JORGE LEITE DE OLIVEIRA
jojorgeleite@gmail.com
De Brasília-DF
“De todas as coisas humanas, a única que tem o fim em si
mesma é a arte.” - Machado de Assis.
Estive ontem em Jardim Novo Mundo ,
Goiás, presente ao velório de Lara.(1)
À tarde, antes de seu sepultamento, faziam-se
presentes dezenas de pessoas e alguns pastores, que proferiram belo e tocante
discurso sobre a vida da “morta”. Fiquei ali a observar as manifestações
pesarosas sobre ela, cujo espírito repousa na casa de Abraão, na cidade dos pés
juntos.
Há uma frase, de autor desconhecido, que diz
assim: “A vida é como um livro. Alguns capítulos são curtos, outros tristes.
Mas se não virarmos sua página nunca vamos saber o que o próximo capítulo
guarda”. Na vida da velada Lara, ocorreu de tudo: o filho primogênito morreu ao
nascer, disse-lhe o obstetra, quando tentou retirar-lhe, a fórceps, a criança
do ventre; mas ela ouvira perfeitamente o barulho de um osso vertebral do bebê
partindo ao ser forçado pelo fórceps imperito. Capítulo abortado, portanto.
Outro filho, ao descer uma rua de bicicleta, após se desviar de um ônibus que
invadiu sua pista, foi de encontro a um poste, bateu com a cabeça nele e morreu
aos vinte e poucos anos. Capítulo curto. A filha Adélia casou-se, teve também
uma filha no primeiro ano de consórcio e, ano depois, ao tentar parir outro
bebê, morreu com este na maternidade. Lara, então, viu-se obrigada a criar,
junto com os três filhos restantes, a neta abandonada à própria sorte pelo genro.
Capítulos tristes...
Agora, Lara virou esta página de sua vida e foi
recebida por ninguém menos do que o Senhor, que lhe recomendou descansar um
pouco, antes de se deslumbrar com as belezas do céu. Em sua homenagem, adapto
velha frase: “Para as rosas, o jardineiro é o Eterno”.
Um amiguinho da casa, percebeu espantado minha
presença contrita no local do velório e saiu anunciando-me a todos em altos
brados, sem que ninguém entendesse nada. Era Boy Friend, que me fez rir à
socapa.
Em seguida, ouvi de outrem o relato sobre o
exemplo de vida de um dos nove irmãos, sobrinho da falecida, chamado José.
Ainda bebê, José fora morar longe dos pais e criado pelos avós. Cresceu,
tornou-se gerente de uma grande firma, casou-se bem, foi pai de três filhos,
mas jamais desprezou a família de sua mãe, cunhada da falecida, à qual sempre
que pode visita, embora morando em outro estado.
Mais adiante, ouvi nova história. Dos três
filhos restantes de Lara, o líder é o primogênito Charles. Seu relato foi
comovente. Quando completara dezesseis anos de idade, seu pai empregara-o no
bar de um seu compadre, que pagava ao rapaz dois salários mínimos para
administrar seu boteco e atender aos clientes, de segunda a sábado, das oito às
21h. Do outro lado da rua, funcionava um escritório de contabilidade, e seu
proprietário era cliente assíduo do bar administrado por Charles.
Certo dia, esse cliente, percebendo a
inteligência do rapaz, propôs-lhe ir trabalhar com ele pela metade do salário
que Charles recebia no bar. Sem pensar duas vezes, o jovem aceitou a proposta.
Ao chegar a casa, pedira conselhos à mãe, agora
cadaverizada, que, na época, lhe dissera para fazer o que julgasse melhor para
seu futuro.
Mais tarde, ao tomar conhecimento da decisão do
filho em trocar de emprego, o pai ameaçou-o com uma surra de vara, caso ele
deixasse o trabalho no bar do seu compadre.
Charles não se intimidou... no dia seguinte,
disse ao pai que já não mais trabalhava no bar e acabara de ser contratado como
auxiliar de contabilidade no escritório do seu novo patrão.
O pai não pensou duas vezes, pegou uma vara de
marmelo e aplicou-lhe uma surra homérica. O adolescente aguentou firme a coça e
prometeu-se provar ao pai, no futuro, o erro que este cometera.
Dito e feito, anos após esse acontecimento,
Charles tornou-se o mais destacado contador da cidade. É representante da
Associação de Contabilidade do Estado, presidente do sindicato de contabilidade
de sua cidade e chefe de onze funcionários. O melhor deles é seu filho Raul. O
outro filho, Rúben, com suas bênçãos, conclui, atualmente, o curso de
engenharia elétrica e já foi contratado por uma grande firma particular, que
presta serviços para a cidade.
Ao longo desses anos, Charles tornou-se, também,
admirado benfeitor de sua família, a quem jamais deixou de apoiar
socioeconomicamente.
Pois bem, dias antes da passagem de Lara para o
lado de cá, Jacó chamou o filho a um canto de um quarto da casa e, aos prantos,
pediu-lhe perdão pela surra que lhe dera 21 anos atrás.
Como demonstração de sua grande alma, o rapaz
abraçou seu pai e disse-lhe que não somente o perdoava, como também lhe
agradecia, pois fora a surra tomada que o ensinara a enfrentar com galhardia
outras “surras” da vida, a tudo vencer e realizar seu grande sonho de não
somente ajudar sua família como também proporcionar uma vida melhor a outras
pessoas.
Certa vez, recomendei: “Não levante a espada
sobre a cabeça de quem lhe pedir perdão”. Charles fez melhor, reconheceu a
importância do ato irrefletido do pai em sua vida e, não somente o perdoou pela
surra de vara, mas o auxilia, até hoje, sem jamais deixar de honrá-lo, como
recomenda o Senhor.
Aproveito para prometer a Boy Friend que, em
minha próxima visita a sua casa, trarei Miss Dólar para lhe fazer coro aos
latidos caninos.
Ouvindo esta história, um verme gaiato e irônico
apressou-se a dizer-me:
— E eis que o viajante já não está mais imóvel.
(1) A propósito do título
deste texto, lembro ao leitor que O caso
da vara é um dos mais famosos contos machadianos, publicado na Gazeta de
notícias, em 1891, e republicado no livro Páginas recolhidas.
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