O Espiritismo perante a Ciência
Gabriel Delanne
Parte 8
Continuamos o estudo do clássico O Espiritismo perante a Ciência, de
Gabriel Delanne, conforme tradução da obra francesa Le Spiritisme devant la Science.
Nosso objetivo é que este estudo possa
servir para o leitor como uma forma de iniciação aos chamados Clássicos do
Espiritismo.
Cada parte do estudo compõe-se de:
a) questões preliminares;
b) texto para leitura.
As respostas às questões propostas
encontram-se no final do texto abaixo.
Questões preliminares
A. No sonambulismo natural quem dirige
o movimento do corpo?
B. É verdade que o sonâmbulo pode agir
tendo os olhos completamente fechados?
C. Há uma característica peculiar aos
casos de sonambulismo magnético. Qual é ela?
Texto para leitura
201. Os fatos que se seguem foram
tomados ao Doutor Debay, que faz profissão de materialismo e que não é benévolo
para com os espiritualistas, em geral, e os espíritas, em particular.
Exporemos, depois, as teorias luminosas que ele apresenta, admitidas em geral
pelos incrédulos, e mais uma vez assinalaremos a lamentável insuficiência
desses sistemas, que querem dispensar a alma, na explicação dos fenômenos da
vida.
202. É este o primeiro caso observado
pelo próprio doutor: “Por bela noite de verão, percebi, à claridade da lua, uma
forma humana caminhando pelos telhados de uma casa muito alta; vi-a rastejar,
estender-se, e depois se agarrar fortemente aos ângulos agudos do teto e
assentar-se no alto da cumeeira. Para melhor observar essa estranha aparição,
muni-me de um binóculo, e distingui, claramente, uma mulher ainda jovem com o
filhinho nos braços, estreitado ao peito. Ela ficou perto de meia hora nessa
perigosa posição; desceu, depois, com surpreendente agilidade e desapareceu. No
dia seguinte, à mesma hora, fez a mesma ascensão, na mesma atitude, e com a
mesma agilidade percorreu os telhados. De manhã, relatei ao proprietário da
casa o que vira. Ele me ouviu assustado e contou que sua filha era sonâmbula,
mas ignorava completamente os seus passeios noturnos; induzi-o a tomar
minuciosas precauções, a fim de impedir um terrível acidente. Veio a noite e
vi, ainda, a moça executando as manobras dos dias precedentes; corri de novo a
advertir o pai; encontrei-o triste e pensativo. Disse-me que, depois de a filha
deitar-se, tinha ele mesmo lhe fechado a porta do quarto, com dupla volta,
tomando ainda a precaução de colocar um cadeado por fora. Ah! – dizia ele – a
pobre rapariga, não tendo outra salda, abriu a janela, e, como de costume,
dirigiu-se para o telhado. De volta, após um quarto de hora, bateu com o punho
num batente da janela que o vento fechara, ferira-se ligeiramente e acordou
dando um grito agudo. Por inaudita felicidade, a criança, que escapara de suas
mãos, caíra numa poltrona, que ela tivera o cuidado de colocar junto à janela,
para lhe servir de degrau. Nesse momento, a sonâmbula entrou. Era uma mulher
delicada e adoentada; trazia no rosto, interessante, o cunho da tristeza e
denotava uma idiossincrasia histérica. A prisão do marido, condenado político,
impressionara-a extremamente e contribuía para sua exaltação moral. Quando lhe
falei dos seus passeios perigosos, sorriu languidamente e não quis acreditar. Enfim,
interrogando-a sobre a natureza dos seus sonhos, disse ela que parecia ter
tido, havia já alguns dias, um sono pesado, penoso; umas vezes sonhava que
gendarmes, guardas, toda a horda de policiais lhe invadia o domicílio, para
apoderar-se do republicano; outras vezes era ao filho e a ela que queriam
levar. Seguia-se-lhe ao despertar grande lassidão; sentia-se fatigada, triste,
abatida, com dor de cabeça, e tudo atribuía à dolorosa separação que a privava
do esposo.”
203. Sobre a narrativa precedente, o
doutor fez as seguintes observações: “Refletindo-se nas condições físicas e
morais dessa moça, descobre-se que ela era predisposta ao sonambulismo, por sua
organização, e que um pensamento a acompanhava sempre: a prisão do marido.
Dessa ideia, durante o sono, nasciam muitas outras, por associação: o órgão
encefálico, fortemente estimulado, punha em jogo o aparelho locomotor e o
dirigia para o teto da casa. O motivo dessa perigosa ascensão eis o perigo de
que se acreditava ameaçada, ela e seu filho.”
204. Comentando tal explicação,
Delanne diz que, em tal estado, era preciso reconhecer que a alma dirigia o
corpo sem o socorro dos sentidos, e, para que a dúvida não seja possível,
apresenta, do mesmo autor, dois outros fatos nos quais, com o corpo adormecido,
gozava a alma de todas as suas faculdades intelectuais.
205. Segundo o professor Soave, da
Universidade de Pádua, um farmacêutico da Pavia, sábio químico, a quem se devem
importantes descobrimentos, levantava-se todas as noites, durante o sono, e ia
a seu laboratório continuar os trabalhos inacabados. Acendia os fornos,
preparava os alambiques, retortas, vasos, etc., e prosseguia em suas
experiências com uma prudência e agilidade, de que, acordado, talvez não fosse
capaz. Ele manejava, então, as mais perigosas substâncias e os mais violentos
venenos, sem que jamais lhe acontecesse o menor acidente. Quando lhe faltava
tempo para preparar, durante o dia, as receitas mandadas aviar pelos médicos,
ia buscar na gaveta onde estavam fechadas, abria-as, colocava-las na mesa, umas
sobre as outras, e procedia ao seu preparo, com todo o cuidado e as precauções
requeridas. Terminados os trabalhos, ele extinguia os fornos, punha em ordem os
objetos e voltava para a cama, onde dormia tranquilo até à hora de acordar.
206. Nota o prof. Soave que o
sonâmbulo tinha constantemente os olhos fechados, Ora, se a memória dos lugares
e a ideia de acabar os trabalhos bastassem para guiá-lo no laboratório, a
leitura e o preparo das receitas, cujo conteúdo ignorava, ficariam inexplicáveis.
207. Conta também o Dr. Esquirol que
um farmacêutico se levantava todas as noites e preparava as poções cujas
fórmulas se encontravam na mesa. Para verificar se havia discernimento por
parte do sonâmbulo, ou apenas movimentos automáticos, um médico colocou no
balcão da farmácia a nota seguinte: “Sublimado corrosivo, 2 oitavas; Água
destilada, 4 onças. Para tomar de uma vez.” O farmacêutico levantou-se durante
o sono e, como de hábito, desceu a seu laboratório; apanhou a receita, leu-a
várias vezes, pareceu muito espantado e entabulou o seguinte monólogo, que o
autor da narrativa, oculto no laboratório, escreveu palavra por palavra: “É
impossível que o doutor não se tenha enganado nesta fórmula; 2 grãos já seria
bastante; mas há aqui legivelmente escrito 2 oitavas, que são mais de 150
grãos. Isto é mais do que suficiente para envenenar 20 pessoas. Ele enganou-se,
indubitavelmente. Não preparo esta porção.” O sonâmbulo tomou, em seguida,
diversas prescrições que estavam na mesa, preparou-as, rotulou-as e colocou-as
em ordem para serem entregues no outro dia.
208. Temos três casos de sonambulismo
natural, impossíveis de compreender sem admitir-se a existência de um princípio
espiritual, diretor da matéria e não submetido ao sono como o corpo, mas os sábios
procuram disfarçar a ignorância, por meio de teorias obscuras, mais difíceis de
admitir que as nossas. Assim, Debay explica que o olho não é o único órgão por
onde se opera a visão e que pode transmitir ao cérebro a percepção dos objetos.
209. Somos desta opinião; onde
diferimos é na interpretação do mecanismo da vista sonambúlica, que, segundo, o
nosso doutor, se pode fazer pela ponta do nariz, pelo epigástrio ou pela
extremidade dos dedos! Não ria, leitor! Dr. Debay pretende que a visão pelo
epigástrio ou pela ponta do nariz não é tão sem fundamento como poderia
acreditar-se; que existem, talvez, ramificações do nervo ótico, que vão a essas
extremidades, e por elas o sonâmbulo poderá guiar-se.
210. Se nos deixássemos levar por essa
concepção, docemente fantasista, seria possível justificar a crença de que o
homem perfeito seria o que possuísse um olho fixo à extremidade de uma longa
cauda móvel. “Pela hipótese das ramificações – continua Debay – o estímulo
exterior agiria sobre essas anastomoses desconhecidas e as vibrações que
determinassem no cérebro bastariam para produzir a percepção.” E acrescenta
gravemente: “Não convém negar; mais sábio é duvidar, esperando novas
demonstrações.”
211. Que se deve dizer diante de tais
suposições? Para uma discussão séria é preciso examinar o primeiro caso
assinalado. Debay explica esses fenômenos por uma comparação. Assim como um
comandante dirige seu navio servindo-se de um mapa, da mesma forma, no
sonambulismo, a memória dirige o corpo pelas impressões que ela lhe fornece.
Admira ver um médico, um fisiologista emitir tal asserção. Não sabíamos que a
memória dirige o corpo, mas a vontade, guiada por diversas influências, de que
uma delas poderia ser a memória.
212. Apesar da dificuldade em admitir
tal teoria quando os movimentos do indivíduo se produzem numa residência que
lhe é habitual, que dizer das circunstâncias em que o sonâmbulo se conduz,
maravilhosamente, e com uma segurança que não teria, mesmo acordado, em meios
que lhe são totalmente desconhecidos?
213. Tomemos o exemplo daquela jovem
senhora cujo marido foi preso. É possível afirmar que a memória a conduzia,
quando ela caminhava pelo telhado, rastejava, esgueirava-se pelas arestas
pontiagudas e se assentava, enfim, na cumeeira? Impossível supor que se
entregasse a tais exercícios, em seu estado normal. Mas, então, que poder a
protegia e lhe evitava as quedas? Por que órgão via ela, desde que em tal
estado tinha os olhos completamente fechados?
214. Não se pode imaginar que
ramificações do nervo ótico, terminando no epigástrio ou alhures, sejam capazes
de transmitir vibrações luminosas ao cérebro, porque sabemos, e desde muito,
que as sensações luminosas e auditivas são localizadas nos órgãos desses
sentidos, e que é tão difícil explicar a visão pelos ouvidos como a audição
pelos olhos. E ainda que o nervo ótico se ramificasse, como quer Debay, não
tendo as extremidades aparelho receptor, ou seja, a câmara escura que constitui
a parte essencial do olho, elas não poderiam, de forma alguma, transmitir vibrações
luminosas ao cérebro.
215. Entretanto, o fato aí está; ele
se apresenta inegável; é preciso explicá-lo exclusivamente pelo mecanismo da
máquina humana ou admitir a alma como causa eficiente. Dir-se-á, com o doutor,
que quando a visão não se dá, o cérebro supre essa função por uma visão interna
dos objetos que procura. Que quer isto dizer? E como poderia existir essa
percepção íntima para objetos que não foram vistos pelos olhos do corpo? Essa
hipótese é absolutamente inadmissível e o autor apresenta logo outra.
216. Os órgãos dos sentidos, diz ele,
desenvolvidos em excesso no sonâmbulo, experimentam, à distância, a ação dos
corpos e lhe fazem evitar os perigos que o ameaçam. Entramos no domínio da
fantasia com esta suposição, que não pode, mesmo, explicar todas as
particularidades observadas.
217. Com efeito, no caso referido por
Esquirol, o farmacêutico adormecido que preparava suas poções pôde ser
advertido do perigo que correria seu cliente se ele se conformasse com a
receita, não por uma emanação do papel. Ele procedeu como em estado ordinário e
discutiu metodicamente a impossibilidade de um tal remédio. Perguntamos: quem
discutia, quem via?
218. Poder-se-ia admitir, em rigor,
que um indivíduo praticasse durante o sono, atos puramente mecânicos, como os
que executa acordado e não exigem qualquer aplicação do espírito; assim, que o
cocheiro cuide de seus cavalos, que o artista toque piano, que a cozinheira
lave sua vasilhame. Neste caso, é natural conceber certas ações reflexas do
sistema nervoso, superexcitado por ideia fixa. Mas quando o raciocínio entra em
jogo, quando todas as faculdades funcionam, como de ordinário, e é notório que
o indivíduo está adormecido, ou por outra, quando as funções da vida de relação
cessam, dizemos que é preciso aceitar a existência de um agente que não dorme, que
pensa, que arrazoa, que quer, e a esta força que vela sobre o corpo e o conduz
chamamos alma.
219. Diremos, em resumo, para não
alongar a discussão: fica estabelecido que o sonambulismo natural oferece
caracteres notáveis, que serão incompreensíveis se negarmos a realidade da
alma. Poderíamos citar mil outros casos de sonambulismo; deles estão cheios os
tratados de fisiologia, mas não nos ofereceriam nada mais típico do que os já
apontados.
220. O Curso de Magnetismo do barão du
Potet contém, em grande número, documentos que nos persuadem ser uma verdade o
sonambulismo artificial, isto é, provocado pelo magnetismo. Acrescentamos-lhes
outras narrativas, tomadas às autoridades da ciência magnética Charpignon e
Lafontaine, sempre com o apoio das atas assinadas pelos médicos mais
conhecidos.
221. O sonambulismo magnético é
comumente caracterizado por inteira insensibilidade da pele; pode-se
impunemente picar o adormecido, beliscá-lo, fazer-lhe queimaduras: ele não
desperta nem dá qualquer sinal de sofrimento.
222. O amoníaco concentrado, levado
pela respiração às vias aéreas, não determina a menor alteração, e o que, no
estado habitual, poderia produzir a morte, fica sem efeito nesta espécie de
sonambulismo. Se a sensibilidade se extingue, o ouvido não parece menos
desprovido de ação. Nenhum ruído se faz ouvir; a voz, a queda ou a agitação dos
corpos sonoros não comunica qualquer som aos nervos acústicos; eles parecem
inteiramente paralisados; tiros de pistola, junto ao orifício do conduto
auditivo, ferindo as carnes, deixam crer na privação desse sentido.
223. Esse estado, porém, só não existe
para o magnetizador, porque este pode fazer ouvir as mais fracas modulações da
sua voz; sua palavra se faz compreender a distâncias onde qualquer outro nada
ouviria nem mesmo poderia ver o movimento dos lábios.
224. Numerosas experiências foram
feitas por du Potet, em 1820, no “Hôtel Dieu” de Paris. Ele assim as relata aos
seus discípulos: “Sabeis que o sonambulismo se ofereceu à nossa observação e
que grande número de médicos incrédulos, atraídos pela novidade do espetáculo,
dele foram testemunhas. Quiseram assegurar-se por si mesmos da verdade do que
eu lhes dizia. Deixei-os fazer o que entenderam, porque, em fenômenos
extraordinários, só se deve acreditar pelo testemunho dos sentidos. A presença
de muita gente não impediu a produção do sonambulismo, e uma vez produzido este
estado, os assistentes usaram de todos os meios para verificar a
insensibilidade dos magnetizados. Começaram por lhes passar fios de pena muito leves
nos lábios e nas asas do nariz; depois lhes pinçaram a pele de tal modo que
produziram equimoses; introduziram fumaça nas fossas nasais; puseram os pés de
uma sonâmbula em um banho de mostarda fortemente sinapizado e com água em alto
grau de calor. Nenhum desses meios determinou a menor alteração, o mais ligeiro
sinal de sofrimento; o pulso se mostrou regular. Mas, ao despertar, todas as
dores, que deviam ser provenientes dessas experiências fizeram-se sentir
vivamente, e os doentes se indignaram com o tratamento que os fizeram
experimentar.”
225. Não se deve esquecer que essas
experiências foram executadas, não por du Potet, mas por incrédulos; ele apenas
deu a conhecer os seus (deles) testemunhos escritos. Eis, entre outras, uma ata
assinada pelo Dr. Roboam: “Eu, abaixo-assinado, certifico que a 8 de janeiro de
1821, a pedido do Senhor Recamier, pus em sono magnético a chamada Le Roy
(Lise), do leito nº 22, da sala Ste. Agnês; ele a tinha, anteriormente,
ameaçado com um cautério, se ela se deixasse adormecer. Contra a vontade da
doente, eu, Roboam, fi-la passar ao sono magnético, durante o qual Gilbert
queimou agárico junto às fossas nasais e essa desagradável fumaça nada produziu
de notável. Recamier aplicou-lhe ele mesmo um cautério na região epigástrica, o
qual produziu uma escara de 15 linhas de comprimento e 9 de largura; durante
sua aplicação, a doente não manifestou a menor dor, por gritos, movimentos ou
variações do pulso; permaneceu em insensibilidade completa; despertada, sentiu
muita dor.” Estavam presentes a esta sessão os senhores Crilbert, Créqui etc.
Assinado: Roboam, doutor em Medicina.
Respostas às questões preliminares
A. No sonambulismo natural quem dirige o movimento do
corpo?
Segundo Delanne, é a alma quem, mesmo
sem o socorro do sentidos, dirige o corpo e suas ações, como é comprovado pelos
fatos. (O Espiritismo perante a Ciência, Segunda Parte, Cap. II
– O sonambulismo natural.)
B. É verdade que o sonâmbulo pode agir tendo os olhos
completamente fechados?
Sim. Vários fatos o demonstram. O caso
do farmacêutico da Pavia, relatado pelo professor Soave, da Universidade de
Pádua, é um exemplo expressivo das ocorrências desse tipo. (Obra citada,
Segunda Parte, Cap. II – O sonambulismo natural.)
C. Há uma característica peculiar aos casos de sonambulismo
magnético. Qual é ela?
A inteira insensibilidade da pele. Em
tal estado, pode-se impunemente picar o adormecido, beliscá-lo, fazer-lhe
queimaduras e ele não desperta nem dá qualquer sinal de sofrimento. (Obra
citada, Segunda Parte, Cap. III – O sonambulismo magnético.)
Observação:
Para acessar a parte 7 deste
estudo, publicada na semana passada, clique aqui: https://espiritismo-seculoxxi.blogspot.com/2020/05/o-espiritismo-perante-ciencia-gabriel.html
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