Sempre que somos alvo de uma ingratidão ou de um ato
qualquer de animosidade, a dificuldade em aceitar o fato aumenta muito quando
vemos no outro lado a pessoa de alguém que conhece a doutrina espírita e se diz
adepto dela.
Perguntamo-nos, então, com certa frequência: - Por que é
tão difícil a um indivíduo assimilar os princípios espíritas e incorporá-los
aos atos comuns de sua vida?
Essa dificuldade foi objeto na obra de Kardec de oportuno
esclarecimento dado por um guia espiritual que atuou junto de uma médium no
socorro a um Espírito de nome Xumène.
Eis as palavras que o instrutor espiritual dirigiu à
médium:
“Filha,
terás muito trabalho com este Espírito endurecido, mas o maior mérito não advém
de salvar os não perdidos. Coragem, perseverança, e triunfarás afinal. Não há
culpados que se não possam regenerar por meio da persuasão e do exemplo, visto
como os Espíritos, por mais perversos, acabam por corrigir-se com o tempo. O
fato de muitas vezes ser impossível regenerá-los prontamente, não importa na
inutilidade de tais esforços. Mesmo a contragosto, as ideias sugeridas a tais
Espíritos fazem-nos refletir. São como sementes que, cedo ou tarde, tivessem de
frutificar. Não se arrebenta a pedra com a primeira marretada.
“Isto que te digo pode aplicar-se também aos
encarnados e tu deves compreender a razão por que o Espiritismo não faz
imediatamente homens perfeitos, mesmo entre os adeptos mais crentes. A crença é
o primeiro passo; vindo em seguida a fé e a transformação a seu turno; mas,
além disso, preciso é que muitos venham revigorar-se no mundo espiritual. Entre
os Espíritos endurecidos, não há só perversos e maus. Grande é o número dos
que, sem fazer o mal, estacionam por orgulho, indiferença ou apatia. Estes, nem
por isso, são menos infelizes, pois tanto mais os aflige a inércia quanto mais
se veem privados das mundanas compensações. Intolerável, por certo, se lhes
torna a perspectiva do infinito, porém eles não têm nem a força nem a vontade
para romper com essa situação.” (O Céu e
o Inferno, cap. VII, Espíritos endurecidos - Xumène.)
As palavras acima podem ajudar-nos a compreender a questão
inicialmente proposta.
A crença – diz o instrutor espiritual – é o primeiro passo.
A fé virá depois. Mas a transformação, esse fato que vai caracterizar o
verdadeiro espírita, poderá vir bem mais tarde e, talvez, pode ser que, antes
disso, o indivíduo venha a ‘revigorar-se no mundo espiritual’, isto é, tenha de
passar pelo processo da desencarnação e pelo balanço inerente a esse estágio
fundamental na vida de todos nós.
A dificuldade de transformação não é, pois, algo inerente à
doutrina espírita ou à sua incapacidade de renovar as criaturas, mas diz
respeito tão-somente ao grau evolutivo das pessoas que, em dado momento da
existência, se encontram com a verdade.
Os fatos revelam, no entanto, que a ação transformadora do
Espiritismo pode dar-se no curso de uma mesma existência, sem necessidade de
que a pessoa, para se transformar, tenha de atravessar os umbrais da morte.
Hilário Silva conta-nos a respeito um caso muito curioso,
por ele intitulado A confissão do zelador,
que o leitor pode ler no livro Almas em
Desfile, 2ª Parte, cap. 21, psicografado por Francisco Cândido Xavier.
A história envolve um homem que buscou no Espiritismo a paz
que ele havia perdido desde que, cinco anos antes, encontrou o cadáver de um
amigo – Fulgêncio de Abreu – no cantinho de um bar que ambos frequentavam. O
corpo estava de costas no piso. O rapaz fora asfixiado por fina corda depois de
haver recebido forte pancada no crânio.
Acusado pelo crime que não cometeu, sofreu ele pesadas
humilhações na polícia, mas, mesmo em liberdade, não conseguia tirar da mente o
quadro do amigo morto. Em toda parte via a testa, os lábios, os olhos
esbugalhados, o colar de sangue... Mais tarde, descobriu-se que o homicídio
envolvia um caso de mulher, mas a vida dele continuou um caos, porque não
comia, não dormia e permanecia agarrado à impressão do lamentável episódio.
Conduzido por um amigo a uma Casa Espírita, as coisas
foram, aos poucos, se normalizando. As reuniões de estudo, as palestras, os
passes, o auxílio ao próximo lhe restituíram a paz e tornaram-no uma nova
pessoa, um homem transformado, dedicado ao trabalho e espírita convicto.
Quanto ao autor da morte de Fulgêncio, o conhecimento do
Espiritismo exerceu também importante papel, que não relataremos aqui para não
tirar do leitor o delicioso prazer de saber desse desfecho indo diretamente à
fonte.
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