãe.
Talvez tivesse crescendo e conhecendo as dores da vida, mas o motivo era irrisório para isso; certamente, não seria.
Gabriel recusou também o jogo de futebol na tarde do dia. Embaixo do pé de laranjeira, no quintal, aguardou mais um entardecer, pois foi o momento do ocorrido no dia anterior, estava esperançoso que neste pôr do sol teria a resposta para tudo aquilo. Correu para dentro de casa e foi para seu quarto no mesmo horário, buscou a mesma posição e através da janela olhou para o infinito horizonte implorando por uma explicação.
Os olhos não piscavam e a ansiedade por uma resposta era mais alta que o silêncio cinza do quarto. Os minutos se passaram e o tempo avançou, nada aconteceu. O desânimo abraçou o menino e a tristeza invadiu-o. Como poderia viver daquela maneira para sempre? Seu sentimento estava profundamente doloroso.
A mãe, no decorrer dos dias, não sabia o que fazer. Então, o filho não quis mais sair do quarto, também não fechava a janela; o horizonte era a única direção de seu olhar. Uma saudade o imobilizou, não se levantava mais da cama. A tristeza na mãe não havia como aumentar. O pai simplesmente trabalhava.
Quando se completaram dezessete dias, uma voz chamou, pela porta da cozinha, o nome Gabriel. Era o doutor Apolônio, senhor de próximos setenta anos. O pai, com sacrifício de dinheiro, pagara uma consulta para o filho. O doutor entrou no quarto, acompanhado pela mãe do menino, observou e consultou de maneira criteriosa, e não encontrou nenhum vestígio de enfermidade física.
A mãe, em silêncio, ouviu as explicações do doutor e em seguida acompanhou-o à porta.
No dia seguinte, o padre foi chamado. Entrou no quarto, onde o menino, tristonho, estava deitado. O homem humilde e amoroso fez suas orações e consolou a mãe, entretanto, não havia mais o que fazer; ela também o acompanhou até a porta.
Passados dois dias, os amigos de futebol foram visitá-lo, mas os olhos tristes do menino não se alegraram; a mãe, mesmo assim, serviu bolachas de maisena com leite gelado aos meninos.
No outro dia, um pastor da igreja da rua detrás também veio para ajudá-lo. Teve boa vontade, mas deixou o menino como o encontrou.
A mãe não sabia a quem mais recorrer e o filho, desfalecido, encontrava-se na cama simples. Completaram-se trinta dias; exato, um mês.
E como as conversas correm pelo vento, o ocorrido foi parar do outro lado do grande rio, num povoado antigo de cultura milenar. Naturalmente, os acontecimentos nunca chegam aos ouvidos, de fato, como aconteceram, ou se apresentam muito a mais, muito a menos ou totalmente distorcidos. E naquele povoado havia um homem com sabedoria; na verdade, ele era mais conhecido como bruxo do povoado. Um bruxo é assim denominado quando conhece algo a mais, dizem ainda, sobrenatural. Mas o próprio bruxo ri disso tudo, pois se existem inúmeras e imensuráveis coisas na vida, tudo, então, tende a ser simplesmente natural.
No entanto, o homem se comoveu, atravessou o rio e buscou a casa do menino Gabriel. A mãe, surpresa ‒ pois o bruxo do povoado raramente saía de sua casa, atendia, em sua choupana, quem o procurasse ‒, recebeu-o com grande respeito como todos os que visitaram o filho, acompanhou-o ao quarto onde estava o menino.
O homem, simples, aproximou-se da cama, observou com compaixão o franzino corpo esticado cuja respiração era tão discreta. O senhor sentou-se na cadeira, que permanecia desde o início do acontecimento, de frente para o menino.
Pegou a mão magrinha e morna, não perguntou nada, pois o que ouvira já bastava. A mãe também nada falou. O homem fechou os olhos e segurando a mão magrinha e morna, começou a sentir a sensação do frágil ser. Sentiu os muitos sentimentos, mas o da tristeza era prevalecente, também pôde ver algo sumindo pelo horizonte e sentir que outro coração também sofria.
Continuou concentrado e pôde, aos poucos, compreender o motivo que fortalecia o sofrimento. Quando algumas janelas ficam semiabertas na alma, certos encontros, inconscientes, mas de harmonia, amor e sintonia extremos tendem a acontecer e caso não haja oportunidade para os corações caminharem juntos e apenas sentirem a eterna emoção sem o apoio da compreensão racional, as almas podem muito adoecer mesmo em estágios e planos diferentes. Não importa se o corpo é de criança ou não, o reconhecimento é fato.
E o bruxo, com instrução recebida das gerações anteriores, pôde, mais uma vez, compreender o ocorrido e ajudar outra alma fragilizada. O entendedor de almas, com ternura que lhe era peculiar, falou as seguintes palavras para o menino na cama:
‒ Gabriel, acorde e volte para o seu caminho. Há tanto a ser vivido, construído e tantas pessoas para amar e tantas para o amarem ‒ o homem falava e aguardava alguma reação do menino. ‒ Você e Amadeo são espíritos milenares... muito já viveram juntos e muito viverão, mas, agora, cada um precisa, em seu plano, realizar o propósito necessário... volte, querido menino, quão maravilhoso é o seu ideal ‒ o homem falou.
Alguns segundos passaram-se, os olhos começaram a querer-se abrir e as mãos mornas e magrinhas fizeram suaves movimentos. Vagarosamente, Gabriel iniciou o despertamento como alguém que se desperta de um profundo sono. Abriu os olhos; o bruxo estava sentado com olhar raso de lágrima emocionada e no rosto da mãe, a lágrima emocionada já escorria.
O menino, fraco, deu um leve sorriso e perguntou:
‒ Senhor bruxo? O que faz aqui?
‒ Olá, menino Gabriel! Vim apenas visitá-lo.
O menino sorriu e agradeceu. Olhou para a mãe e outro sorriso nasceu.

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