ARTHUR BERNARDES DE OLIVEIRA
tucabernardes@gmail.com
De Guarani, MG
XI – Vem ver a família
Já estávamos chegando ao Asilo. Meu cunhado
Wálter veio ao nosso encontro. Esse
cunhado, pela identidade que nos aproxima, é mais do que um irmão. Casado com a
Edna, às vezes eu me surpreendo na dúvida: quem é o irmão, quem é o
cunhado? Penso que a natureza
enganou-se. Na hora de nascer, trocou as crianças.
Não é que eu não goste de minha irmã. Absolutamente.
É das irmãs a de quem gosto mais enternecidamente.
E aqui, por justiça, abro um parêntese. Talvez
desnecessário. Mas já que estamos conversando, e a noite ainda é nova, não
custa dizer.
Somos, ao todo, onze irmãos: cinco homens e
seis mulheres. As irmãs-mulheres já estão casadas. Todas. A mais velha, a Lila,
casou-se com o vereador mais novo do País: Waldemiro Correa de Faria
O Waldemiro é um tipo caladão, mas bom sujeito.
Talvez um pouco posudo demais. Por
princípio. Metido na política desde cedo, apurou seu senso de apresentação e
dele não se afastou jamais.
Não tem nenhum curso. Interrompeu o ginasial,
na segunda série, mas continuou estudando sozinho. Leitor paciente, muito
observador, conseguiu acumular cultura e representa bem na vida o seu papel.
Lecionou francês e taquigrafia na Escola Comercial de Astolfo Dutra e é uma
bela pena. Talvez morosa demais. Muito presa à perfeição da forma, o que o
impede de produzir muito. Nascido para a literatura ou para a burocracia, que
no fundo se assemelham, não tem tido muito sucesso no comércio. O que o leva a
dizer, de vez em quando, brincando, é certo: “Cunhado, todo bom artista é
péssimo comerciante”.
A segunda irmã é a Edna, casada com o Wálter.
Wálter de Oliveira: o mais simpático dos oito filhos do velho Pedro Relojoeiro.
O mais simpático e o melhor. Coração intensamente amoroso. Eu diria que o
Wálter é um imenso coração em forma de homem.
Alegre, brincalhão, jovial, amigo, o que ele
tem é dos outros. E é justamente esse desprendimento que não lhe permitiu fazer
fortuna para dispor de melhor conforto. Sempre preocupado com os outros, o que
ganha como viajante vai se dissolvendo
em favor dos outros. Não reclama, não recrimina, não discute, não acusa
ninguém. Continua imperturbável sua marcha em torno de bem.
A terceira irmã é a Marly, casada com um moço
de Guiricema, que lá apareceu com um botequim nas costas: o Braz Parreira.
Também bom, mas um pouco viciado no jogo de cartas. Têm os dois passado
momentos de muita dificuldade. Seja pelas dificuldades financeiras, seja pelos
sucessivos casos de doença nos filhos e nos dois.
A quarta irmã, a morena da família, a mais
compenetrada de todas, no dizer do pai Astolfo, é a Anita, que herdou o nome e,
alguns dizem, as virtudes da mãe.
Casou-se com um moço de Astolfo Dutra, José
Jésus Cazetta, e, ambos muito novinhos, foram assentar praça na longínqua
cidade de São José do Rio Preto. Não sei bem o que andam fazendo por lá. Mas a
julgar-se pelo que se ouve e pelas virtudes de ambos, conquistaram a grande
cidade, e seguem uma vida de felicidade capitalizada. São ambos excelentes.
Particularmente, acho o marido um pouco melhor que a esposa. E se disse que a
esposa é excelente, estarei fazendo justiça ao grande cunhado que é o Jésus.
Filho amoroso e pai exemplar. Viajante excelente e cidadão ainda melhor. Vai
vivendo uma bela vida.
As duas últimas irmãs, Eunice e Icléa, que
considero as mais bonitas da família, casaram-se há pouco, quase no mesmo dia,
respectivamente, com Adilson Antônio Cazetta, irmão de outro cunhado, o Jésus, e
Francisco Schettini – mais conhecido pelo apelido de Pantera.
O primeiro casal está em Astolfo Dutra , no
gozo de sua lua-de-mel e o segundo localizou-se em Leopoldina, onde os ventos
de Cupido, parece, lhe fizeram bem. Levam vida modesta, apertada, mas feliz,
que é o que interessa.
Ah, meus irmãos! Você nem queira saber o que
são eles! Para resumir: não conheço nem dentro, nem fora da família, gente
melhor. Eu quero que você também os conheça. Não faltará oportunidade. Verá,
por você mesmo, que tudo o que digo é
pouco, embora absolutamente correto.
Tenho, até hoje, dificuldades em dizer, dos
quatro, quem é o melhor; qual deles, o mais inteligente.
Creio que os que não pertencem à família não
têm dificuldades nessa indicação. Sobretudo, quanto à inteligência, porque
confundem maior soma de conhecimentos ou de cultura com inteligência pura,
inteligência isolada.
Nem sempre a cultura maior ou menor representa
maior ou menor inteligência. A cultura depende mais de oportunidade e esforço
do que de inteligência em si.
Acho que os de fora, por isso mesmo, me
apontariam como o mais inteligente, porque na realidade sou o que leu mais. Nem
mesmo a vaidade me permitiria concordar com isso. Nem se trata de falsa
modéstia.
Diz o Amaury que o melhor é o Ayres. Amaury é o
mais velho. Eu sou o segundo. O Ayres é o terceiro. Seguem depois o Astolfinho
e o Ali, que é o caçula. O caçulíssima não chegou a nascer. No oitavo mês
acompanhou minha mãe naquela dura segunda-feira de maio (dia 8) de 1950. (1)
Já o Ayres e o Astolfinho votariam no Amaury. E
eu também. Não nos preocupamos com esse tipo de comparação. Cito-o, apenas,
porque por diversas vezes tenho ouvido opiniões a esse respeito.
Para ver bem como são os meus irmãos, eu que me
julgo bom, por nenhum deles sou considerado nem mesmo o terceiro. Porque há um,
o Astolfinho, que vem logo depois dos dois primeiros, ou vem na cabeceira com
eles.
E é aqui que eu lamento demais a minha
incapacidade. Gostaria de escrever detalhadamente sobre cada um deles.
Capacidade não me faltasse e surgiriam dessa pobre máquina quatro grossos
volumes aos quais se poderia dar o mesmo título: “De como ser bom vivendo-se
apenas para o bem”.
O ideal seria que você nos visse conversando.
Para nós não há nem hora, nem lugar. Nem assunto preestabelecido.
Quase sempre o assunto é um só: os problemas da
família, do Asilo, dos amigos, com leves infiltrações no terreno da política.
Na política nós nos dividimos: eu e Astolfinho,
mocinho de inteligência fulgurante, segundo quase todos nós, o mais inteligente
da família, com decidida posição nacionalista. Nacionalismo que alguns costumam
confundir com extremismo. O Amaury, acompanhando meu pai, do lado oposto. Não
creio na sinceridade da sua posição. Acho-o mais preocupado com o debate do que
com a política em si. O
Ayres não tem lá uma posição bem definida. Começa agora a se
orientar melhor e luta entre dois caminhos: seguir, como bom filho, a
orientação do pai ou acompanhar os dois irmãos que não veem nos partidos
dominantes a solução para os nossos problemas. O Ali, novinho ainda, não se
mete nessa cumbuca. Está se formando ainda. Terminando este ano o curso de
contabilidade, já com excelente bagagem
literária, porque lê muito.
Quando os irmãos se juntam a vida se renova.
Quantas noites passamos juntos sem perceber, em
recordações e debates memoráveis.
Os planos do Amaury... Qual! Só encostando
estas teclas. Falaria a vida inteira sobre os planos do Amaury. Planos
fabulosos e irrealizáveis, quase todos, mas sempre belos, puros, fulgurantes.
A pureza de seus ideais! A preocupação
obsessiva com todos, indagando, perquirindo, analisando, bisbilhotando, para
descobrir necessidades, e supri-las com a sua bondade.
A ingenuidade do Ayres. Ingenuidade que lhe deu
o título de “o exagerado”. Uma carta do Ayres é um monte de exageros. Uma
notícia simples assume caráter de catástrofe. A sala treme, as cadeiras se
assustam quando ele traz uma notícia nova. Ele todo é circunspeção. Os olhos se
esbugalham. O coração para. O rosto se comprime. E lá vem o tufão.
Não me esqueço nunca de nosso reencontro em Caldas. O Ayres
quase me matou na hora. Ao vir para o Sul, tinha deixado no hospital minha irmã
Lila, com a segunda ou terceira operação de cesariana. Lá passei na manhã do
dia 5, vindo para cá, e com os olhos molhados, fazendo força para sorrir, ela
me deu um abraço e não disse mais nada. Se a emoção lhe deixasse, ela me teria
dito: “Boa viagem, e seja feliz!”
O nó-na-garganta que a despedida me pôs só se
foi dissipar duas horas depois, quando o cafezinho de Areal empurrou-o para baixo.
Pois bem, lá tinha ficado a Lila, curtindo as
amarguras de um restabelecimento já difícil.
De modo que, ao ver o Ayres entrar pela porta
do Hotel Magalhães, minha primeira pergunta foi sobre ela.
E ele: – Aconteceu uma coisa horrível!
Quase caí. A garfada que tinha posto na boca
(eu estava almoçando) cresceu estupidamente e formou o maior bolo que até hoje
comi. – Uma coisa horrível!
Aquele horrível estourou como uma bomba na
minha cabeça. O coração disparou. Todos pararam. Luizinho e Dr. Paulo, Juiz de
Direito, que conosco comia, ficaram estupefatos. Aguardando a notícia terrível.
E o Ayres respirou fundo. Mastigou uma golfada
de ar. E serenamente, naquela fisionomia de trágico, deu a notícia.
O horrível é que o Waldemiro a tinha levado
para casa, antes mesmo de uma melhor recuperação, e alguns pontos se haviam
rompido. Mas já estava melhor e fora de perigo.
Graças a Deus! Mas quase morri!
Não, não pense que, por vivermos juntos, já nos
devíamos ter acostumado com o Ayres. O Ayres é como o frio desta região. A
gente não se acostuma com ele nunca. Por mais prevenidos que estejamos, por
mais força que façamos, por maior que seja o desinteresse com que o ouvimos,
tudo se desboroa ante as suas notícias. O homem é o próprio trágico ao nos
contar uma coisa.
Já incluí nas minhas preces noturnas um pedido
pessoal: “Livra-me, Senhor, das notícias do Ayres!”
O Astolfinho é a responsabilidade em pessoa. Desde cedo,
desde novinho, notamos isso. Nunca tivemos com ele o menor problema. Do grupo
escolar à faculdade foi sempre o primeiro da classe. Responsabilidade e
personalidade. De pontos de vista muito firmes. Por isso pensa bem. Pensa bem
para não precisar mudar. Nada o segura quando o coração lhe ordena alguma
coisa. De empregos ótimos tem saído, sem se esquecer nunca do inevitável
aviso-prévio, a fim de seguir o seu destino.
Dono de inteligência fantástica, no início
desde ano enfrentou o concurso do Banco do Brasil e foi aprovado com
facilidade.
Certa vez, estudante em Astolfo Dutra ,
fundou, a expensas dele mesmo, um jornalzinho de crítica social - “O Veneno”. Astolfo
Dutra quase lhe caiu sobre a cabeça.
Não me esqueço de seu entrevero com D. Zica e
D. Isinha. O Veneno tinha publicado algumas coisas sobre Sueli e Ana, filhas
das duas cidadãs acima nomeadas.
Foi um “Deus nos acuda!” E as mães se dirigiram
até o Colégio para acertar as contas com ele. E ao clamor de tantas vozes e de
tantas ameaças, uma coisa ele disse que eu jamais esquecerei:
– O problema é de suas filhas. Elas dão o
assunto. Eu relato. Façam com que elas não deem motivo. Porque, senão
continuarei escrevendo.
Do Ali, pouco ainda se pode dizer.
É inteligente, mas meio malandrão. É verdade
que o emprego o sacrifica muito. Quase não lhe sobram horas para o estudo. E a
par disso a sua inevitável queda pelo twist e outras barbaridades que a
mocidade deste país passou a copiar dos jovens americanos, a título de
juventude transviada.
É leitor assíduo e bom frequentador de cinema.
Gosta de música clássica e não se dá bem com os esportes. Escreve corretamente
e tem bastante inspiração. Do que poderão surgir bons trabalhos quando sua vida
estiver estabilizada.
Já sei. Você quer saber um pouco do meu pai.
Então vamos até a figura curiosa de meu pai.
XII – Entenda-se o termo
Não vou falar de meu pai sem antes lhe dizer um
pouco sobre a minha mãe.
Mas antes disso, é preciso que justifique uma
expressão, corrigindo o que poderia parecer uma injustiça.
Referindo-me à Lila, minha irmã mais velha,
parece-me que eu disse “irmã-jararaca”. E é aí que eu preciso explicar.
Particularmente, acho que a Lila gosta muito de
mim. E que por muito gostar ela se deixou dominar um pouco pelo ciúme. Não sei
se minha observação estará certa. Ninguém conhece ninguém. Sobretudo ninguém
tem o poder de sondar os refolhos das almas alheias. Mas, de qualquer modo, é
uma observação.
Por gostar muito de mim, quase nunca gostava de
minhas namoradas. Às vezes, ela tinha uma grande amiga. Eu passava a namorar a
sua amiga, Então a amiga deixava de ser. E uma infinidade de defeitos eram
apontados. Brigávamos. A amizade antiga voltava a florescer, para não se
desfazer jamais.
Já fui noivo de outra moça. Quando noivos, não
eram bons os olhos da mana a observar minha noiva. Rompemos. Hoje a minha
ex-noiva é a mais virtuosa e boa das mulheres, para ela, é claro.
Com a minha própria esposa o caso se repetiu.
Você sabe que foi em sua casa que começamos a namorar. Pois bem: como com ela
me casei, até hoje as duas não se dão lá muito bem.
A Lila foi assim uma segunda mãe que eu tive.
Era quem cuidava de minhas roupas, de minhas amizades, de minha comida. Até
dinheiro por diversas vezes chegou a colocar em meu bolso. Lembro-me de que em
Garça recebi pelo correio num envelope lacrado uma nota de mil cruzeiros. Ela
soubera que as coisas não iam muito bem para o meu lado e me mandou o dinheiro
da passagem.
Foi sempre assim. Mas por muito nos amarmos,
muito nos encrencamos. De modo que dos trinta e tantos anos de convivência,
creio que por uns quinze ficamos sem conversar. Não assim continuamente.
Intercaladamente. Dois meses de bem, dois meses de mal. E assim sucessivamente.
Mas é dona de um coração admirável. Boa como
uma pomba, embora brava como uma onça. E um pouco mal-educada. Embora digam
alguns tratar-se de franqueza.
Como eu não distingo a franqueza da falta de
educação, fico com o meu ponto de vista.
É voluntariosa. E tremendamente impulsiva. É
desses tipos que não pode deixar para o minuto seguinte o que entendeu de fazer
agora. E doa a quem doer.
Não pode ser contrariada. Seus pontos de vista
não admitem contestação. É ela quem está sempre certa. E pronto!
Como eu sou um mal psicólogo e, mais que isso,
um distraído, quase sempre fugia de suas graças. Uma palavra mal dita, um gesto
suspeito, uma opinião escapulida, e pronto. Estava consumada a tragédia. E lá
ficava eu dois ou três meses sem o sorriso da irmã.
Quando cruzávamos um pelo outro era o Everest
em face do Bandeira. Uma atmosfera pesada a se tornar mais compacta. Sobre o
chão que pisávamos nos nossos encontros ocasionais, diziam os observadores mais
jocosos, não nasceria capim.
Claro que eram só aparências de ira. No fundo
os dois corações, moles como manteiga, se trocavam ternuras.
E a vida continuava. De modo que a expressão
usada não define a mulher. Trata-se apenas de uma brincadeira em família, sem
maiores preocupações no definir.
Feito o remendo, veja quem foi minha mãe. (Continua.)
(1) Arthur contava 33
anos quando escreveu este livro. Os irmãos a que ele se refere contavam nessa época
com as seguintes idades: Amaury, 35 anos; Ayres, 26; Astolfinho, 20; Ali, 18.
Nota:
O texto acima faz parte do livro intitulado “A história que eu sei
contar”, escrito por Arthur Bernardes de Oliveira e concluído no dia 28 de
julho de 1964. O livro compõe-se de 20 capítulos e está sendo publicado aqui ao
longo de dez semanas, sempre aos sábados. A primeira parte foi publicada neste
blog no dia 28 de julho de 2013.