O bom homem
Noite de 2 de dezembro de 1857.
Em homenagem ao Imperador D. Pedro II, que completa trinta e dois
anos de idade, há beija-mão no Paço Imperial do Rio de Janeiro. (1)
Não somente isso. Há festas públicas, bailes, cantarolas na rua,
girândolas no ar.
Onze da noite. Inquieto, escuta vozes no jardim. Sai pela porta
dos fundos. Aproxima-se, sorrateiro, e ainda percebe o par em doce adeus. Um
homem que ele desconhece beija-lhe a filha, e parte, apressado.
João apalpa os bolsos, rilhando os dentes, colérico, mas vê-se
desarmado. Abeira-se da moça que volta do baile, e internam-se, os dois, na
casa em que são eles os únicos moradores. Depois de perguntas ásperas, ouve a
menina, que fala em pranto:
— Papai, não me queira mal… Perdoe-me… Aguardo um filhinho, mas
espero casar-me… Antônio, o rapaz que escolhi, é pobre, muito pobre, mas tudo
melhorará… Ajude-nos, papai, pelo amor de Deus!
O comerciante, agora silencioso, visita o interior doméstico e
volta à presença da filha, estendendo-lhe um copo com líquido indefinível.
— É calmante — diz ele —, tome e descanse. Amanhã conversaremos.
A moça obedece e, logo após, sente, em dores indescritíveis, o
choque da morte. Sorvera arsênico em grande dose. No dia seguinte, a versão
paterna estava aceita. Todos acreditaram tratar-se de suicídio.
Muito tempo depois, João Ferreira de Souza desencarnou, com o
título de “bom homem”.
II
Noite de 2 de dezembro de 1957.
João Ferreira de Souza, noutro corpo de carne, está jovem, numa
festa íntima, na casa em que nasceu, em grande arrabalde do Rio. Consagrado à
afeição de moça humilde, afasta-se do sarau, rumo ao jardim, onde com ela se
encontra, em transporte afetivo.
O pai, que não lhe apoia a pretensão, segue-lhe os passos. E
quando o filho se despede da menina, enternecidamente, interpela-o de chofre. A
advertência é clara e incisiva. Mas o jovem, acabrunhado, algo explica:
— Papai, não me queira mal… Perdoe-me… Aguardo um filhinho, mas
espero casar-me… Lenita, a moça que escolhi, é pobre, muito pobre, mas tudo
melhorará… Ajude-nos, papai, pelo amor de Deus!
Sensibilizado, afasta-se o genitor em silêncio. O moço, porém,
está nervoso, inquieto. Pesa-lhe a cabeça, arde-lhe o estômago. Busca o
interior doméstico, à procura de um antiácido.
Na pequena farmácia caseira, toma um vidro e verte o conteúdo na
taça com água, bebendo o líquido. E, em seguida, cai gemendo com dores
lancinantes, para receber a morte logo após. Crendo valer-se de sal
medicamentoso, ingerira arsênico, em grande dose. E o próprio pai, afagando-lhe
em lágrimas o corpo inerte, acreditou tratar-se de suicídio.
[1] No Brasil, D. João VI introduziu a cerimônia do beija-mão: em
determinados dias o acesso ao Paço Imperial era liberado a todos que desejassem
apresentar alguma reivindicação ao monarca. Em sinal de respeito, tanto os
nobres, como as pessoas mais simples, até mesmo os escravos, beijavam-lhe a mão
direita antes de fazer seu pedido. Esse hábito foi mantido por D. Pedro I e por
D. Pedro II.
Do livro A vida escreve, obra psicografada pelos
médiuns Francisco Cândido Xavier e Waldo Vieira.
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