sábado, 18 de março de 2017

Contos e crônicas


Longe de tudo. Perto das estrelas

JORGE LEITE DE OLIVEIRA
jojorgeleite@gmail.com
De Brasília-DF

Dia destes, conversando com meu mestre Machado, que agora se recusa tratar-me como seu secretário, e sim como amigo, ouvi dele a explicação de que, muitas vezes, foi considerado injustamente, pela crítica, como absenteísta. Repeli veementemente aquela imerecida distinção, mas tal foi sua insistência que, muito constrangido, disse-lhe o seguinte:
— Machado, sinto-me ainda a anos-luz de tão relevante distinção... Segundo o Espírito Emmanuel, precisamos de duas asas para irmos a Deus:
Uma chama-se amor; a outra, sabedoria. Pelo amor, que, acima de tudo, é serviço ao semelhante, a criatura se ilumina e aformoseia por dentro, emitindo em favor dos outros o reflexo de suas virtudes; e pela sabedoria, que começa na aquisição do conhecimento, recolhe a influência dos vanguardeiros do progresso, que lhes comunicam os reflexos da própria grandeza, impelindo-a ao Alto (XAVIER, 2016, cap. 4).
Em resposta, ouvi do Bruxo a seguinte reflexão:
— Podemos também simbolizar modernamente, no avião, o corpo e, no Espírito, o piloto. Essa “ave metálica”, assim como necessita das asas do amor e da sabedoria, também requer o motor da vontade e o combustível da humildade para elevar-se acima dos píncaros. Continue simples, e jamais me afastarei de você.
— É verdade, concluí. Vontade e humildade impulsionam o amor e a sabedoria. Somente assim, o Espírito terá forças suficientes para superar a horizontalidade da matéria pela verticalidade do anjo, quando então estará em condições de “ver Deus”. Mas, responda-me agora: onde podemos identificar, em sua obra, provas incontestes do seu empenho em favor da causa abolicionista?
— Cito apenas dois exemplos: em meus trabalhos nos Ministérios sempre que esteve em pauta o direito de qualquer negro e sua família, manifestei-me favoravelmente a estes; e, dias após a chamada Lei Áurea, ironizei em crônica a hipocrisia do homem branco em relação ao negro alforriado. Releia minha crônica de 19 de maio de 1988, publicada no jornal Gazeta de Notícias. É, principalmente, nas minhas crônicas que você encontrará a “fina ironia” deste neto de escravos sobre o tratamento desumano e humilhante sofrido por minha etnia no Brasil.
— E na política, onde você se fez presente?
— Não somente nos romances, como em diversas crônicas e em alguns contos... Leia, amigo, leia muito! Afinal, para que lhe servem mil obras em suas estantes?
Antes de despedir-se com um afetuoso piparote em minha orelha esquerda, arrematou:
— O amor precisa transcender o apelo das paixões e fraquezas materiais; a sabedoria precisa exercitar a caridade sob o impulso do motor da vontade; mas o sublime combustível que nos permitirá a subida é a humildade, sem a qual podemos despencar das alturas.
Agradeci-lhe as sábias palavras e prometi-lhe meu esforço em continuar sendo-lhe fiel servidor.
Ao afastar-se, ele sorriu-me, generoso como sempre, e lembrou-me, ainda, estes versos do poeta Cruz e Sousa: “[...] as almas irmãs, almas perfeitas,/ Hão de trocar, nas Regiões eleitas,/ Largos profundos, imortais abraços!”
E eu ali estupefato e mudo:
Ainda plano longe desses laços!
Perto das estrelas. Longe de tudo!

Referências:
XAVIER, Francisco Cândido. Pensamento e vida. Pelo Espírito Emmanuel. 19. ed. 4. imp. Brasília: FEB, 2016, cap. 4, p. 19.
SOUZA, Cruz e. Poema intitulado Longe de tudo.

Obs.: as referências a Machado de Assis, em todas as nossas crônicas, são puramente fictícias, salvo quando se trata de fatos notórios.






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