sábado, 9 de maio de 2015

As doze crônicas de Machado, o Espiritismo e a caridade


JORGE LEITE DE OLIVEIRA
jojorgeleite@gmail.com
De Brasília-DF

E tu, ó caridade, ó virgem do Senhor,
No amoroso seio as crianças tomaste,
E entre beijos — só teus — o pranto lhes secaste
Dando-lhes pão, guarida, amparo, leito e amor.
(Machado de Assis. A caridade. Última estrofe.)

Quem pensa que me aproveitei do Espiritismo para fazer literatura está completamente certo. Aproveitei-me, sim, tanto é verdade que encarreguei este meu secretário de fazer um levantamento de todas as minhas crônicas nas quais a nova Doutrina é citada direta ou indiretamente. Sem contar a presença dos personagens e fatos espíritas em meus duzentos contos e dez romances (incluo aqui Casa velha).

Agora volto do além,
Após ter estado aquém.
No peito trazendo um dó
Em redondilha maior.

É o dó de ter criado fama literária com base no rico veio espírita, que nem sempre vi com bons olhos...
Já em crônica datada de 2 de dezembro de 1894, quando rasguei de minhas retinas o véu de Ísis, comentei: “A consciência é o mais cru dos chicotes” (In: A semana).
Nada mais certo do que nossa constatação sobre a vantagem dos velhos sobre os jovens em relação à maturidade. A experiência permite-nos corrigir aqueles passos dados mais largos do que as calças comportam na juventude.
Daí eu retornar para ratificar o que comprovei na experiência pós-existência física: é verdade, a mente controla a matéria. A de Deus, mentezona, controla, igualmente, a matéria e o espírito; a nossa, mentezinha, controla, em parte mais ou menos ampla, a matéria, até que consigamos espiritualizá-la.
Dito isso, procuraremos demonstrar ao curioso leitor, pelo método da linha do tempo, de que modo partimos de uma intransigência radical a uma dúvida, a um respeito e, por fim, a uma completa certeza sobre as verdades pregadas pela crença espírita. O corpus analisado é o das nossas doze crônicas com abordagem do Espiritismo, 2% de todas as 600 crônicas escritas por nós. Vamos à linha do tempo:
16 de junho de 1878, V (Notas semanais): confundo adivinhação e Espiritismo, que demonizo e critico;
05 de outubro de 1885 (Balas de estalo): informo ao leitor sobre conferência assistida na Federação Espírita Brasileira, RJ, que ironizo;
11 de outubro de 1885 (Balas de estalo): minha suposta iniciação na nova “igreja”, impedida pela proibição de fingimento de inspiração “por potências invisíveis” e de “predizer coisas tristes ou alegres”;
19 de julho de 1888 (Bons dias!): fina ironia à constatação, pela própria Federação Espírita Brasileira, de fraudes cometidas pelo médium inglês Dr. Slade, que esteve no Rio de Janeiro;
7 de junho de 1889 (Bons dias!): critico veementemente o “Espiritismo” como coisa de alienados mentais, mentecaptos e de idiotas; chego a forjar “estatísticas” que comprovam ser o Espiritismo coisa de “doido varrido”; mas na verdade, apenas analisei um dos postulados espíritas, que é a mediunidade, sem necessariamente uma coisa ser o mesmo que a outra, pois esse fenômeno não é privilégio dos espíritas; em minha época, era comum a confusão entre cultos afros, curandeirismo, adivinhações, profecias e mediunismo com o Espiritismo;
29 de agosto de 1889 (Bons dias!): comparo curandeirismo com Espiritismo, ao qual ataco injustificadamente e digo que ambos são a mesma coisa, agravada pelo fato de o segundo criar “idiotas e alienados”;
03 de julho de 1892 (A semana): abordo a desencarnação e a reencarnação e cito frase semelhante à do túmulo de Allan Kardec: “Nascer, morrer, tornar a nascer e renascer ainda, progredir sempre”. Cito igreja e sacerdotes espíritas, o que jamais existiu no Brasil. Demonstro, nessa crônica, boa vontade para com os espíritas, mas, em meio a verdades, cometo equívocos como os citados;
2 de setembro de 1894 (A semana): refiro-me ao Espiritismo e sua lei da reencarnação como possibilidades reais: “Ou o Espiritismo é nada, ou Miller foi condutor de bonde em alguma existência anterior [...]”, e já não critico o Espiritismo;
23 de setembro de 1894 (A semana): informo que o Espiritismo “é uma verdade”, e brinco com a fingida suposição minha de que o “espírito de um homem pode reencarnar-se num animal”, contrariamente ao que prega o Espiritismo, o qual só admite a reencarnação do espírito humano em corpo também humano;
27 de outubro de 1895 (A semana): reconheço que “o Espiritismo é uma religião, não sei se falsa ou verdadeira”;
29 de dezembro de 1985 (A semana): confirmo que “o Espiritismo se ocupa de altos problemas” e defendo a liberdade religiosa;
13 de setembro de 1896 (A semana): saio-me com esta afirmação: “Há muito que os espíritas afirmam que os mortos escrevem pelos dedos dos vivos. Tudo é possível neste mundo e neste final de um grande século”. Nessa última crônica, já não confundo pseudomédiuns ou profetas com o Espiritismo, como se vê nesta afirmação: “Quanto à doutrina em si mesma, não diz o telegrama qual seja; limita-se a lembrar outro profeta por nome Antônio Conselheiro”.
Refiro-me ao “profeta baiano Benta Hora”, que foi preso, mas cuja liberdade de se expressar também defendo: “Ora, pergunto eu: a liberdade de protestar não é igual à de escrever, imprimir, orar, gravar?”.
Do respeito à convicção total, bastou o período de algumas horas após minha desencarnação, em 1908, quando observei in loco a vida espiritual e não, como cheguei a supor, já na idade madura, ser o espírita um louco.
Entristecido, por ter agido, durante tantos anos, como um verdadeiro alienado que, do lado de fora, colocara os sãos do lado de dentro do hospício; tratei de soltá-los, como o fez meu personagem d’O Alienista, e meti-me lá, eu mesmo. Ali, chorei como criança...
Foi quando minha doce Carola, cercada de bons espíritos, entrou, aproximou-se de mim e libertou-me do cárcere das trevas em que estava.
Em suas mãos, ela trazia uma faixa com a bela máxima espírita, que não distingue nenhum filho de Deus, seja crente ou ateu, e contradiz minhas antigas acusações de pretender ser o Espiritismo a única religião verdadeira. Ela intitula o capítulo 15 d’O evangelho segundo o espiritismo:
Fora da caridade não há salvação.


Leia, quando puder, o blog www.jojorgeleite.blogspot.com


Nenhum comentário:

Postar um comentário