CÍNTHIA CORTEGOSO
cinthiacortegoso@hotmail.com
De Londrina-PR
Às vésperas de sua morte, um homem revivia a sua passagem, inebriava-se com
suas lembranças agradáveis e felizes em sua maioria. Ele, já há alguns dias,
despedia-se, no leito, desta vida apreciando a paisagem pela janela do seu
quarto, com as flores, os pássaros, a natureza.
Recostado em dois
travesseiros um pouco mais altos que de costume, Johan – era o seu nome – libertava
sua mente para visitar os seus atos, abraçar os seus amados, acariciar o rosto
dos netos e o das crianças que o conheceram, pois era pediatra aposentado e
fora um mestre na arte de entender as crianças e devolver-lhes a saúde, quando
permitido ou, pelo menos, promover amorosamente a luz da alegria para seus dias
restantes.
Seu semblante, no
decorrer de sua caminhada, aclarava-se e o homem conquistou única
predominância: a satisfação de servir ao próximo. Muitas vezes, atendia os
pequenos sem remuneração; o altruísmo era seu maior atributo e por isso amparo
e trabalho se fundiam.
Recordava-se de olhares
tão puros que lhe agradeceram o gesto fraterno e o respeito dispensado aos
irmãos instituídos de mais discreta posição social e cultural.
– Obrigado, senhor Johan!
Quanto essa frase fora
ouvida pelo pediatra, mestre das crianças, senhor de tamanha bondade!
Agora, mais debilitado,
os momentos sem visitas ou sem a família por perto eram muito raros. Quando
ocorriam, somente o feliz sentimento recordado tinha proporção no tempo e
espaço.
Suas mãos receberam até
o momento imensuráveis vezes de saudação, beijos agradecidos, apertos
constituídos do mais grato carinho. Telefonemas, durante toda sua vida de
trabalho e vivência, foram diariamente, em cálculo bem singelo, de vinte a
trinta... simplesmente pelo reconhecimento de tão incalculáveis boas ações.
Johan, em meio a mais
sublime energia, amigos, família, esposa estimada, no início de uma
quinta-feira – seu dia preferido –, com incomparável singeleza e tranquilidade,
desprendeu-se de seu corpo físico e libertou-se para o infinito, conquista dos
espíritos.
Houve o choro de quem
ficou, choro comedido, silencioso, de não mais poder abraçar o corpo de uma
alma tão bondosa, de não mais, por enquanto, conviver com o dono de atitudes,
exemplos e palavras tão edificantes e consoladoras. Houve as lágrimas quentes e
doces de, por um tempo, permanecer sem a maravilhosa pessoa... alma... bondosa
flor que ainda perfumava cada mão presenteada no curso da existência em
questão.
Johan partiu e foi
recebido por seus outros amigos que tanto desejavam o reencontro. Um amigo tão
amado retornara ao lar imortal.
E em outro hemisfério,
tão longínquo de onde Johan conquistara seus méritos, presentes para seu
espírito, estava Joseph, homem, ermitão... solitário pela obra de suas ações.
Em época alguma fora capaz de realizar uma atitude mais amorosa consigo, menos
ainda com o próximo.
Nos anos em que vivia
com sua família, ainda solteiro, era indiferente aos pais. A mãe, pobre e
simples senhora, cuidava com muito amor do filho que lhe retribuía com frieza
no olhar, nos gestos, no convívio. Nunca agradecera um carinho ou gentileza dos
muitos, ainda assim, endereçados a ele. Com seu genitor não era melhor, em
verdade, até de forma mais rude o tratava, sem ao menos um abraço em toda a
vida... E quanto o pai esperou ser envolvido pelos braços filiais!
E Joseph se formou,
conseguiu um emprego de alto padrão; logo jovem, começou a ganhar um salário
considerável. No entanto, no decorrer dos meses e anos vividos não agregara ato
benéfico algum. Não cativara um amigo sequer, mas de repente encontrara uma
jovem com quem se casou. Duas meninas foram o número de crianças que o homem
recebera como impulso para acariciar seu coração endurecido; nem mesmo esses dois
presentes foram capazes disso.
Ele cumpriu o dever de
pai e marido como o mantenedor da família e, de fato, nada lhes faltara.
Entretanto, nenhum carinho, amor ou gesto afetuoso provinha daquele homem com
tanto poder material e social. Finalmente, ele conquistara a presidência de uma
grande companhia no país onde morava. Em tempo algum conhecera de perto algum
funcionário, não se interessava em saber nem o nome da secretária que tanto o
assessorava.
Dias e noites se
passaram e, a cada novo tempo, Joseph, com maior indiferença, se dirigia às
pessoas. Não era nem um pouco custoso a esse senhor deprimir alguém de seu
convívio com seus variados comentários sarcásticos ou implacáveis.
E os anos se passaram e
sua família não suportou tanta indignação, desamor, sofrimento. Então, Joseph
ficara só naquela mansão construída sobre a frieza de seu sentimento. Quanto o
senhor poderia ter feito de benéfico! quantas pessoas poderia ter amparado...
com sua fortuna! O dinheiro e o poder ficaram determinantemente em sua seara
terrena.
De certa forma, todo
mal-aventurado é o mais necessitado de tudo o que cerceou para os que o
rodearam. E a idade chegou para o senhor Joseph, como chega a toda alma na
sementeira da Terra. Com tempo bastante avançado, o seu corpo estava exageradamente
debilitado, até mais em comparação aos de sua idade. Em seu palácio frio, o senhor
solitário estava em seu leito. Ninguém viera visitá-lo, somente os criados eram
vistos pelos corredores; nem um passarinho voara próximo à janela de seu
quarto.
E na mesma quinta-feira
que Johan, Joseph também deixou seu corpo, e seus olhos se abriram para uma
paisagem cinza e repleta de solidão...
Há um momento em que as
almas partem para a vida verdadeira, para onde não se leva conquista material
alguma, somente as boas e meritórias ações realizadas ou a sombra do bem que
ainda não se desenvolveu.
Johan conquistou
inúmeros amigos leais e amorosos nesta fase da existência e foi para o
reencontro de tantos mais já conquistados a sua espera no plano imaterial.
Joseph, sem conquista
alguma, voltou para o plano verdadeiro onde nenhum amigo o esperava.
Mas a bondade divina,
percebendo a pequenez do filho desprovido de harmonia, já no plano eterno,
endereçou socorro a seu amparo. A luz era forte demais para os olhos de percepção
gris, mas o amor o embalou nos braços e o espírito, isento de qualquer
disfarce, reconheceu mais uma vez seu deslize, sua oportunidade desperdiçada. O
espírito chorou copiosamente até desfalecer.
Após indeterminado
tempo, Joseph recobrou um pouco a energia e percebeu-se em um leito diferente
do que deixara no planeta.
Na primeira ocasião da
presença de alguém a seu lado, perguntou:
– Onde estou?
– Você está num local de
amparo, meu irmão – um senhor respondeu.
– Mesmo com tudo que
fiz... de tudo o que fui capaz? Ainda recebo ajuda? – tornou a perguntar.
– Meu irmão, todos somos
iguais perante o Pai. Todos receberemos socorro de acordo com o ensinamento do
Mestre Jesus – o senhor explicou.
– Obrigado... Por favor,
qual é o seu nome? – Joseph perguntou.
– Johan, meu irmão.
Ficarei, por enquanto, para auxiliá-lo – o homem completou.
A continuidade da vida
terrena e espiritual é sinônima. Ninguém passará de uma estirpe menor a maior
se não houver méritos comprovados e a renovação do espírito por meio de seus
atos, palavras, sentimentos e pensamentos.
O Mestre está de mãos
estendidas e braços abertos para receber tão ternamente os seus pequeninos;
então que desejem abraçá-lo.
A única visita para
Joseph, pelo menos por enquanto, era a do amado pediatra terreno também
conhecido como Johan.
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