sábado, 18 de maio de 2019




Uma carona surreal

JORGE LEITE DE OLIVEIRA
jojorgeleite@gmail.com
De Brasília-DF

Havíamos terminado uma de nossas corridas no maior parque urbano do mundo, ou seja, no Parque da Cidade de Brasília, quando encontramos um velho amigo, chamado Resus, que também gosta de correr ali. Após os cumprimentos iniciais, fomos tomar uma água de coco, num dos quiosques do parque, e conversar um pouco sobre os benefícios da corrida, que tanto nos apraz. Em seguida, ele narrou-me a seguinte história:
— Em minha última corrida aqui, ao me encaminhar para o estacionamento, onde deixara meu carro, deparei-me com uma criatura que parecia ter saído das profundezas do Hades. Era uma anciã negra, esquálida, com aparência de mais de setenta anos. Estava enrolada em trapos e num cobertor antigo de lã, todo puído. Trazia numa das mãos uma garrafa pet com um líquido verde e na outra uma nota dobrada de cinco reais.
Ao nos aproximarmos, perguntou-me:
“Moço, onde fica a rodoviária do Plano Piloto?”
Estávamos muito distantes da rodoviária. Penalizado de sua situação, e como, para chegar ao seu destino, eu apenas precisaria desviar-me cerca de dez minutos de minha rota, respondi-lhe: “Entre no meu carro que eu a deixo lá”.
Disse isso meu amigo. E prosseguiu sua narração:
— Ela parecia jamais ter entrado num automóvel. Foi preciso que eu lhe abrisse a porta e a colocasse sentada no banco da frente. Com certo pudor, ela aceitou minha ajuda.
No trajeto, perguntei-lhe o nome. Falou-me que se chamava Cíntia. Perguntei-lhe também se iria pegar ônibus para sua cidade. Nada respondeu. Dei-me conta de que estava diante duma pessoa bastante perturbada e moradora de rua. Dizia frases desconexas e, a cada momento, perguntava: “Falta muito para chegar?”
Após freada brusca do carro, ela perguntou-me: “Quer me matar?” Respondi-lhe que não, e ela se acalmou. Perguntei-lhe, então, se havia alguém esperando-a... Disse-me, simplesmente, que seus sobrinhos eram consumidores de drogas.
Nesse momento, desconfiei que seu destino final seria a própria rodoviária, em torno da qual alguns mendigos e toxicômanos passam as 24 horas do dia. Embora lhe fosse fácil apoderar-se de algumas moedas que estavam no porta-copos do banco da frente, onde a pusera sentada, em nenhum momento ela fez menção de pegá-las.
Entre um e outro gole do líquido verde de sua garrafa redonda de 500 ml, segurava meu braço e dizia: “Eu tenho medo de polícia. Eu tenho medo de polícia”.
Perguntei-lhe se já fora maltratada pela polícia, e apenas me respondeu que tinha medo de polícia.
Vez por outra, dizia-me: “Sabe quanto custou esse cobertor? Mil e quinhentos reais”. O trapo, quando novo, não custaria mais que uns cinquenta reais...
Pedi-lhe para orar a Deus por mim, que eu faria o mesmo por ela. Foi o mesmo que falar alemão. A impressão que me deu foi a de que jamais ouvira falar em Deus ou em oração...
Por fim, disse-me o amigo Resus, concluindo sua narração:
— Ao chegarmos à antiga rodoviária, como não estava acostumado a entrar ali, acabei parando atrás de vários ônibus, que já estavam para sair. Do outro lado da faixa, bem próximo de nós, havia cerca de seis a oito policiais militares. Ela, embora houvesse dito várias vezes que tinha medo de polícia, não manifestou qualquer temor...
Ao nos verem estacionar ali, os policiais, à frente seu comandante, vieram ao nosso encontro. Pela janela do carro, falei ao gentil chefe da tropa: “Estou deixando esta criatura aqui”. E mostrei-lhe a pobre anciã, envolta em trapos, que já descia do carro.
Ele olhou-nos, sorriu e fez sinal aos seus colegas para seguirem em frente...
Cíntia desceu. Um fiscal de ônibus, que estava ao lado do meu carro, aborrecido, pediu-lhe para sair dali. Ela afastou-se, lentamente, como quem já conhecia o local, mas não sem antes me dizer, com carinho imenso, ao tempo em que segurava seus trapos e trocados, somados aos que lhe dei:
— Vai embora! Vai embora!
— Recomendei-lhe, então: “Cuidado com os ônibus”.
Olhei-a pela última vez, enquanto ela passava sob a luz de um poste. Seus olhos lacrimejavam.
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