segunda-feira, 2 de dezembro de 2024

 



A escolha do Senhor

 

Irmão X (Espírito)

 

Conta-se que alguns apóstolos do bem tanto se ergueram na virtude que, pela extrema sublimação de suas almas, conseguiram atingir o limiar do Santuário Resplendente do Cristo.

Voltariam ao mundo, no prosseguimento da obra de amor em que se entrosavam, no entanto, convocados pelos poderes angélicos, poderiam excursionar felizes pelas vizinhanças do Lar Divino.

Bem-aventurados pela glória e pela bondade, constituíam provisoriamente no Céu toda uma assembleia de beleza e sabedoria.

Missionários ocidentais ostentavam dalmáticas imponentes, lembrando as instituições religiosas a que haviam pertencido, enquanto que os santos do Oriente exibiam túnicas liriais. Veneráveis sacerdotes das igrejas católicas e protestantes confundiam-se com patriarcas judeus e budistas. Admiráveis seguidores de Confúcio e insignes devotos de Maomé entendiam-se uns com os outros.

Muito acima das interpretações humanas, tendentes à discórdia, alcançavam, enfim, a suprema união na esfera dos princípios.

Exornava-se cada um com a mensagem simbólica dos templos que haviam representado. Anéis, cruzes, báculos, auréolas, colares, medalhas e outras insígnias preciosas destacavam-se do linho e da púrpura, da seda e do ouro, faiscando ao sol em que se banhavam.

Entretanto, um deles destoava do brilhante conjunto.

Era um antigo servidor do deserto que não se filiara a igreja alguma. Ibraim Al-Mandeb fora apenas devotado irmão dos infelizes que vagueavam nas planícies arenosas da Arábia. Não possuía qualquer sinal que o recomendasse ao respeito e à consideração. Trazia os pés descalços, em chaga e pó. Na veste rota, mostrava as manchas sanguinolentas das crianças feridas que havia conchegado de encontro ao peito. As mãos magras e hirsutas pareciam forradas em couro de camelo, tão calejadas se achavam no rude trabalho de assistência aos viajantes perdidos. Os cabelos grisalhos e imundos falavam de longas peregrinações sob a tempestade, e o rosto enrugado e rijo era a pesada moldura de dois olhos belos e lúcidos, mas encovados e tristes, guardando pavorosas visões das dores alheias que ele havia socorrido, abnegado e atento.

Isolado no festim, o ancião notou que dois anjos examinavam a assembleia, fazendo anotações num pergaminho celestial.

Depois de analisarem todos os circunstantes, um por um, abeiraram-se dele, estranhando-lhe a desagradável presença.

— Amigo — interrogou um dos emissários —, a que igreja pertenceste na Terra?

— Para que a pergunta? — inquiriu o forasteiro com humildade.

— O Senhor deseja entender-se com um dos visitantes do Lar Divino e estamos relacionando, por ordem, os nomes daqueles que mais profundamente o amaram no mundo…

— Não se preocupem então comigo! — clamou o anônimo beduíno. — Nunca pude consagrar-me ao culto do Senhor e sinceramente ignoro por que razão fui guindado até aqui, quando não posso ter lugar entre os eleitos da fé.

— Que fizeste entre os homens?

— Que o Senhor me perdoe a ingratidão e a dureza — suspirou o velhinho —, mas o sofrimento de meus irmãos não me deu oportunidade de pensar nele… Nunca pude refletir na sublimidade do Paraíso, porque o deserto estava cheio de aflição e lágrimas!…

Vendo que o estranho peregrino prorrompera em pranto, o anjo que se mantivera silencioso opinou, compreensivo:

— Em verdade, não podemos situar-te na relação dos que amaram o Benfeitor Eterno, mas colocaremos teu nome no pergaminho, como alguém que amou imensamente os semelhantes.

O ancião, mergulhando a cabeça nas mãos ossudas, soluçou reconhecido, enquanto os companheiros presentes comentavam o estranho procedimento daquele que fizera bem sem se lembrar sequer da existência de Deus. Contudo, depois de longos minutos de expectação, vasto grupo de mensageiros divinos penetrou o átrio engalanado de flores, em cânticos de júbilo, trazendo larga faixa com um nome grafado em caracteres de luz.

Era o nome do velho Ibraim Al-Mandeb. Pretendia o Senhor conversar com ele.

 

 

Do livro Contos e apólogos, obra psicografada pelo médium Francisco Cândido Xavier.

 

 

 

 

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