terça-feira, 21 de março de 2017

Contos e crônicas


O pôr do sol da mesma montanha

CÍNTHIA CORTEGOSO
cinthiacortegoso@gmail.com
De Londrina-PR

Tomás era um jovem de poucos amigos, mais por sua timidez que por alguma outra característica insociável. Tinha formação profissional e já trabalhava. Acabara de completar vinte e três anos e morava em uma pequena cidade no sul da Itália, o mesmo lugar onde nascera.
Era bem visto, principalmente pelos mais velhos, devido à disciplina e empenho que demonstrava com os estudos e com o trabalho, isso desde criança.
Todos os dias ao fim da tarde quando voltava do “lavoro”, Tomás não resistia ao encanto da “Montanha dos Sentimentos”, como era conhecida aquela montanha. Era encantada, pois ao assistir ao pôr do sol por detrás dela era como se a mente mergulhasse em emoções, em lembranças que, muitas vezes, não se podiam compreender os acontecimentos nem o tempo no qual ocorreram, porém, um sentimento bastante profundo era sentido nessas ocasiões. Mas nem todas as pessoas da cidade reconheciam ou admitiam esse fato. E o jovem, todos os dias, sentia essa emoção a caminho de casa.
Ultimamente, o sentimento se tornara mais intenso e Tomás necessitou buscar alguma explicação.
Na pequena cidade, havia uma livraria que fora passada de geração; única família detinha esse ramo desde há mais de um século. E foi para lá que o jovem, no sábado de manhã, se encaminhou. Precisava encontrar respostas para as emoções que o visitavam quando estava de frente para a montanha assistindo ao pôr do sol.
Entrou na bela livraria; não havia muita modernidade, mas o estilo clássico bastava, realmente muito aconchegante e acolhedor. Passou os olhos pelos livros expostos, era difícil procurar o que ainda não tinha ideia do que poderia ser. Até que a jovem vendedora veio atendê-lo.
‒ Bom dia, precisa de ajuda? ‒ a simpática jovem perguntou.
‒ Bom dia... preciso, sim ‒ ele respondeu rapidamente.
‒ Procura por algum assunto específico?
‒ Não sei lhe dizer o assunto específico, mas penso que posso começar lhe explicando o que acontece ‒ ele respondeu.
‒ Pois, não ‒ a jovem falou e deu um sorriso achando graça pela resposta.
Um pouco sem jeito, ele começou a explicação sobre o que lhe acontecia quando passava, ao fim da tarde, em frente à Montanha dos Sentimentos.
A jovem vendedora ouvia, com os olhos sorrindo, o rapaz, por sentir sua sensibilidade e também por ter ouvido a mesma história relatada por outras pessoas, porém, sem a intensidade com que Tomás lhe contava.
Ele, um pouco tímido, encerrou sua explanação, aguardando o que a jovem poderia lhe indicar para leitura e também se ela faria alguma consideração acerca do relato. Ela sorriu e lhe pediu:
‒ Por favor, acompanhe-me.
A jovem vendedora caminhou uns dez passos para o interior da livraria e chegou à seção de livros, considerados por alguns leitores daquela cidade, sobrenaturais.
Antes de escolher o indicado livro, ela olhou para o rapaz para saber sua reação, pois havia uma plaqueta para cada seção indicando a categoria pertencente dos livros; essa plaqueta estava intitulada com a discriminação com que alguns leitores consideravam o enredo desses livros: sobrenaturais.
Ele olhou, com surpresa, mas manteve o olhar mais interessado que surpreso. Ela passou os olhos pelo número expressivo desses livros e sorriu quando encontrou o que procurava.
‒ Aqui está ‒ ela falou e passou o livro ao rapaz.
Tomás o pegou, com delicadeza, observou a capa que, aliás, era uma bela fotografia de flores, diferentes, das que normalmente se viam nos jardins das casas da pequenina cidade italiana.
Agradeceu à jovem vendedora e depois de pagar o livro foi para casa, queria logo começar a leitura a qual lhe poderia esclarecer a questão que o acompanhava.
Chegando a casa, fez, com pressa, algumas tarefas de organização e limpeza domésticas ‒ era sábado, o dia escolhido para essas atividades ‒ para rapidamente começar a leitura do livro que poderia trazer respostas para as perguntas sobre os sentimentos em relação à montanha e ao pôr do sol.
Pegou um copo de água e o livro, encaminhou-se para a poltrona da sala simples. Sentou-se, bebeu um gole de água, colocou o copo sobre uma pequenina mesa ao lado de onde estava, respirou fundo. A expectativa era grande. Olhou para a capa e leu o título, “Existências”, e o subtítulo, “A continuada caminhada”.
O rapaz ficou alguns segundinhos olhando para o livro, mas seu coração, muito desejoso, de respostas. E fez o primeiro movimento para abri-lo e começar sua leitura. Leu as primeiras informações e verificou que era a vigésima edição; sua expectativa ainda aumentou. Leu o índice; era tudo novidade, mas sentia, ao mesmo tempo, uma retomada a algo, a algum tempo... local. Então, começou.
Não era longo demais, o livro continha cerca de duzentas páginas, mas o número diminuía se dispensassem as páginas de informações sobre o autor entre outros esclarecimentos que, normalmente, os livros possuem.
A cada mudança de capítulo, Tomás respirava fundo e mais compreendia. “Como este livro está me respondendo tantas questões!”, pensava ele. Ainda se recordava da jovem vendedora da livraria e sorria.
As horas passavam, porém, era como se o tempo inexistisse, somente a leitura... preciosas informações, nada mais.
Quando, crucialmente, Tomás lera a passagem sobre o eterno e profundo amor que, mesmo em dimensões diferentes, os espíritos, de uma forma geral, sentem e os encarnados ainda podem trazer uma saudade inexplicável de lugares e de outros companheiros, definitivamente, o rapaz se identificou e mais lia ininterruptamente as frases, os períodos, os parágrafos e virava as páginas. Os olhos do rapaz estavam brilhosos e concentrados nas palavras esclarecedoras.
E seu coração mais se sensibilizava e lembranças, como flashes de luz, saltavam à sua mente. Primeiro vieram imagens mais generalizadas sem detalhes que pudessem identificar coisas, lugares ou pessoas. A leitura continuava dinâmica e mais informações lhe eram apresentadas. E outras imagens lhe saltaram à mente, imagens mais nítidas, mais familiarizadas; ele começou a sentir uma emoção intensa e comovente.
A cena com maior clareza foi quando o rapaz viu num quintal simples numa região parecida com a atual. Havia sua mãe e seu pai, alguns avós, irmãos menores e outros com emancipação natural pela idade. Estavam felizes.
Os olhos de Tomás se encheram de lágrima, pois o jovem passou a identificar as pessoas que se apresentavam em sua lembrança. Acervo da alma.
Identificou, pelo olhar, uma de suas irmãs que fora a mãe que há poucos meses falecera; o pai tinha os mesmos olhos do irmão mais novo de agora que morava em outra cidade; uma das avós tinha o doce olhar da irmã mais velha que partira em decorrência de uma inexplicável doença. E a montanha, como em flashes brilhantes, sempre aparecia durante a revelação. Outros momentos foram resgatados pela lembrança permitida, até que se viu de frente para a montanha e o dourado do pôr do sol iluminava a paisagem. Observou toda a imagem e o desejo era compreender essa emoção cotidiana do fim de tarde. Quando, com a mais decidida persistência, viu um casal jovem, deitado, observando os raios de sol se esconderem atrás da enorme montanha. Firmou seu olhar para identificar quem poderia formar o casal. Seu coração começou a disparar. Com esforço conseguiu ver os olhos dos dois jovens. Com a liberação de toda aquela surpresa, o coração não sabia mais pulsar galopava querendo voltar ao momento de tão profundo amor.
Os olhos do rapaz eram os mesmos de Tomás e os da jovem moça brilhavam com a mesma intensidade que os da atenciosa vendedora da livraria que lhe indicara o livro. E compreendeu que em todos os fins de tarde o apaixonado casal fortalecia a verdadeira jura com as seguintes palavras: “Te digo que já és parte de mim e que respiras pelo meu suspiro, que vês pelos meus olhos, e que pulsas em meu coração”.
Espíritos ligados pelo tão profundo e real amor podem trazer consigo as impressões vivenciadas, o sentimento amoroso e a eterna saudade de quem já foi um dia seu bem-querer.
   
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