O
menino e o horizonte
CÍNTHIA CORTEGOSO
cinthiacortegoso@gmail.com
De Londrina-PR
Pode ser que o
domingo seja dia de passeio somente no planeta Terra, pode ser que seja dia de
passeio nos outros planetas também.
Como domingo, ainda
na Terra, é dia de muitas brincadeiras, comida mais elaborada, sobremesa mais
gostosa, é também dia de montar casinha para as meninas e jogar futebol na
pracinha para os meninos.
E foi exatamente o
que aconteceu.
Por volta das três
da tarde, Gabriel foi em direção à pracinha onde se encontraria com os outros
meninos, os amigos de futebol. De longe, já viu a bola voar pelo céu; o
aquecimento começara. A trupe era de oito a dez meninos com idade entre dez e
doze anos.
Eram meninos
simples. Suas famílias não tinham muitos recursos financeiros, mas tinham muita
disposição para o trabalho e para o ensino dos bons costumes para os seus
filhos. Todos estudavam na pequena escola do bairro que, por não ser muito
grande, podia ser bem cuidada.
Mas era domingo, era
dia de brincar e início das férias. Somente na volta às aulas eles se
lembrariam da escola bem cuidada do bairro.
E a trupe estava
muito animada, cheia de alegria e muita graça, mas depois do aquecimento, a
condição era outra, ou seja, muita concentração para o jogo de futebol. Naquela
tarde, havia apenas nove meninos. Faltava um para formar dois times de cinco e
sobrava um para dois times de quatro. Nenhum queria ficar de fora. Grande
dilema.
O tempo passava, até
que um menino veio se aproximando da pracinha e chegou aonde os outros estavam.
Imediatamente uma
pergunta surgiu:
‒ Quer jogar?
Um pouco desprevenido,
mas o menino respondeu:
‒ Sim, eu quero.
‒ Pronto. Tudo
resolvido – Gabriel, o capitão do time azul, falou.
Também havia o time
laranja, cujo capitão era Fernandinho.
Pronto. Dez meninos.
Cinco para cada lado.
‒ Qual é o seu nome?
‒ Gabriel perguntou ao desconhecido garoto.
Os meninos estavam
por perto, pois também queriam conhecê-lo e saber o seu nome. Curiosidade:
característica imprescindível do ser humano.
O menino demorou um
pouco para responder, parecia pensar antes ou, então, não ter compreendido.
Mas, enfim, falou:
‒ É... Amadeo.
Os meninos nada
comentaram, mas a indagação dos olhares era a de que ainda nunca tinham ouvido
esse nome. O que importava era o número igual de jogadores para os lados e se
ele, Amadeo, fosse bom de bola, poderia até tornar-se um do time e, o melhor,
tornar-se amigo da trupe.
O novo participante
ficou no time de Gabriel, time azul. Não havia árbitro, quem advertia as
jogadas mais perigosas ou inadequadas, eram as gargantas do time adversário.
Uma gritaria só, então, sabia-se que algo havia sido irregular.
O jogo começou.
Como goleiros, eram
os meninos não tão espertos para a corrida e nem muito magrinhos, mas com
concentração e agilidade para esticar os braços.
Todo início de jogo
é uma correria só; todos estão entusiasmados e descansados.
Amadeo ainda não
havia se destacado em nenhuma jogada, só fizera mesmo o trivial. Os garotos do
time azul não estavam tão contentes com o novo companheiro; eles esperavam
jogadas mais incríveis, gols a mais e uma vitória inesquecível com a ajuda de
Amadeo. É, não estavam muito contentes, não.
Até que, de repente,
ele, o novo companheiro, fez uma jogada extraordinária, pareceu flutuar sobre a
bola e, em vez de ir para o lado mais esperado, fez um drible muito diferente
de tudo o que os outros já tinham visto pela televisão.
A comemoração azul
foi intensa, quantos abraços, risadas e o grito uníssono. “A... ma... deo...”
repetidas vezes.
Quanto ao time
vermelho, ficou de boca aberta com o incrível drible.
E Amadeo recebera
muitos abraços, toques na cabeça e tamanha vibração. E os meninos
compartilhavam o momento como se há muito se conhecessem, com naturalidade e
carinho.
Até quando se via o
brilho do sol, também poderia ver-se a brincadeira na pracinha, mas do
finalzinho da tarde para o início da noite é questão de alguns segundos e de
repente a noite está formada. Mas antes de isso acontecer, para evitar as
broncas de mãe, os meninos foram logo se despedindo e cada um buscou o caminho
de casa. Na verdade, um deles, não. Amadeo não tinha casa para voltar. E os
outros, tão preocupados em não levarem bronca nem se deram conta do novo
colega.
Amadeo foi
distanciando-se pela rua escura; quem olhasse de longe poderia perceber um
contorno iluminado suave em seu corpo. Talvez não mais voltaria àquela cidade,
muitas outras o aguardavam e seguiu para um certo tipo de luz que o esperava.
Chegou e em
instantes tudo desapareceu pelo horizonte. Mas olhos sempre existirão a
observar.
E os olhos de
Gabriel assistiram a todo esse momento de Amadeo, da simples janela de seu
quarto. Esses olhos observaram o sumiço do brilho no infinito céu. No entanto,
quem fora observado também podia sentir de onde vinha a observação e Amadeo,
com uma roupa diferente, não mais vestido de aspirante a jogador infantojuvenil
de futebol, visualizou mentalmente a imagem do capitão do time azul, olhando
pela janela. Mas o menino precisava continuar seu destino.
Uma viagem sem nome,
roteiro, nem objetivo ainda e inexplicável para o menino Gabriel que ficou mais
uns instantes olhando pela janela até perder o foco da pequena luz entre os
tímidos brilhos nascentes das estrelas no fundo azul-escuro do céu.
Com todas as
perguntas e a curiosidade latejante, mesmo assim, não havia muito o que fazer.
Como Gabriel poderia explicar? Pensaria em um caminho ou esqueceria tudo
aquilo, se bem que em alguns segundos nem ele próprio saberia afirmar a verdade
plena da ocorrência. Encostou a janela.
O novo amanhecer não
fora como os antigos, ou melhor, os comuns amanheceres antes do anterior
anoitecer. O sentimento do capitão do time azul era drasticamente incomum; o
menino sentia como se algo fora roubado de si, estava ali mas incompleto... não
sabia o que havia ocorrido, nunca sentira essa sensação.
Tentou começar um
novo dia como os comuns que já havia vivido; no entanto, como viver se algo lhe
falta para estar vivo e, ainda, não compreender sequer um pequeno início do que
poderia estar acontecendo.
As férias mal haviam
começado e toda euforia e entusiasmo pareciam ter ido embora com a luz do dia
anterior... Como entender?
A mãe logo percebeu
a mudança.
‒ Tudo bem, Gabriel?
Parece que está em outro mundo hoje! O que aconteceu? ‒ a mãe, preparando o
ralo café da manhã para o filho, perguntou.
‒ Hã...? Também não
sei, mãe. Estou desanimado... sem vontade de brincar...
O menino, sentado,
falou escorando a cabeça na mão direita, cujo braço, escorado, estava na mesa
rústica de madeira. O pai já tinha ido trabalhar, estavam apenas mãe e filho...
e também o cachorro vira-latas chamado Sabugo que observava o andamento da
conversa da varandinha da cozinha.
A mãe observou o
filho, todos os detalhes, pois mãe é expert em filho. Fez algumas perguntas e
pôde constatar que estava triste, talvez nunca vira o filho com tamanha tristeza.
Então, continuou com algumas perguntas até o filho, que muito confiava em sua
mãe, contar-lhe todo o ocorrido do dia anterior.
O início da
brincadeira com o futebol, o novo menino a participar, a hora de voltar, até
aqui realização normal. Quando o filho contou sobre o menino Amadeo e a luz,
ela compreendeu, inexplicavelmente, o profundo sentimento... toda a sensação
que o filho estava sentindo. E pensava como algo poderia ser tão intenso e tão
sem explicação. E como poderia ajudar o pequeno e a quem poderia recorrer?
Enquanto isso a tristeza assolava o menino.
A sensação que, com
muita dificuldade, recebeu uma nominação foi a palavra saudade proferida pela
voz fraca de Gabriel.
‒ Saudade... saudade
– ele falou duas vezes
‒ O que, meu filho?
‒ a mãe logo perguntou e sentou-se à mesa.
‒ Saudade...
‒ De quem? Do quê? ‒
ela novamente logo perguntou.
‒ Penso em Amadeo e
em seguida vejo um campo lindo molhado de chuva e sinto um vento muito frio...
mamãe, será que estou ficando louco?
‒ Filho meu, não
pense assim! Eu não tenho muito estudo, mas ouvi falar que existem outros
lugares com vida... outras maneiras de viver ‒ a mãe tentou explicar.
‒ Não entendi, mãe ‒
o filho respondeu.
‒ Também não sei
explicar muito, mas li alguns livros sobre a continuação da vida em outras
formas.
‒ Entendi menos
ainda, mãe.
‒ Certo dia, abri um
livro explicando que em muitos outros lugares também vive alguém. Como em
outros planetas, planos, mas não sei bem explicar. Não somos sós. E que alguns
podem nos visitar por possuírem pouco mais evolução... não sei bem, filho ‒ a
mãe se esforçou, porém, não foi capaz de esclarecer muito.
Os olhos do menino
olharam os da mãe; um discreto sorriso sem graça apareceu no rosto do filho. Há
momentos e fatos cujas explicações não são capazes de esclarecerem, mas a
atenção e o carinho podem muito ajudar. E foi o que aconteceu. Com esforço,
Gabriel comeu um pouquinho para ver a alegria, pelo menos, nos olhos da mãe.
Talvez tivesse
crescendo e conhecendo as dores da vida, mas o motivo era irrisório para isso;
certamente, não seria.
Gabriel recusou
também o jogo de futebol na tarde do dia. Embaixo do pé de laranjeira, no
quintal, aguardou mais um entardecer, pois foi o momento do ocorrido no dia
anterior, estava esperançoso que neste pôr do sol teria a resposta para tudo
aquilo. Correu para dentro de casa e foi para seu quarto no mesmo horário,
buscou a mesma posição e através da janela olhou para o infinito horizonte
implorando por uma explicação.
Os olhos não
piscavam e a ansiedade por uma resposta era mais alta que o silêncio cinza do
quarto. Os minutos se passaram e o tempo avançou, nada aconteceu. O desânimo
abraçou o menino e a tristeza invadiu-o. Como poderia viver daquela maneira
para sempre? Seu sentimento estava profundamente doloroso.
A mãe, no decorrer
dos dias, não sabia o que fazer. Então, o filho não quis mais sair do quarto,
também não fechava a janela; o horizonte era a única direção de seu olhar. Uma
saudade o imobilizou, não se levantava mais da cama. A tristeza na mãe não
havia como aumentar. O pai simplesmente trabalhava.
Quando se
completaram dezessete dias, uma voz chamou, pela porta da cozinha, o nome
Gabriel. Era o doutor Apolônio, senhor de próximos setenta anos. O pai, com
sacrifício de dinheiro, pagara uma consulta para o filho. O doutor entrou no
quarto, acompanhado pela mãe do menino, observou e consultou de maneira
criteriosa, e não encontrou nenhum vestígio de enfermidade física.
A mãe, em silêncio,
ouviu as explicações do doutor e em seguida acompanhou-o à porta.
No dia seguinte, o
padre foi chamado. Entrou no quarto, onde o menino, tristonho, estava deitado.
O homem humilde e amoroso fez suas orações e consolou a mãe, entretanto, não
havia mais o que fazer; ela também o acompanhou até a porta.
Passados dois dias,
os amigos de futebol foram visitá-lo, mas os olhos tristes do menino não se
alegraram; a mãe, mesmo assim, serviu bolachas de maisena com leite gelado aos
meninos.
No outro dia, um
pastor da igreja da rua detrás também veio para ajudá-lo. Teve boa vontade, mas
deixou o menino como o encontrou.
A mãe não sabia a
quem mais recorrer e o filho, desfalecido, encontrava-se na cama simples.
Completaram-se trinta dias; exato, um mês.
E como as conversas
correm pelo vento, o ocorrido foi parar do outro lado do grande rio, num
povoado antigo de cultura milenar. Naturalmente, os acontecimentos nunca chegam
aos ouvidos, de fato, como aconteceram, ou se apresentam muito a mais, muito a
menos ou totalmente distorcidos. E naquele povoado havia um homem com
sabedoria; na verdade, ele era mais conhecido como bruxo do povoado. Um bruxo é
assim denominado quando conhece algo a mais, dizem ainda, sobrenatural. Mas o
próprio bruxo ri disso tudo, pois se existem inúmeras e imensuráveis coisas na
vida, tudo, então, tende a ser simplesmente natural.
No entanto, o homem
se comoveu, atravessou o rio e buscou a casa do menino Gabriel. A mãe, surpresa
‒ pois o bruxo do povoado raramente saía de sua casa, atendia, em sua choupana,
quem o procurasse ‒, recebeu-o com grande respeito como todos os que visitaram
o filho, acompanhou-o ao quarto onde estava o menino.
O homem, simples,
aproximou-se da cama, observou com compaixão o franzino corpo esticado cuja
respiração era tão discreta. O senhor sentou-se na cadeira, que permanecia
desde o início do acontecimento, de frente para o menino.
Pegou a mão magrinha
e morna, não perguntou nada, pois o que ouvira já bastava. A mãe também nada
falou. O homem fechou os olhos e segurando a mão magrinha e morna, começou a
sentir a sensação do frágil ser. Sentiu os muitos sentimentos, mas o da
tristeza era prevalecente, também pôde ver algo sumindo pelo horizonte e sentir
que outro coração também sofria.
Continuou
concentrado e pôde, aos poucos, compreender o motivo que fortalecia o
sofrimento. Quando algumas janelas ficam semiabertas na alma, certos encontros,
inconscientes, mas de harmonia, amor e sintonia extremos tendem a acontecer e
caso não haja oportunidade para os corações caminharem juntos e apenas sentirem
a eterna emoção sem o apoio da compreensão racional, as almas podem muito
adoecer mesmo em estágios e planos diferentes. Não importa se o corpo é de
criança ou não, o reconhecimento é fato.
E o bruxo, com
instrução recebida das gerações anteriores, pôde, mais uma vez, compreender o
ocorrido e ajudar outra alma fragilizada. O entendedor de almas, com ternura
que lhe era peculiar, falou as seguintes palavras para o menino na cama:
‒ Gabriel, acorde e
volte para o seu caminho. Há tanto a ser vivido, construído e tantas pessoas
para amar e tantas para o amarem ‒ o homem falava e aguardava alguma reação do
menino. ‒ Você e Amadeo são espíritos milenares... muito já viveram juntos e
muito viverão, mas, agora, cada um precisa, em seu plano, realizar o propósito
necessário... volte, querido menino, quão maravilhoso é o seu ideal ‒ o homem
falou.
Alguns segundos
passaram-se, os olhos começaram a querer-se abrir e as mãos mornas e magrinhas
fizeram suaves movimentos. Vagarosamente, Gabriel iniciou o despertamento como
alguém que se desperta de um profundo sono. Abriu os olhos; o bruxo estava
sentado com olhar raso de lágrima emocionada e no rosto da mãe, a lágrima
emocionada já escorria.
O menino, fraco, deu
um leve sorriso e perguntou:
‒ Senhor bruxo? O
que faz aqui?
‒ Olá, menino
Gabriel! Vim apenas visitá-lo.
O menino sorriu e
agradeceu. Olhou para a mãe e outro sorriso nasceu.
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