terça-feira, 10 de outubro de 2017

Contos e crônicas


Agustina e o tempo

CÍNTHIA CORTEGOSO
cinthiacortegoso@gmail.com
De Londrina-PR

Talvez se se permitisse para a própria felicidade, Agustina não teria vivido este enredo.
Desde menina, ouvia mais que falava e sempre conquistou grandes amigas; quem sabe estas nutriam, como lema de amizade, ter alguém para desabafar e compartilhar os pormenores do sofrimento íntimo. Pode ser que, sim; pode ser que, não. Entretanto, Agustina era uma mestra em ouvir e aliviar o outro coração atribulado.
Tantas histórias guardara como segredo ao longo dos anos. Acontecimentos hilariantes, simples, bem comuns e alguns comprometedores geral e ramificadamente. O alívio era nítido no olhar de quem compartilhara sua dor; o olhar da ouvinte era sempre doce.
Tinha laço de fita no cabelo quando começou; hoje já tinha, grisalho, todo o cabelo. Também anotava, sem as amigas e as pessoas saberem, as informações de cada conversa, o motivo, o dia, o nome e o sobrenome de quem a procurava. Tudo muito organizado numa caixa, guardada, no lado direito de seu guarda-roupa. O chá e as bolachinhas feitas em casa eram sempre oferecidos.
Agustina, depois de muitos anos trabalhando em cargo administrativo, havia se aposentado, estava com mais tempo para ouvir.
Certa tarde ainda fresca e quase chegada a primavera, ela olhava pela janela da sala se certificando de que ninguém viria procurá-la. Olhou para o guarda-roupa, mas não ameaçou nenhum movimento em sua direção. Olhou-se no espelho e viu sua imagem a distância. Sentiu como se olhasse para uma estranha. Seus olhos se encheram de lágrima que logo escorreu pela face clara.
Agustina ficara imóvel um tempo irreal ou imensurável, talvez incomparável com a vida do plano terreno. Sinceramente não soube calcular o tempo em frente ao espelho; sua face não mais estava úmida.
Procurou a cadeira em frente à escrivaninha, precisava sentar-se e retornar ao seu eu. Ainda se viu pelo espelho em outro ângulo. Os olhos se encheram da lágrima da dor por sua anulação, porém, sem opção de reconstruir o passado. E se olhava a distância pelo espelho.
Um sono profundo a inebriou. Ela conseguiu passar da cadeira para a cama ligeiramente. Deitou-se de lado; uma das mãos descansou à altura do coração e a outra, embaixo do travesseiro. A respiração estava suave, mas muito definida para a dimensão dos sonhos. E Agustina foi. Caminhou com a leveza que promoveu às inúmeras almas que a procuraram, sentiu as flores amarelas entre os dedos e levitava tão naturalmente; o sopro suave visitava sua face, não sentia nem frio, nem calor, estava em paz e sorrindo.
De repente, viu-se de frente a uma também senhora, sentada. Havia uma cadeira vazia; a senhora fez sinal para que Agustina se sentasse. Ela se sentou.
E como as amigas e as pessoas que passaram por sua vida, era agora a sua vez de desabafar e aliviar o coração que tanto ouviu e afagou inúmeros outros.
Não precisou de explicação para o momento, Agustina compreendeu que deveria falar; a senhora a ouvia com calma e carinho.
Quantos acontecimentos, compartilhou, sorria, entristecia-se e voltava a sorrir, mas, pela primeira vez, concedeu a si momento de falar... de falar sobre as suas dores, alguma felicidade, as suas decepções, os seus desejos que não se realizaram, pois Agustina, durante esse tempo, anulou suas próprias realizações e escondeu-se delas. Ela, pela primeira vez, sentiu-se inteira.
O passeio naquela dimensão chegara ao fim, ela precisava retornar para o mundo físico e aproveitar o tempo que ainda lhe restava na presente existência para valorizar-se e ser para si o que somente os outros, por enquanto, haviam sido para ela.
Por meio de um suspiro profundo, Agustina estava de volta à sua cama, à sua vida, com o diferencial de, possivelmente, ter compreendido que tudo se inicia pelo próprio eu.

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