Agustina e o tempo
CÍNTHIA CORTEGOSO
cinthiacortegoso@gmail.com
De Londrina-PR
Talvez se se permitisse para a própria felicidade, Agustina não teria
vivido este enredo.
Desde menina, ouvia mais que falava e sempre conquistou grandes amigas;
quem sabe estas nutriam, como lema de amizade, ter alguém para desabafar e
compartilhar os pormenores do sofrimento íntimo. Pode ser que, sim; pode ser
que, não. Entretanto, Agustina era uma mestra em ouvir e aliviar o outro
coração atribulado.
Tantas histórias guardara como segredo ao longo dos anos.
Acontecimentos hilariantes, simples, bem comuns e alguns comprometedores geral
e ramificadamente. O alívio era nítido no olhar de quem compartilhara sua dor;
o olhar da ouvinte era sempre doce.
Tinha laço de fita no cabelo quando começou; hoje já tinha, grisalho,
todo o cabelo. Também anotava, sem as amigas e as pessoas saberem, as
informações de cada conversa, o motivo, o dia, o nome e o sobrenome de quem a
procurava. Tudo muito organizado numa caixa, guardada, no lado direito de seu
guarda-roupa. O chá e as bolachinhas feitas em casa eram sempre oferecidos.
Agustina, depois de muitos anos trabalhando em cargo administrativo,
havia se aposentado, estava com mais tempo para ouvir.
Certa tarde ainda fresca e quase chegada a primavera, ela olhava pela
janela da sala se certificando de que ninguém viria procurá-la. Olhou para o
guarda-roupa, mas não ameaçou nenhum movimento em sua direção. Olhou-se no
espelho e viu sua imagem a distância. Sentiu como se olhasse para uma estranha.
Seus olhos se encheram de lágrima que logo escorreu pela face clara.
Agustina ficara imóvel um tempo irreal ou imensurável, talvez
incomparável com a vida do plano terreno. Sinceramente não soube calcular o tempo
em frente ao espelho; sua face não mais estava úmida.
Procurou a cadeira em frente à escrivaninha, precisava sentar-se e
retornar ao seu eu. Ainda se viu pelo espelho em outro ângulo. Os olhos se
encheram da lágrima da dor por sua anulação, porém, sem opção de reconstruir o
passado. E se olhava a distância pelo espelho.
Um sono profundo a inebriou. Ela conseguiu passar da cadeira para a
cama ligeiramente. Deitou-se de lado; uma das mãos descansou à altura do
coração e a outra, embaixo do travesseiro. A respiração estava suave, mas muito
definida para a dimensão dos sonhos. E Agustina foi. Caminhou com a leveza que
promoveu às inúmeras almas que a procuraram, sentiu as flores amarelas entre os
dedos e levitava tão naturalmente; o sopro suave visitava sua face, não sentia
nem frio, nem calor, estava em paz e sorrindo.
De repente, viu-se de frente a uma também senhora, sentada. Havia uma
cadeira vazia; a senhora fez sinal para que Agustina se sentasse. Ela se
sentou.
E como as amigas e as pessoas que passaram por sua vida, era agora a
sua vez de desabafar e aliviar o coração que tanto ouviu e afagou inúmeros
outros.
Não precisou de explicação para o momento, Agustina compreendeu que
deveria falar; a senhora a ouvia com calma e carinho.
Quantos acontecimentos, compartilhou, sorria, entristecia-se e voltava
a sorrir, mas, pela primeira vez, concedeu a si momento de falar... de falar
sobre as suas dores, alguma felicidade, as suas decepções, os seus desejos que
não se realizaram, pois Agustina, durante esse tempo, anulou suas próprias
realizações e escondeu-se delas. Ela, pela primeira vez, sentiu-se inteira.
O passeio naquela dimensão chegara ao fim, ela precisava retornar para
o mundo físico e aproveitar o tempo que ainda lhe restava na presente existência
para valorizar-se e ser para si o que somente os outros, por enquanto, haviam
sido para ela.
Por meio de um suspiro profundo, Agustina estava de volta à sua cama, à
sua vida, com o diferencial de, possivelmente, ter compreendido que tudo se
inicia pelo próprio eu.
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