CÍNTHIA CORTEGOSO
cinthiacortegoso@hotmail.com
De Londrina-PR
Assim!
Era sábado de primavera e este
momento da narrativa abeirava-se às cinco da tarde. Com os anos, acabei por
dispensar a vida na cidade e a me encantar com o som do campo, da natureza pura
e liberta. À cidade, só me aventurava ir para cumprir com os deveres de cidadã,
fazer compras e as visitas, um pouco regulares, ao médico Estêvão, clínico
geral.
Recordo-me que a última vez que
fui a uma consulta, à saída da clínica, do outro lado da rua, havia sido
inaugurada uma loja de sofás, cadeiras e outros tipos de sustentação para o
corpo – penso que o vocábulo sustentação até se torna engraçado e desvaloriza o
invólucro carnal que possibilita à alma o seu progresso; às vezes, não, isso
depende da atitude perante a vida.
Na verdade, quando avistei esta
cadeira de balanço na qual estou recordando essas passagens, puxei Ernesta pelo
braço – Ernesta é minha funcionária, cuidadora, motorista, mas antes de tudo
minha grande amiga – e logo atravessamos a rua e estávamos na loja. Eu, feito
uma criança, agarrei-me à cadeira, que nem por decreto soltaria – certas vezes,
tornamo-nos ainda mais materialistas ou possessivos; mas, de certa forma, já melhorei
um pouquinho, pois não me agarro mais aos parreirais de uva querendo engolir os
cachos de uma só vez. A vida nos ensina.
Da aquisição da cadeira em
diante, a maior parte dos meus dias passo como estou agora, entregue a ela;
quando me balanço é bem suavemente, as náuseas são visitas um tanto comuns dos
corpos mais vividos pelo tempo.
E exatamente aqui, onde me
posiciono sobre a cadeira, na varanda que rodeia a casa, tenho a paisagem mais
impressionante de tudo o que já vi – outros podem não concordar, mas meu
consenso confirma isso. Nesta posição posso enxergar as pedras grandes e
milenares organizadas pela montagem natural; o céu se mostra com a liberdade
mais plena já vista; as flores miúdas, mas de hastes longas, se dobram e nunca
se debatem com o vento; por isso vivem até o dia previsto de vida, elas são
muito sábias; as árvores, pelo espaço subterrâneo, conquistam a fortaleza para
suas raízes e tornam-se fortes e saudáveis senhoras seculares; a nascente, que
dá vida ao grande rio mais à frente, inicialmente, é modesta, discreta em sua
grandeza, que traz o néctar da manutenção da existência, pois para o Planeta a
água é vital, imprescindível para a sua continuidade.
Ainda quero relatar o horizonte
tão infinito aos olhos e tão conquistador à alma, pois quando esta estiver
espírito comprovará a eternidade que nada mais é que o infinito. Também vejo os
pássaros, felizes, cantando em agradecimento à força divina; a natureza em sua
completude é uma excelente educadora, nós é que talvez sejamos ainda alunos
insipientes na lição do valor à vida.
Aprendi, com os dias vividos,
que mais temos a doar e bem menos a guardar; no entanto, normalmente nos
apegamos a tanto e tão pouco somos capazes de passar adiante o que, na verdade,
somente nos foi ofertado... emprestado e não passado a nós como posse
definitiva.
Percebi que se podem criar
vários sábados durante a semana, não para relaxar do trabalho, mas para
compartilhar mais tempo com a família e realizar o que nos acalenta o coração;
constatei que a palavra escrita no momento de grande emoção é capaz de nos
reequilibrar e nos restaurar para o desfecho a construir, como desabafo
escrito.
Sentada, ontem à noite, na
poltrona da sala, quase concluindo um dos contos para a formação de mais um
livro que será encaminhado à editora, atentei-me aos poucos objetos daquele
cômodo; mais espaço, menos obstáculos para a boa energia circular. Senti-me
feliz. Na verdade, de tão pouco necessitamos para viver com plenitude! Será
fardo ou presente o que escolhermos carregar.
Balancei-me levemente na
cadeira.
Veja! A coruja, que sempre me
visita à mesma hora diária, chegou. E como gosto dessa amiga vespertina, quase
noturna – pelo horário em que sempre aparece, entre as cinco da tarde até as
seis e meia. Ela pousa sempre na borda branca da cerca que contorna a varanda.
Com seus olhos compenetrados olha nos meus, querendo saudar-me. Amiga de longa
data. E logo vai. E eu fico.
Ernesta me trouxe a xícara de
café com leite... sempre às cinco e quarenta. Há dias que a xícara vem
acompanhada de alguns mantecais(1), ou pãezinhos de queijo, ou
alguma bolacha salgada integral. É sempre bom esse momento. Mas Ernesta não me
acompanha na refeição; sempre diz que já lanchou na cozinha mesmo. Então, se
queres um amigo, não o censures, compreende-o e aceita-o, a não ser que a
atitude seja de prejuízo próprio ou para terceiros.
E neste sábado vieram mantecais;
eles me trazem à recordação minha infância de quando eu e meus irmãos maiores
comíamos com ardente jovialidade todos os mantecais que mamãe nos servia após
as aulas da tarde. Essas aulas nos ensinaram muito, pois eram ministradas pela
senhora Ingrid Thompson, inglesa com descendência francesa, apaixonada pela
história do mundo; era dona de um vasto conhecimento.
Senhora Ingrid sempre nos
ensinou que a grandeza não era só obter tão incontável cognição, mas,
principalmente, compartilhá-la com pessoas que nos participam um pouco ou a
vida toda. Explicava-nos que o que assimilávamos sempre seria nosso e nunca o
perderíamos, se o compartilhássemos com o companheiro do momento na jornada
eterna.
De um instante a outro, a
lembrança trouxe-me a imagem do meu jovem falecido esposo, homem de tanta
bondade e ternura. Ele era incapaz de lançar uma saudação friamente a quem quer
que fosse; aprendi demais nos quatro anos de casamento. Sempre me dizia: “Dê
atenção ao próximo como se fosse a mais amada pessoa da sua vida”.
Foi a partir dessas palavras que
me dei conta de que o outro simplesmente é a extensão da vida na qual estou
inserida.
Edgard, quanto aprendi e quanto
sinto a falta de seu olhar!... doce olhar!
É incrível como é rápida a
junção dos pensamentos em nossa mente.
Logo me veio à tona a época na
qual iniciei o magistério – aulas gramaticais.
Penso ser bastante remota a
dificuldade de aprendizado das estruturas gramaticais de um idioma, mas como a
maior parte da sala labutava para assimilar o conteúdo! A maioria deles
entendia superficialmente; eram poucos os que dominavam as regras e sua
aplicação; na verdade, somos tantos e estamos em patamares tão diferenciados!
Por mais que comparemos não há uma pessoa sequer participando igualitariamente
do momento na vida; podemos estar no mesmo lugar com muitas outras, mas o
universo íntimo é estritamente individual.
E eu adorei cada aluno que por
mim passou. Mesmo que tenha sido há tanto tempo, recordo-me, muitas vezes, de
Sébastien, tão educado aluno francês; o bem iluminava os seus olhos.
Tomei mais um gole do café com
leite e peguei mais um mantecal.
Quantas recordações! Quantas
ações vividas!
Depois me veio a satisfação da
escrita. Desde a minha infância, escrevi poemas, poesias, letras de música
tentando pôr melodia sem conhecer o mínimo necessário da maravilhosa arte
musical; cada vez que eu cantarolava a canção, entoava um ritmo inédito...
coisas da vida.
Entretanto, os anos me deram
muito gosto pelas narrativas mais breves como o conto e a crônica. Impus-me uma
regra para a minha literatura: escrever sobre a vida, a nobreza de se viver...
de receber esse tão magnânimo presente.
Dessa decisão, surgiram vinte livros,
todos editados pela mesma editora. Talvez tenha sido oportunidade, simplesmente
isso.
Tomei mais um gole para ajudar a
empurrar o último mantecal.
Realmente a vida passa... e
rápido, mas a colheita dos frutos é que se torna importante.
E, graças a Deus, sentada aqui,
quantifico bem mais numerosas as felizes recordações. No entanto, houve um
número razoável de incorreções... essas se transformaram em exemplos a não
serem repetidos... mas... ainda uma vez ou outra reincido... e olhe... que me
vigio! Percebi, naquela hora, que não havia mais nenhum vestígio dos raios
solares. Ernesta já acendera a luz da varanda e agora mesmo me convidou para
entrar. Vamos terminar o vigésimo primeiro livro, a maioridade na literatura. Então
me recordo de que amanhã farei oitenta e oito anos.
Entrei. A luz da varanda ficou
acesa, significando que não estava aparente, mas que havia moradores na casa. É
assim para o corpo, não se sabe qual alma está acoplada ao físico, no entanto
há centelha divina animando a matéria.
“Cada alma possui um caminho a
trilhar;
cada espírito terá a liberdade
ou a clausura;
cada ser conquista seu
livre-arbítrio;
cada um pode ser protagonista ou
coadjuvante de sua própria história;
cada um será o que de verdade
quer ser.”
Essas foram as frases finais do
meu vigésimo primeiro livro.
E Ernesta, sentada ao meu lado,
finalizou salvando mais um documento no computador, intitulado: “As sombras que
impreterivelmente serão luzes”.
Pela manhã será enviado à
editora.
(1) Mantecais
são biscoitinhos que derretem na boca. Veja como fazê-los em http://www.mosaicodereceitas.com/2013/02/mantecal-biscoitinhos-que-derretem-na.html
Visite o blog Conto, crônica, poesia… minha literatura: http://contoecronica.wordpress.com/
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