sexta-feira, 15 de maio de 2020



O Espiritismo perante a Ciência

Gabriel Delanne

Parte 9

Continuamos o estudo do clássico O Espiritismo perante a Ciência, de Gabriel Delanne, conforme tradução da obra francesa Le Spiritisme devant la Science.
Nosso objetivo é que este estudo possa servir para o leitor como uma forma de iniciação aos chamados Clássicos do Espiritismo.
Cada parte do estudo compõe-se de:
a) questões preliminares;
b) texto para leitura.
As respostas às questões propostas encontram-se no final do texto abaixo. 

Questões preliminares

A. Além do esquecimento de tudo que se passou, que outra faculdade revelam os sonâmbulos?
B. A clarividência dos sonâmbulos, quando próximos do objeto, foi devidamente comprovada pelos fatos?
C. Quanto à clarividência a distância, os fatos são também abundantes?

Texto para leitura

226. O caso seguinte comprova igualmente a insensibilidade dos sonâmbulos. Alguns cirurgiões do “Hôtel Dieu” mudaram de hospital, e um deles, o Dr. Margue, ficou no vasto hospício da Salpêtrière. Em sua nova residência, ocupou-se com o magnetismo e em breve o sonambulismo se manifestou em muitos doentes. Esquirol, de quem já falamos, não se opôs a esses estudos; tolerou, mesmo, que se tornassem públicos: a multidão dos curiosos era grande e os incrédulos numerosos.
227. Renovaram nas pobres mulheres as experiências do “Hôtel Dieu”. Depois, como acreditassem que a dor podia ser suportada, até certo ponto, sem ser manifestada, que se podia sofrer a mais forte queimadura sem mostrar sinal externo, supôs-se que o melhor seria dar-lhes a respirar amoníaco concentrado. Para isso, procurou-se no hospital um vaso que contivesse quatro onças de amoníaco e o colocaram muitos minutos seguidos no nariz de cada sonâmbula. (1)
228. Repetiram a operação várias vezes e nunca puderam os observadores surpreender a sombra de qualquer manifestação de incômodo ou mal-estar. Detalhe pungente: um doutor, sem dúvida mais incrédulo que os outros, quis certificar-se por si mesmo, de que o vaso continha amoníaco, e, tendo-se aproximado para cheirá-lo, quase pagou com a vida a imprudente curiosidade.
229. Esses fenômenos provam, pois, que o sonambulismo é um estado particular do sistema nervoso, que apresenta grandes analogias com a paralisia sensitiva produzida pelos anestésicos, como o clorofórmio e o éter. Os fatos que acabamos de descrever foram examinados com escrupulosa atenção e afirmados por testemunhas honoráveis como Husson, Bricheteau, Delens e uma multidão de outros médicos. As atas, redigidas no lugar, foram depositadas com o Sr. Dubois, tabelião em Paris, sendo uma cópia daquelas publicada numa brochura, que teve grande repercussão, e ninguém jamais desmentiu a veracidade dos fatos.
230. Determinemos agora outros caracteres do sonambulismo magnético. O sonâmbulo sente com mais precisão que no estado normal qual a parte do seu corpo que é afetada; ele a vê, e muitas vezes indica o remédio conveniente. Em grau mais elevado, abarca de relance toda a sua anatomia e seu poder se estende até ler o pensamento das pessoas que entram em relação com ele.
231. Um dos sinais característicos do sono sonambúlico é o esquecimento, ao despertar, de tudo que se passou. Outra faculdade que alguns sonâmbulos revelam é o que se chama transposição dos sentidos, ou seja, ver sem a intervenção dos olhos, cheirar sem o órgão da olfação e ouvir sem o auxílio do ouvido.
232. Se insistimos nessas estranhas faculdades, é que não pode apresentar para elas uma explicação racional quem se obstina em não reconhecer a existência da alma, a de um poder que se manifesta fora das condições da vida habitual, como por exemplo nos fenômenos da dupla vista.
233. Deleuze, professor de história natural no Jardim das Plantas, em uma memória sobre a clarividência dos sonâmbulos, narra este episódio: “A jovem doente me havia lido corretamente sete ou oito linhas, posto que seus olhos estivessem cobertos de modo a não poder servir-se deles. Foi ela depois obrigada a parar, dizendo-se muito fatigada.”
234. Alguns dias depois, querendo convencer incrédulos, Deleuze apresentou à jovem uma caixa de papelão, fechada, na qual estavam escritas as palavras: amizade, saúde, felicidade. Ela segurou a caixa por algum tempo, manifestou muita fadiga, e disse que a primeira palavra era amizade, mas que não podia ler as outras. Instada para que fizesse novos esforços, consentiu e disse, restituindo a caixa: não vejo bem, mas creio que as duas palavras são: bondade, doçura. Enganara-se nos dois últimos termos, mas, como se vê, tinham muita semelhança com os que estavam escritos, e essa coincidência não pode ser atribuída ao acaso. (2)
235. Escolhemos este fato entre muitos outros, para mostrar que a faculdade sonambúlica pode, na mesma pessoa, apresentar graus diversos, que vão da vista incompleta à vista perfeita. Demos a palavra ao Senhor Rostan, que escreveu o artigo Magnetismo, no dicionário de ciências médicas: “Mas se a vista é abolida no seu sentido natural, está para mim inteiramente demonstrado que ela existe em muitas partes do corpo. Eis uma experiência que repeti frequentemente; esta experiência foi feita em presença de Ferrus. Apanhei o meu relógio, coloquei-o a três ou quatro polegadas atrás do occipúcio e perguntei à sonâmbula se via alguma coisa. (3) – Certamente, vejo alguma coisa que brilha e que me faz mal. Sua fisionomia exprimia dor e a nossa devia exprimir espanto. Entreolhamo-nos e Ferrus, quebrando o silêncio, me disse que desde que ela via alguma coisa brilhar, diria sem dúvida o que era. – Que vê? – Ah, não sei, não posso dizer. – Olhe bem. – Espere, isso me fatiga... espere: é um relógio. Novo motivo de surpresa. Mas, se ela sabe que é um relógio – disse Ferrus –, poderá sem dúvida ver que horas são. – Oh! não, é muito difícil. – Preste atenção, procure bem. – Espere... vou esforçar-me, direi talvez a hora, mas não passo ver os minutos. São 8 horas menos dez. Era exato. Ferrus quis repetir a experiência ele mesmo, e ela se reproduziu com o mesmo êxito. Fez-me ele virar, muitas vezes, os ponteiros do seu relógio, que lhe apresentamos, e ela, sem o ver, nenhuma vez se enganou.”
236. Temos aqui uma prova concludente e que apresenta uma circunstância particular, que deve ser estudada.
237. Como se vê, o fenômeno da visão sem os olhos está bem estabelecido. Demonstramos também que a teoria do Doutor Debay, isto é, aquela das ramificações nervosas, aceita por todos os incrédulos, é inadmissível. Só resta, para compreender o que se passa, reconhecer que é a alma que momentaneamente se desprende e percebe de maneira diversa da vida corrente.
238. Eis mais um caso, descrito desta vez pelo Doutor Despine, chefe de clínica do estabelecimento de Aix: “Não só a nossa enferma ouvia pela palma da mão, como a vimos ler sem o auxílio dos olhos, pela extremidade dos dedos, que agitava com rapidez acima da página que queria ler, sem a tocar, como para multiplicar as superfícies sensíveis; vimo-la ler assim uma página inteira de um romance da moda. De outras vezes ela escolheu, num maço de trintas cartas, uma que lhe tinha sido indicada; leu no mostrador, e do outro lado do vidro, a hora num relógio; escrevia cartas e corrigia, relendo-as, os erros que lhe tinham escapado; recopiava uma carta, palavra por palavra. Durante todas as operações um anteparo de papelão espesso interceptava-lhe completamente a vista. Os mesmos fenômenos se realizavam pela planta dos pés e pelo epigástrio.”
239. O Doutor Charpignon, de Orleans, relatou-nos o seguinte: “Uma noite, tínhamos em nossa casa duas sonâmbulas, e em uma casa vizinha dava-se um baile. Apenas preludiou a orquestra, uma delas se agitou, pois ouviu o som dos instrumentos. Já dissemos que certos sonâmbulos, isolados, são sensíveis à música. Em breve, a segunda sonâmbula ouviu também e elas compreenderam que se tratava de um baile. – Querem vê-lo? – perguntei-lhes. – Certamente. Imediatamente as duas jovens começaram a rir e a conversar sobre a atitude dos dançantes e as vestes das dançarinas. – Veja aquelas moças de vestido azul, como dançam jocosamente, e o pai delas que gira com a noiva... Ah! como esta senhora é desembaraçada; ela se queixa de que não está doce seu copo d'água e quer mais açúcar. E este homenzinho! Que roupa vermelha esquisita! Nunca vimos espetáculo mais engaçado e curioso! Duas pessoas presentes, duvidando que houvesse visão real, foram à sala do baile e ficaram admirados vendo as moças de roupa azul, os homenzinhos de traje vermelho, e o par da noiva que as duas moças tinham designado”.
240. Outra vez – continua Charpignon – uma das nossas pacientes, Celina, desejou, num dos seus sonambulismos, ir ver a irmã que estava em Blois. Ela conhecia o caminho e o seguiu mentalmente. – Olá! – exclamou ela – aonde vai Senhor Jouanneau? (Ela disse que estava em Meung, nas Malvas, e que encontrou o Senhor Jouanneau, em trajes domingueiros, o qual ia, sem dúvida, jantar em algum castelo.) Ele era um habitante de Meung, conhecido das pessoas presentes; escreveram-lhe para saber o que havia de verdade sobre seu passeio no lugar e hora indicados. A resposta confirmou minuciosamente o que dissera a senhorita Celina.
241. Quantas reflexões! Quantos estudos psicológicos nesse fato fortuitamente produzido! A visão dessa sonâmbula não fora lançada, como geralmente acontece, no lugar desejado; ela percorrera toda a estrada de Orleans a Blois e notara, nessa rápida viagem, tudo o que podia chamar sua atenção. Já não era só a clarividência a curta distância, mas a vista real com os olhos fechados, ao longo de uma viagem. É preciso dizer adeus a todas as ramificações possíveis, porque, desde que o corpo da jovem estava em Orleans, necessariamente uma parte dela mesma deve ter-se destacado para ver o que se passava na estrada de Malva. Desgoste, embora, aos materialistas, isto só pode ser a alma.
242. Para os espiritualistas, os fatos referidos podem parecer anormais, porém não inexplicáveis, uma vez que a alma, essa parte imaterial do homem, pode, em certas circunstâncias, destacar-se do corpo e transportar-se a distância. Mas, para os materialistas, que não se contentam com um levantar de ombros em face desses relatórios, é indispensável achar uma explicação boa ou má, a fim de não ficarem omissos.
243. Conhecemos já a teoria dos plexos nervosos e de suas ramificações; vejamos outra, que se acha comumente em livros que tratam do mesmerismo, sob o ponto de vista material.
244. Os magnetizadores pretendem que o fluido nervoso que percorre os nervos não se detém sempre na superfície da pele, lança-se algumas vezes para fora, sob o império da vontade, formando assim uma verdadeira atmosfera nervosa em torno do paciente, esfera de atividade semelhante à dos corpos eletrizados.
245. Até que tudo é então bem racional, e essa doutrina foi admitida pelo célebre fisiologista Humboldt. Ela pode explicar os fatos do magnetismo puro, tal como a ação do magnetizador sobre o seu paciente e o efeito curativo do agente magnético. Pode-se supor, com efeito, que o operador emita bastante fluido nervoso para saturar o magnetizado, de maneira a fazê-lo recuperar as forças que perdeu. Mas, para o sonambulismo, e particularmente para a dupla vista, a explicação é insuficiente.
246. Eis o que, então, eles imaginaram: “Sabe-se que o mundo não acaba onde para o nosso olhar; uma imensidade de coisas escapa a nossos sentidos, porque eles não são bastante desenvolvidos, bastante sutis para captá-los. Resulta da nossa imperfeição sensorial e intelectual que a impossibilidade não está onde a julgamos ver, mas, ao contrário, muito além do ponto em que a colocamos. Tomemos, por exemplo, um casco de tartaruga; interponhamo-lo entre os olhos e um livro aberto; logo cessaremos de ler, porque os raios luminosos partindo do livro para se irem refletir na retina, são interceptados por um obstáculo. Admitamos, agora, de um lado, que a luz penetra todos os corpos, em graus diversos, e, de outro lado, que o espesso casco seja dividido em cem lâminas extremamente delgadas; cada lâmina isolada será necessariamente diáfana, podendo-lhe ver através. É precisamente o que se passa com o sonâmbulo; os nervos ópticos adquirem tão alto grau de força visual, que os corpos mais espessos, mais opacos, passam ao estado de transparência, de diafaneidade completa. É fácil, então, aos raios objetivos, atravessar esses corpos e, penetrando nas pálpebras fechadas da sonâmbula, ir desenharem-se sobre a retina que eles representam.”
247. Observemos, em primeiro lugar, que a luz não atravessa todos os corpos. É falsa, pois, a hipótese. Em seguida, supondo-se que o casco de tartaruga seja dividido em cem lâminas e que, separadamente, cada uma delas possa ser atravessada pela luz, não é menos certo que, reunidas, ofereçam intransponível barreira ao olhar ordinário e, com mais forte razão, ao de uma sonâmbula adormecida. Adquiram os nervos ópticos a força que se lhes queira emprestar e a energia visual só se exercerá quando os raios refletidos pelos objetos se puderem desenhar na retina; ora, a sonâmbula, de olhos fechados, nada pode ver com o auxílio deles.
248. Narra Herschell que conheceu um homem que distinguia a olho nu os satélites de Júpiter; certo, esse indivíduo tinha uma faculdade visual pouco ordinária, mas estamos convencidos de que, quando fechava os olhos, não via mais nada. Ora, por mais ativos que se possam tornar, os nervos ópticos não servem de explicação ao fenômeno, quando as pálpebras estão fechadas.
249. De tudo se deve concluir que, quanto mais se estudam os estados particulares do corpo humano, mais a existência da alma se impõe como uma verdade brilhante; os que querem negá-la ficam reduzidos às mais ridículas concepções ao explicar os fenômenos do pensamento e do magnetismo, tanto o natural como o provocado.
250. Não podemos esconder que fatos tão caracterizados, como os que acabamos de narrar, sejam pouco comuns na vida ordinária; mas todos os que se ocuparam, mais ou menos seguidamente, de magnetismo, puderam verificá-los. Os livros, jornais e revistas que tratam do assunto estão cheios de observações semelhantes, e só por ignorância ou má-fé será possível recusá-las hoje. 

(1) Onça [do latim uncia] é o nome de uma medida de peso inglesa equivalente a 28,349 gramas.
(2) A semelhança afirmada não existe entre as palavras portuguesas saúde e bondade e entre felicidade e doçura, mas existe realmente entre as palavras correspondentes francesas: santé e bonté, bonheur e douceur. 
(3) Occipúcio ou occipício é a parte ínfero-posterior da cabeça, também chamada occipital.

Respostas às questões preliminares

A. Além do esquecimento de tudo que se passou, que outra faculdade revelam os sonâmbulos?
A faculdade que alguns sonâmbulos revelam é o que se chama transposição dos sentidos, ou seja, podem ver sem a intervenção dos olhos, cheirar sem o órgão da olfação e ouvir sem o auxílio do ouvido. (O Espiritismo  perante a Ciência, Segunda Parte, Cap. III – O sonambulismo magnético.)
B. A clarividência dos sonâmbulos, quando próximos do objeto, foi devidamente comprovada pelos fatos?
Sim. Nesta obra o autor relata inúmeros casos devidamente autenticados por pesquisadores de renome, como Deleuze, professor de história natural no Jardim das Plantas. (Obra citada, Segunda Parte, Cap. III – O sonambulismo magnético.)
C. Quanto à clarividência a distância, os fatos são também abundantes?
Sim. Em um deles, relatado pelo Doutor  Charpignon, a sonâmbula desejou visitar uma irmã que estava em Blois. Ela conhecia o caminho e o seguiu mentalmente. O que ela descreveu no estado sonambúlico foi depois comprovado, mostrando que é a alma que se desloca e vê ali o que está ocorrendo. (Obra citada, Segunda Parte, Cap. III – O sonambulismo magnético.)

Observação:
Para acessar a parte 8 deste estudo, publicada na semana passada, clique aqui: https://espiritismo-seculoxxi.blogspot.com/2020/05/o-espiritismo-perante-ciencia-gabriel_8.html




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