Grande
cabeça
Irmão X (Espírito)
O Dr. Abelardo Tourinho
era, indiscutivelmente, verdadeira águia de inteligência.
Advogado de renome, não
conhecia derrotas. Sua palavra sugestiva, nos grandes processos, tocava-se de
maravilhosa expressão de magnetismo pessoal. Seus pareceres denunciavam apurada
cultura.
Qual cientista isolado
no laboratório para descobrir uma combinação química, Abelardo se mantinha,
horas e horas, no gabinete particular, surpreendendo as colisões das leis
humanas entre si.
Não obstante o talento
privilegiado, caracterizava-se, contudo, por traço lamentável. Não vacilava na
defesa do mal, diante do dinheiro. Se o cliente prometia pagamento farto, o
causídico torturava decretos, ladeava artigos, forçava interpretações e acabava
em triunfo espetacular.
Chamavam-lhe “grande
cabeça” nos círculos de convivência comum.
Temiam-no os colegas de
carreira, que lhe não regateavam respeito e consideração.
Penetrando o “forum”,
provocava movimentos de singular interesse. Retraíam-se os companheiros,
enquanto os serventuários se atropelavam a fim de atendê-lo no que desejasse.
O Doutor Abelardo era
sempre requisitado a serviços inadiáveis, em razão da nomeada fulgurante. Devia
ser ouvido antes dos outros.
Muita vez, foi convidado
a atuar, em posição destacada, nas esferas político-administrativas;
entretanto, esquivava-se, maneiroso. Que representavam as singelas gratificações
dum deputado, em confronto com os honorários que lhe cabiam? verdadeiras
bagatelas. Seus clientes escorcháveis eram sempre numerosos. Sua banca era
frequentada por avarentos transformados em sanguessugas do povo, por
negociantes inescrupulosos ou por criminosos da vida econômica, detentores de
importante ficha bancária.
Abelardo nunca foi visto
lutando em causa humilde, defendendo os fracos contra os poderosos, amparando
infortunados contra os favorecidos da sorte. Afirmavam não se interessar em questões
pequenas.
— Grande cabeça! —
asseveravam todos os conhecidos, sem restrições.
Alguém havia, porém, que
acompanhava o grande intérprete da lei, sem elogios precipitados. Era sua mãe,
nobre velhinha cristã, que o alertava, de quando em quando, com sinceridade e
amor.
— Abelardo, meu filho —
costumava dizer-lhe, prudentemente —, não te descuides na missão do Direito.
Não admitas que a ideia de ganho te avassale as cogitações. Creio que a tarefa
da justiça terrestre é muito delicada, além de profundamente complexa. Ser
advogado, quanto ser juiz, é difícil ministério da consciência. Por vezes,
observo-te as inquietações na defesa dos clientes ricos e guardo apreensões
justas. Não te impressiones pelo dinheiro, meu filho! Repara, sobretudo, o
dever cristão e o bem a praticar. Sinto falta dos humildes, em derredor de teu
nome. Ouço os aplausos de teus colegas e conheço a estima que desfrutas, no
seio das classes abastadas, mas ainda não vi, em teu círculo, os amigos
apagados de que Jesus se cercava sempre. Nunca pensaste, Abelardo, que o Mestre
Divino foi advogado da mulher infeliz e que, na própria cruz, foi ardoroso
defensor dum ladrão arrependido? Creio que o teu apostolado é também santo…
O eminente homem da
legalidade meneava a cabeça, em sinal de desacordo, e respondia:
— Mãezinha, os tempos
são outros. Devo preservar as conquistas efetuadas. Não posso, por isso,
satisfazer-lhe as sugestões. Compreende a senhora que o advogado de renome
necessita clientela à altura. Aliás, não desprezo os mais fracos. Tenho meu
gabinete vasto, onde dou serviço a companheiros iniciantes, junto aos quais os
menos favorecidos do campo social encontram os recursos que reclamam…
— Oh! meu filho —
retrucava a senhora Tourinho, afetuosa —, estimaria tanto ver-te a sementeira
evangélica!…
O advogado
interceptava-lhe as observações, sentenciando:
— A senhora, porém,
necessita compreender que não sou ministro religioso. Não devo ligar-me a
preceituação estranha ao Direito. E é tão escasso o tempo para a leitura e
análise dos códigos que me não sobra ensejo para estudos do Evangelho. Ao
demais — e fazia um gesto irônico —, que seria de meus filhos e de mim mesmo se
apenas me rodeasse de pobretões? Seria o fim da carreira e a bancarrota geral.
A genitora discutia,
amorosa, fazendo-lhe sentir a beleza dos ensinamentos cristãos, mas Abelardo,
que se habituara aos conceitos elogiosos de toda gente, não se curvava às
advertências maternas, conservando mordaz sorriso ao canto da boca.
Se ele fosse amigo
sincero dos afortunados da vida, personificando um conselheiro caridoso, nenhum
delito lhe assinalaria a atitude individual; no entanto, o causídico famoso
abeirava-se dos abastados, explorando-lhes as paixões e agravando-lhes o
desequilíbrio da mente desregrada. Em suma, queria dinheiro fácil, anestesiando
a consciência de qualquer modo. Iludira-se com a opinião pública que o
considerava “grande cabeça” e colocou todas as possibilidades de sua vigorosa
inteligência a serviço das aquisições menos dignas.
A experiência terrestre,
contudo, foi passando, devagar, como quem não sentia pressa em revelar a
eternidade da Vida Infinita.
A Senhora Tourinho
regressou à espiritualidade, muito antes do filho, persistindo, entretanto, na
mesma dedicação, inspirando-o e ajudando-o, através do pensamento.
Abelardo, todavia,
jamais cedeu. Sentia-se a suprema cabeça em seu círculo, com a última palavra
nos assuntos legais.
E foi assim que a morte
o recolheu, envolvido em extensa rede de compromissos.
Muito tarde, compreendeu
o antigo lidador do Direito as tortuosidades perigosas que traçara para si
mesmo. Muito sofreu e chorou nos caminhos novos.
Não conseguia
levantar-se; achava-se caído, na expressão literal.
Crescera-lhe a cabeça
enormemente, subtraindo-lhe a posição de equilíbrio normal. Colara-se à terra,
entontecido e frequentemente atormentado pelas vítimas ignorantes e sofredoras.
A devotada mãezinha
visitava-o, variadas vezes, administrando os socorros ao seu alcance. Os anos,
no entanto, deslizavam rápidos, sem que a Senhora Tourinho lograsse resultados
animadores.
Prosseguia o penitente,
na mesma situação de imobilidade, deformação e sofrimento. Reparando, certa
feita, a ineficácia de seus carinhos, trouxe um elevado orientador de almas à
paisagem escura. Pretendia um parecer, a fim de reformar diretrizes de ação.
O prestimoso amigo
examinou o paciente, registrou-lhe as pesadas vibrações mentais, pensou, pensou
e dirigiu-se à abnegada mãe, compadecido:
— Minha irmã, o nosso
amigo padece de inchação da inteligência pelos crimes cometidos com as armas
intelectuais. Seus órgãos da ideia foram atacados pela hipertrofia de amor-próprio.
Ao que vejo, a única medida capaz de lhe apressar a cura é a hidrocefalia no
corpo terrestre.
A nobre genitora chorou
amargurada, mas não havia remédio senão conformar-se. E, daí a algum tempo,
pela inesgotável bondade do Cristo, Abelardo Tourinho podia ser identificado
por amigos espirituais numa desventurada criança do mundo, colada a triste
carrinho de rodas, apresentando um crânio terrivelmente disforme, para curar os
desvarios da “grande cabeça”.
Do livro Pontos e Contos, obra mediúnica psicografada
pelo médium Francisco Cândido Xavier.
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