CÍNTHIA CORTEGOSO
cinthiacortegoso@hotmail.com
De Londrina-PR
Os pés subiam a íngreme montanha coberta por uma
vegetação rala, devido à intempérie climática, e ainda verde, por insistência,
com raminhos longos e finos. Sua mão de, aproximadamente, pouco mais de meio
século se apoiava num cajado feito de galho de árvore forte e centenária. O seu
corpo estava coberto por roupas que o protegiam do vento frio e constante,
comum à região.
No entanto, naquela hora, uma tempestade quase
varrera o cenário, menos o que possuía raiz mais funda. O homem estava com a
cabeça protegida com um gorro de pele de algum animal abatido para se tornar
alimento e vestimenta.
Às vezes, ele parava para poupar um pouco de
energia, porém, não demorava e, logo, com calma e persistência, continuava sua
subida. O pé direito sempre repousava à frente.
Faltavam cerca de duas horas para as seis da
tarde. Em decorrência do mau tempo, típico da época, a noite já era mais
presente que o dia. Naquela data, um ou outro transeunte se atrevia a sair de
suas casas adequadas ao clima.
Exatamente, cinquenta minutos, foi a duração do
percurso de seu último descanso até a casa no alto da colina aonde deveria
chegar. Em ambiente assim, o corpo humano despende alto nível de energia, no
entanto, a alimentação mais rica em caloria repõe essa perda.
A essa hora o céu já era escuro por completo, de
frio, de vento, de falta das luzes das casas que por perto não existiam. Mas
uma tão singela e pequenina aguardava o homem que determinadamente alcançava
sua porta de entrada.
Se não bastasse toda a dificuldade vencida, ele
ainda carregava na outra mão, sem o cajado, um saco de estopa com alguns
mantimentos, um tipo especial de remédio e uma garrafa de leite.
Com calma, como em todo o desenvolvimento do
caminho, abriu a porta. Subiu a perna direita para ultrapassar uma tábua
existente entre o lado de dentro e o de fora; talvez fosse uma maneira de
evitar que a neve invadisse o interior da casa.
Encostou o cajado na parede e o saco de estopa
colocou-o em cima da minúscula mesa quadrada que pegava o espaço, na casa, de
um cômodo.
O homem suspirou mais fundo que de costume,
olhou o local, observou a cama com outro corpo mais debilitado que o seu.
Passou alguns segundos olhando o ser repousado no colchão de uma espécie de
capim com algum preparo para não se perder em mofo.
E continuou a tirar os poucos mantimentos
trazidos com a garrafa de leite. Os outros olhos pouco se abriram, mas seguiam
os movimentos executados pelo senhor do cajado. Este colocou cada coisa em seu
devido lugar. Lavou a mão, despejando com a caneca a água morna de uma espécie
de garrafa que mantinha essa temperatura.
Depois esperou escorrer as últimas gotas mais
pesadas da mão, olhando, fixamente, para o plano da água que se encerrava na
bacia esmaltada com várias lasquinhas tiradas. Secou as mãos na toalhinha
pendurada próxima.
Pegou a garrafa de leite. Era preciso aquecê-lo
um pouco e o fez enquanto passava um café fresco. Depois de ter colocado a
mistura de café com leite em duas xícaras de alumínio, pegou pão caseiro e
cortou duas fatias com pelo menos três centímetros de largura cada.
Olhou pela janela e teve a certeza de que neve e
frio seriam presentes nos dias vindouros. O homem soltou um sorriso pelo canto
dos lábios, talvez por já conhecer a rotina do lugar.
Preparou a fatia de pão com mel puro e grosso
extraído das abelhas do parque na época da primavera. Pegou a canequinha com
leite quente e café e foi em direção à cama com a pessoa quase imóvel.
Reservou a refeição em cima de um banquinho de
madeira ao lado da cama. Acomodou melhor o outro corpo, amparou as costas e,
pacientemente, deu-lhe a caneca na mão. Era o que conseguia. Os outros olhos
agora sorriram.
Os dois homens compartilharam o momento e a
comida. Já estavam alimentados.
Mais uma vez se entreolharam. Talvez neste átimo
de tempo, poderiam vivenciar a mesma lembrança, no entanto, nenhum dos dois
mencionara qualquer ideia retomada.
O senhor, então, recolheu as duas canecas.
Alguns farelos de pão ficaram adormecidos na cama com outros dos dias
anteriores. Sem muito se governar, o homem, debilitado, pendeu para o lado
direito. Ficou alguns minutinhos assim até o outro perceber e endireitá-lo. Os
olhos do acamado agradeciam-lhe e sentiam o mais puro arrependimento.
Era uma tarde ainda fria, havia exatamente um
ano. O senhor morador da casa no alto da colina chegava depois de um duro dia
de trabalho; saía de manhãzinha e só no final do dia retornava. Não tivera
filhos e sua esposa, dois anos atrás, também numa tarde fria, havia sido
enterrada.
Com um pouco de dificuldade pelo clima e pelo
cansaço solitário, ele demorou alguns segundos a mais para abrir a porta de seu
casebre. Esse foi o tempo necessário para um homem, nunca visto nas imediações,
atacar o senhor e tentar roubá-lo levando o tão pouco que conseguira com o
trabalho dos dias anteriores.
Quando há escassez, o pouco torna-se muito e há
de protegê-lo para sua permanência e aproveitamento para se manter em pé, com
vida.
E de repente o estranho homem investiu,
sorrateiramente, um golpe pelas costas contra o senhor. O alvo era o minguado
pacote de comida e, caso as encontrasse, algumas moedas. Dois homens rolando
como meninos em momento pueril, com a diferença de que meninos, ainda assim,
possuem uma pureza mais confiável.
Os golpes duraram minutos eternizantes até que a
experiência foi mais sábia que a força e a juventude. O senhor do casebre
imprimiu uma rasteira ao desconhecido que perdera o equilíbrio e caiu de costas
numa pedra mais pontuda que as demais daquele terreno. Da mesma forma que
caíra, portanto, ficou.
São segundos na vida que bem pouco se compreende
o andamento das ocorrências, mas são capazes de alterar todo o percurso
predeterminado de uma existência.
O senhor, ofegante pelo esforço, olhou para o
homem mais moço, imóvel, gemendo de dor e tremendo pelo desespero da
imobilidade que visitara seu corpo. O senhor buscou fundo o ar necessitado até
se acalmar e recobrar a respiração mais harmoniosa e batidas do coração menos
aceleradas.
Já mais calmo, aproximou-se do homem sobre a
pedra e lhe perguntou:
– Homem, o que você fez?
O mais jovem não lhe respondera, porém, fitou-o
com olhos tristes, desesperançosos.
O senhor, inquieto, entrou no casebre e tomou um
gole de água fresca armazenada numa moringa grande. Saiu novamente. Não sabia o
que fazer. O mais próximo morador residia a cerca de dois quilômetros de
distância. Ele teria de encontrar alguma solução. A noite já era dominante.
Deixou a fraca luz acesa e seu sentimento apenas
lhe dizia para recolher o homem desconhecido e, agora, imóvel.
Com grande dificuldade e tremendo gasto de
energia, o senhor, por fim, conseguiu recolhê-lo e o colocou em um leito que há
muito não era usado, desde o falecimento de sua esposa.
Talvez o homem, ao carregar o jovem para dentro,
tenha feito o maior esforço físico até o momento; o rapaz estava muito pesado e
com o corpo relaxado, também não havia coordenação, devido à lesão ocasionada
pelo tombo.
Exatamente essa situação em andamento completara
um ano; o jovem, infrator daquela hora e, de fato, com as razões sustentadas
por sentimento desconhecido do momento, estava agora sob os cuidados do homem
que sofrera o susto e o mal-estar de ter sido acuado por um assalto.
Mesmo que palavras não sejam pronunciadas ou
escritas, os olhos podem ler o diálogo e a conversa do espírito... da alma.
Sempre o coração alertará o seu dono dos prós e contras realizados.
Dessa forma, os olhos do jovem sempre imploravam
o perdão pela conduta impensada, desesperada de fome, apavorada por talvez
tantos desencontros vividos. No entanto, a sabedoria da vida já ensinou ao
viajante que em toda época apenas a trilha do bem o levará à luz. Todo coração
reconhece o sentimento suave, a paz benevolente ou o desassossegado torpor da
má conduta.
O senhor lavou as duas xícaras, guardou o
restante do pão, deixou organizada a parte onde se reconhecia como cozinha.
Mais tarde sabia que deveria fazer um caldo quente para ambos se alimentarem;
no frio intenso, o corpo necessita de maior quantidade de energia para se
manter aquecido.
Ele ainda tinha um tempo para descansar antes de
ir para a feitura do jantar.
Os olhos do mais jovem, porém, acamados, seguiam
o dono do casebre. Admiração, arrependimento, força, amor, fé; aquele olhar era
capaz de sentir isso tudo. E somente o que poderia fazer era conviver com o
sentimento arrependido.
Com os dias que se passavam, o jovem começou por
uma palavra, depois uma frase, o exercício diário da prece. O arrependimento
começou a se transformar em respeito, afeto... amor. Sim, era o mais nobre sentimento
que ele, agora, sentia pelo homem que quase fora a vítima fatal de seu
desequilíbrio.
E mais uma vez o senhor olhou para o céu e em
seguida fechou a porta; o frio era congelante. A pequena, entretanto, e
imprescindível lareira estava acesa e estalava com a energia do fogo que ardia.
Como de costume, o senhor, toda noite, alcançava um dos poucos livros presentes
e corria os olhos em voz alta pela crônica ou o conto do momento.
Era a grande espera cotidiana, a leitura de um
escrito. E o jovem não era capaz de contar ao senhor, nem ao menos, o sonho que
tivera, pela situação física conquistada na tarde do desatino.
Portanto, o jovem não pôde lhe contar que a
noite passada sonhara que era ainda menino e o senhor era o seu pai. Os dois
passeavam num campo de relva verdinha e baixa; a época era bem próxima à
Primeira Grande Guerra. E nesse passeio, um dos entregadores da correspondência
do Governo foi ao encontro do pai e lhe passou, em mãos, o papel que mudara
toda uma história.
Em dois dias o homem deixara esposa e filho para
servir o país. No menino, ficou impressa a infinita tristeza de não mais poder,
com seu herói, conviver. Quanto vazio a alma do filho passara!
Possivelmente o sonho fora uma maneira de
resgatar a memória eterna, que voltou a ser espírito e agora estava alma mais
uma vez vivendo o que lhe fora, supostamente, roubado: a convivência com seu
pai.
O tempo e a experiência mostrarão ao jovem que o
pai não tivera culpa de seguir, e o abraço, então, será de frente como almas
que se amam. E ainda compreenderá que a Terra é escola da vida onde os alunos
nela matriculados precisam aprender o amor antes de tudo.
E o jovem atentava em cada palavra lida pelo
senhor. Aqueles olhos se encantavam por esta voz. E o senhor cuidava do jovem
como se fora seu próprio filho, ou melhor, o filho que nesta existência ainda
não lhe tinha sido presenteado.
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