JORGE LEITE DE OLIVEIRA
jojorgeleite@gmail.com
De Brasília-DF
A vida não está fácil, amiga leitora. O sapo
barbudo e seus cúmplices foram presos e estão sob estrita vigilância do serviço
de informação do Exército. Dizem que Vladimir Herzog acaba de se suicidar após
o 31 de março de 1964...
51 anos depois...
Vamos fazer uma regressão de memória a um
ex-soldado e fazê-lo lembrar-se da primeira entrevista que deu, em sua vida,
sem ter a mínima noção do que estava acontecendo no país.
O ano é o de 1971...
— Soldado, qual é o seu nome, de onde você veio
e o que faz aqui?
— Meu nome de guerra é Etiel, venho do morro das
quatro bicas, na Penha, Rio de Janeiro, e não sei o que faço aqui...
— Como não sabe? Então não lhe ensinaram as
perguntas básicas que um soldado encarregado de uma missão tem que ter na ponta
da língua?
— Ah, sim... Pra aonde vou?
— Vai para o Batalhão da Polícia do Exército.
— Por que vou?
— Porque seu cinto está com a fivela suja e você
tirou o boné quando passou pela equipe da Polícia do Exército (PE) encarregada
de fazer a guarda nas ruas de seu bairro.
— Limpei meu cinto com Kaol, antes de sair de
casa, e foi você quem retirou meu boné ao me abordar.
— O quê? Soldado, sentido! Está me chamando de
mentiroso? Mais uma falta grave. E dobre a língua; como meu subordinado, deve
chamar-me sempre de senhor. Senhor cabo Massinissa. Mas continue...
— Quando vou, Sr. cabo Massinissa?
— Agora mesmo.
— Como vou?
— Vai sentado ali, no camburão da gloriosa PE,
junto com outros vinte soldados da Pátria.
Assim foi um dos primeiros dias em que Job Etiel saía
de casa fardado para dirigir-se ao quartel em que incorporara, em São Cristóvão , no
Rio de Janeiro. Transportado com seus
vizinhos para o Batalhão da Polícia do Exército (BPE) por esse pelotão militar,
desde que fora abordado pelo cabo que comandava o pelotão, observou, ali, que
seus 1,77m de altura eram nada ante aqueles guardiães da ordem e da disciplina
de 1,90m, no mínimo.
Dias antes, fora alertado pelo tenente Raminho,
também de quase dois metros e catarinense, subcomandante de sua unidade
militar, para não reagir às abordagens dos soldados da PE, pois estes eram
recrutados entre os brasileiros mais altos e fortes, além de serem treinados
nas lutas marciais, etc. etc.
No pátio do Batalhão, Etiel fora mandado ficar
na posição de sentido e em forma com outras dezenas de cidadãos que foram
obrigados a servir à Pátria. Ao ser lida uma relação com os nomes de cada um
deles, tinham de gritar, bem alto, seu nome de guerra.
Horas depois seriam levados ao seu quartel de
origem, onde deveriam aguardar, trabalhando, as informações sobre seu
“comportamento sujo e desrespeitoso”.
Tudo isso lhe acontecia sem que Etiel tivesse a
mínima noção do porquê estar sendo humilhado e punido. Inflado de orgulho por
ter sido preso sem ter feito nada que justificasse isso, mas também por seu “batismo
de fogo”, o jovem soldado se lembrava de como fora recrutado...
Ao se alistar, dissera ao oficial encarregado
que era órfão de pai, tinha seis irmãos menores, precisava ajudar sua mãe
financeiramente, pois esta não recebia pensão alimentícia e era muito pobre.
Ela precisava cuidar da casa, costurar a troco de míseros trocados e alimentar
seus sete filhos. Etiel era seu arrimo. Além disso, disse-lhe timidamente Etiel
que tinha uns pequenos problemas de audição...
Em resposta, o oficial carrancudo informou-lhe
que somente com atestado de pobreza e laudo médico poderia dispensá-lo do
Serviço Militar.
Nesse momento, o jovem refletiu nas vantagens de
ter um salário mínimo e uma carreira promissora no Exército para ajudar
financeiramente sua família e desistiu de pedir dispensa do serviço militar.
Muitos dos que estavam em sua situação bendiziam, também, a oportunidade...
No quartel, Etiel era estafeta e, certo dia,
deixou de entregar ao destinatário um documento cujo prazo se encerraria dias
depois. Outro soldado o substituíra, pois o sargento chefe da seção de Etiel
mandou este apresentar-se ao rancho, para lavar panelas, ajudar o cozinheiro,
arrumar o cassino dos sargentos, servir as refeições etc. etc. etc.
Desse modo, o jovem terminava o dia exausto, mas
feliz por ver o tempo passar rápido e receber seu salário mínimo, que ele
repassava à sua valorosa e querida mãezinha todo o fim de mês.
Tempo bom era aquele, deixou saudades... Quer
ver? Continue lendo...
Um dia, o tenente Raminho mandou o nosso soldado
comparecer ao seu Posto de Comando (PC). E o saldo da conversa foi que, após
breve interrogatório sobre o tal documento que acabara por não ser entregue,
resolveu puni-lo com uma semana de detenção no quartel.
A conclusão do oficial fora curiosa: ele e o
sargento também eram culpados pelo atraso na entrega documental, pois não deram
a Etiel o tempo necessário e nem a autorização para informar ao novo estafeta a
situação dos documentos; mas a falta de Etiel, a seu ver, não se justificava,
ainda que o jovem cometesse outra, se abandonasse os trabalhos do rancho sem
autorização...
Faltara-lhe iniciativa e por isso seu soldado
deveria ser punido. Não o outro, Etiel.
— Mas não se preocupe, concluiu bondosamente o
ten. Raminho, essa punição não vai constar em seus assentamentos militares...
— É justo, respondeu-lhe o soldado Etiel. E,
prestando-lhe continência, solicitou permissão para retirar-se altivo e quase
feliz por tão grande lição de moral recebida naquele dia.
Naquela semana, Etiel faria aniversário no
quartel sem que ninguém, nem mesmo ele, se lembrasse disso, a não ser na hora
de responder ao pernoite num desses dias de detenção... Ao ouvir a data do
boletim do dia, quase chorou, mas continuou calado...
Nos demais dias, antes de entrar em forma para o
pernoite, às 22h, um ten. chamado Matusalém, que estava sempre de plantão, como
oficial do dia, ficava até altas horas jogando damas com Etiel. Uma noite, o jogo estava tão disputado entre
ambos que o soldado lhe disse:
— Chefe, passamos da hora do pernoite...
Ao que este, bonachão, lhe respondeu:
— Deixa pra lá, Etiel, o sargento da guarda me
substitui e eu justifico sua falta... Vamos continuar o jogo, pois aqui está
mais quente que lá fora... (Jogavam na cozinha e o pernoite era no frio pátio
do quartel em época de inverno).
E foi assim que tudo começou...
Vinte e dois anos depois, sem ter feito nenhum
curso militar que lhe aproveitasse os conhecimentos na vida militar e civil,
profissionalmente, Etiel deu baixa do Exército...
Trouxe de lá, entretanto, boas recordações e
bons amigos, mas suas melhores lembranças são as de que a disciplina, a
honestidade, a verdade e a honra são valores inegociáveis.
Outra coisa importante é que Etiel não somente
foi identificado, no Exército, como também ali foi imunizado com as vacinas
antiamarílica, antitetânica e antitifoide...
Já este governo civil de agora, não brinca com
ele, senão ele...
Leia,
quando puder, o blog www.jojorgeleite.blogspot.com
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