terça-feira, 14 de janeiro de 2014

Como o trem que retorna à estação

CÍNTHIA CORTEGOSO
cinthiacortegoso@hotmail.com
De Londrina-PR
     
Talvez fosse ritual ou disciplina aprendida. No entanto, verídico era todo dia o homem chegar ao mesmo exato minuto, girar duas vezes e, junto do apito do trem, pisar o pé direito na cozinha de sua casa.
Na primavera das flores, no verão escaldante, no outono do aconchego ou no inverno do recolhimento passou a ser assim, desde o tempo em que ele começou a residir solitariamente no endereço. A cadência metódica era bastante peculiar.
Não mais ouvira o balbuciar das palavrinhas graciosas do menino mais novo; a filha maior, ah... esta também não entrava, não saía, não mais brincava no quintal. A esposa não mais o esperava para o almoço menos ainda para o jantar. A vida estava sem a graça que a torna grandiosa.
Apenas um ponto positivo restara: o cão de rua que o acompanhava no trajeto passou a ter um lar. Eram o homem e, agora, o seu cão. E como este era leal!
Quando nunca se teve uma casa para morar e se é convidado a ter comida, teto e um pouco que seja de carinho, o tapete em frente à porta já é um palácio para se alegrar. Religiosamente, lá estavam o homem e o seu cão; este, dessa forma, sentia a segurança que conhecera a partir de agora e aquele podia, superficialmente, reviver mais um minuto de carinho e aconchego. O cão o olhava nos olhos, nos olhos do seu companheiro.
Os olhares se entendiam; as palavras soavam muito pouco no ambiente familiar; na verdade, era apenas o lar de um homem e de um cão.
Mesmo que os dias se multipliquem e os anos perdurem, o sentimento de um ser humano não possui regras exatas como a matemática, nem estruturas coerentes pertencentes à formação de um idioma. O sentimento humano chega, muitas vezes, ao extremo da incompreensão alheia e pura coerência ao protagonista em questão.
Depois do último domingo do mês de maio às quatro horas da tarde do ano passado, a vida do homem tanto se transformara como se saltasse do Hemisfério Norte para o Hemisfério Sul. No seguinte domingo atual, completaria o ciclo de um ano o ocorrido.
Ele sentou-se na única cadeira da tímida varanda em frente à edícula onde morava. O cão sempre o acompanhava. E olhando com mais atenção, ele notou uma pequenina flor mesclada de branca e rosa bem rente ao muro.
Não se conteve e precisou apreciá-la de perto. Lembrou-se de que não a vira antes, agora já estava formada e linda, e pensou: “Quanto se perde com a falta de interesse, de entusiasmo pela vida”.
E tão introspectivo o homem estava. O cão copiava o sentimento humano.
O homem admirou a formosura da flor e se encantou ainda mais pela força, persistência e fé daquela pequenina. Grande exemplo.
Sentiu-se como a flor – sozinho – e aprendeu que precisava de mais determinação e amor pela vida, pois a conquista depende da atitude.
Olhou-a mais um pouquinho, levantou-se, alongou a coluna e voltou para a cadeira reservada na varanda. O cão também voltou e deitou-se bem ao lado.         
Os dois passaram a apreciar o movimento da rua, a gostar de analisar o céu e a acompanhar o voo do pássaro até o seu desaparecimento.
Nesta tarde enfastiada, palminhas bateram ao portão. O homem olhou para a identificação das palmas. Por alguns segundos, ele não respirou, mas seu coração continuou a bombear; em sua mente, e uma extensa história se apresentou em curtos instantes.
– Papai... sou eu... Maria!
Os olhos paternos se emocionaram.
– Papai... abre o portão!
O homem não sabia nem se levantar da cadeira. A surpresa foi gigantesca, mas, enfim, conseguiu. Ele se encaminhou ao portão; o cão parecia compreender a tão situação delicada e foi no mesmo ritmo das pernas humanas.
A mão direita alcançou o trinco e abriu.
Sem palavras, a filha Maria o abraçou pela cintura. Apertou-o forte de saudade, de tristeza por estar ausente por todo esse tempo; ela soluçou de emoção, estava ao lado do pai.
Também o filho menor se jogou para os braços do pai; o menino era pequeno, no entanto, recordava-se dos olhos protetores.
O pai o pegou e o afagou com amor renovado. Filhos e pai estavam juntos e enlaçados pelo profundo sentimento.
A mãe observava de cabeça baixa; nada podia falar. Sua consciência a castigara, palavras eram dispensadas.
Quase um ano de padecimento implacável; noites em claro, peso perdido, olhos sem brilho, coração sem sentido. Uma família desfeita; desalento de quatro corações.
O homem, afogado na sua dor, respirou fundo, olhou para o céu, entendeu que a vida é eterna e o tempo para cada ação, efêmero. Não possuía o direito de julgá-la, era ainda sua esposa e, definitivamente, mãe dos seus filhos.
Nesse quase um ano de reflexão, compreendeu que nem toda atitude será compreendida; cada coração tem seus desejos e suas razões. 
E a esposa se iludiu com uma nova vida, um novo amor. A ilusão foi tão descomedida que arrastou outros três companheiros para o mar da desilusão.
Mas o céu sempre está à espreita dos acontecimentos e, em sua grandeza, pode enxergar todos os atos realizados e prever os que ainda são só pensamentos.
Então, o homem, com o filho no colo e a filha abraçada a sua cintura, pôde também com o braço esquerdo, mesmo lado do coração, abraçar a mulher e, como uma família nova e completa, eles e mais o cão buscaram a casa simples e pequena, aconchegante e amorosa, sustentados pelo ato do perdão.  

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