Irmão
X (Espírito)
Quando Euclides Brandão desencarnou,
aguardava imediato ingresso ao paraíso.
Vivera de Bíblia na mão, consultando textos
diversos. Declarava sempre que os dez mandamentos lhe controlavam a vida.
Em pensamento, embora quisesse o mundo
inteiro para si, reverenciava a Deus, não lhe pronunciava debalde o santo nome,
observava o descanso dominical, honrava os pais, não matava, não adulterava, não furtava,
não cobiçava, de público, os bens do próximo, não obstante enredar as
circunstâncias em seu favor, quanto lhe era possível, e não se entregava aos
falsos testemunhos.
Por tudo isso, sentia-se
Brandão com direitos líquidos no país da Morte.
Atingindo, porém, o limite,
entre este mundo e o “outro”, em plena alfândega da espiritualidade, o nosso
companheiro surpreendeu-se. Era atendido sem considerações especiais. Naquele
vasto recinto de trabalho seletivo, via-se tratado como consulente vulgar numa
agência de informações.
Chamado a esclarecimentos,
travou-se entre ele e o funcionário da Justiça. Divina interessante diálogo,
depois das saudações espontâneas:
— Não há ordem,
determinando minha transferência definitiva para o Céu? — perguntou,
confiadamente.
O interpelado, com jovial
expressão, observou após inteirar-se, com pormenores, quanto à sua procedência:
— Não foi expedida qualquer
resolução superior nesse sentido. O amigo era cristão?
— Sem dúvida — replicou
Euclides, mordido no amor-próprio —, aceitei Jesus integralmente.
— Aceitou-o e seguiu-o?
— Perfeitamente. Lia-lhe o
testamento dia e noite.
— Lia-o e praticava-o?
— Com a máxima exatidão.
— Retirando, porém, os
benefícios do Evangelho, aproveitava-se dele para renovar-se em Cristo,
revelando-se melhor no aprendizado da sabedoria e da virtude?
Euclides respondeu
afirmativamente. E porque se mostrasse um tanto melindrado com as interrogações,
o fiscal da Esfera superior recomendou-lhe enfileirar alguns dados
autobiográficos, o mais sucintamente possível. Pretendia decifrar o enigma.
Encorajado, Brandão foi
claro e breve.
— Eu — disse ele,
demonstrando o gosto de exprimir-se invariavelmente na primeira pessoa — fui um
homem justo na Terra. Sempre guardei cuidado em preservar esta característica
de minha personalidade. Se recebia dos outros bondade e respeito, pagava com
moedas iguais. Aos que me agradavam, aquinhoei com as vantagens suscetíveis de
serem articuladas com a minha influência. Tanto assim que deixei meus haveres a
quantos me souberam conquistar simpatia. A todos, porém, que me fizeram mal,
retribuí conforme propunham. Nunca tive inclinação para ajudar malfeitores,
porque para eles não há suficientes grades no mundo. Quando molestado pelos
maus, sabia conjugar o verbo corrigir e, se me incomodavam duramente, punia-os
com aspereza. Corda e ferro não podem ser esquecidos na melhoria dos homens. Em
sendo perseguido, jamais permiti que os amigos me tomassem dianteira na
desforra. Não me calava ante qualquer desafio; por isso, se era convidado a
contender, competia-me ganhar as demandas. Pisado pelos outros, dava o troco,
de conformidade com as circunstâncias em que recebia as ofensas. Nunca perdi
tempo, ensinando a delinquentes e vagabundos o que não desejavam aprender, e,
se às pessoas nobres tratei com generosidade, ofereci aos desonrados a repulsa
que mereciam. Quando recebido a flores, improvisava um jardim aos que me
favorecessem; mas, se era surpreendido com as pedradas, respondia com uma chuva
de pedras.
Fez longa pausa e acentuou:
— Não suponha que exerci a
justiça com facilidade. Ao homem de minha estirpe, que procura ser equilibrado
e cristão, muito ingrata é a experiência terrestre.
Estampou engraçada
expressão fisionômica e ajuntou:
— Segundo vê, minhas
reclamações são oportunas. Se o paraíso não estiver aberto para mim, que andei
de Bíblia nas mãos…
O funcionário celeste,
bem-humorado, interveio para esclarecer:
— O Plano Superior não lhe
cerrará a passagem, conquanto, Brandão, a sua justiça não haja conhecido a
misericórdia…
— Oh! mas nunca assumi
compromissos sem consultar os sagrados textos!…
— Sim — disse o sábio
interlocutor —, você chegou até Moisés. Voltará naturalmente ao corpo de carne,
a fim de prosseguir o aprendizado com Jesus-Cristo.
E, sorridente, acrescentou:
— Seu curso está com um
atraso de mil e novecentos anos…
Foi ao ouvir este
esclarecimento que Euclides baixou a cabeça e calou-se, como quem se dispunha a
refletir…
Do livro Luz acima,
obra psicografada pelo médium Francisco Cândido Xavier.
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