Irmão X (Espírito)
Não obstante amoroso, Judas era, muita vez,
estouvado e inquieto. Apaixonara-se pelos ideais do Messias, e, embora
esposasse os novos princípios, em muitas ocasiões surpreendia-se em choque
contra ele. Sentia-se dono da Boa Nova e, pelo desvairado apego a Jesus, quase
sempre lhe tomava a dianteira nas deliberações importantes. Foi assim que
organizou a primeira bolsa de fundos da comunhão apostólica, e, obediente aos
mesmos impulsos, julgou servir à grande causa que abraçara, aceitando a
perigosa cilada que redundou na prisão do Mestre.
Apesar dos estudos renovadores a que
sinceramente se entregara, preso aos conflitos íntimos que lhe caracterizavam o
modo de ser, ignorava o processo de conquistar simpatias. Trazia constantemente
nos lábios uma referência amarga, um conceito infeliz.
Quando Levi se reportava a alguns
funcionários de Herodes, simpáticos ao Evangelho, dizia, mordaz:
- São víboras disfarçadas. Sugam o erário
público, bajulam sacerdotes e deixam-se pisar pelo romano dominador. A meu
parecer, não passam de espiões.
O companheiro ouvia tais afirmativas, com
natural desencanto, e os novos colaboradores dele se distanciavam menos
entusiasmados.
Generosa amiga de Joana de Cusa ofereceu, certo
dia, os recursos precisos para a caminhada do grupo, de Cafarnaum a Jerusalém.
Porém, recebendo a importância, o apóstolo irrefletido alegou, ingratamente:
- Guardo a oferta; contudo, não me deixo
escarnecer. A doadora pretende comprar o Reino dos Céus, depois de haver gozado
todos os prazeres do reino da Terra. Saibam todos que este é um dinheiro
impuro, nascido da iniquidade.
Estas palavras, pronunciadas diante da
benfeitora, trouxeram-lhe indefinível amargura.
Em Cesareia, heroica mulher de um paralítico,
sentindo-se banhada pelos clarões do Evangelho, abriu as portas do reduto
doméstico aos desamparados da sorte. Órfãos e doentes buscaram-lhe o
acolhimento fraternal. O discípulo atrabiliário, no entanto, não se esquivou à
maledicência:
- E o passado dela? - clamou cruelmente - o
marido enfermou desgostoso pelos quadros tristes que foi constrangido a
presenciar. Francamente, não lhe aceito a conversão. Certo, desenvolve piedade
fictícia para aliciar grandes lucros.
A senhora, duramente atingida pelas
descaridosas insinuações, paralisou a benemerência iniciante, com enorme
prejuízo para os filhos do infortúnio.
Quando o próprio Messias abençoou Zaqueu e os
serviços dele, exclamou Judas, indignado, às ocultas:
- Este publicano pagará mais tarde. Escorcha
os semelhantes, rodeia-se de escravos, exerce avareza sórdida e ainda pretende
o Reino Divino!? Não irá longe. Enganará o Mestre, não a mim.
Alimentando tais disposições, sofria a
desconfiança de muitos. De quando em quando, via-se repelido delicadamente.
Jesus, que em silêncio lhe seguia as
atitudes, aconselhava prudência, amor e tolerância. Mal não terminava, porém,
as observações carinhosas, chegava Simão Pedro, por exemplo, explicando que
Jeroboão, fariseu simpatizante da Boa Nova, parecia inclinado a ajudar o
Evangelho nascente.
- Jeroboão? - advertia Judas, sarcástico -
aquilo é uma raposa de unhas afiadas. Mero fingimento! Conheço-o há vinte anos.
Não sabe senão explorar o próximo e amontoar dinheiro. Houve tempo em que
chegou a esbordoar o próprio pai, porque o infeliz lhe desviou meia pipa de
vinho!
A verdade, porém, é que as circunstâncias,
pouco a pouco, obrigaram-no a insular-se. Os próprios companheiros andavam
arredios. Ninguém lhe aprovava as acusações impulsivas e as lamentações sem
propósito. Apenas o Cristo não perdia a paciência. Gastava longas horas,
encorajando-o e esclarecendo-o afetuosamente.
Numa tarde quente e seca, viajavam ambos, nos
arredores de Nazaré, cansados de jornada comprida, quando o filho de Kerioth
indagou, compungido:
- Senhor, por que motivos sofro tão pesadas
humilhações? Noto que os próprios companheiros se afastam, cautelosos, de mim.
Não consigo fazer relações duradouras. Há como que forçada separação entre meu
espírito e os demais. Sou incompreendido e vergastado pelo destino.
E levantando os olhos tristes para o Divino
Amigo, repetia:
- Por quê?!?
Jesus ia responder, condoído, observando que
a voz do discípulo tinha lágrimas que não chegavam a cair, quando se acercaram,
subitamente, de poço humilde, onde costumavam aliviar a sede. Judas, que
esperava ansioso aquela bênção, inclinou-se, impulsivo e, mergulhando as mãos
ávidas no líquido cristalino, tocou inadvertidamente o fundo, trazendo largas
placas de lodo à tona.
- Oh! oh! que infelicidade! - gritou, em
desespero.
O Mestre bondoso sorriu calmamente e falou:
- Neste poço singelo, Judas, tens a lição que
desejas. Quando quiseres água pura, retira-a com cuidado e reconhecimento. Não
há necessidade de alvoroçar a lama do fundo ou das margens. Quando tiveres sede
de ternura e de amor, faze o mesmo com teus amigos. Recebe-lhes a cooperação
afetuosa sem cogitar do mal, a fim de que não percas o bem supremo.
Pesado silêncio caiu entre o benfeitor e o
tutelado.
O apóstolo invigilante modificou a expressão
do olhar, mas não respondeu.
Do livro Luz acima, obra psicografada
pelo médium Francisco Cândido Xavier.
